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O criador da maior olimpíada de matemática do país diz que o Brasil precisa encarar de uma vez por todas a luta pela qualidade e começar a dar valor ao esforço e ao talento
Pergunte a um jovem brasileiro que disciplina lhe desperta os piores sentimentos e dificilmente ouvirá algo diferente de “a matemática". Foi para tentar reverter esse cenário que o peruano César Camacho, 70 anos, se lançou em uma cruzada que demandou andanças por todo o país e conversas nos mais altos gabinetes de Brasília. Em 2005, ele conseguiu pôr de pé a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep), que atrai 20 milhões de estudantes de 50000 colégios. Doutor pela Universidade da Califórnia em Berkeley, Camacho é um ferrenho defensor da meritocracia, princípio que norteia sua gestão de uma década à frente do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), centro de pesquisas de reputação mundial. Ele resume: "A matemática faz cidadãos melhores”. O senhor sofreu resistências quando lançou a ideia da olimpíada de matemática? Uma ala dentro do próprio MEC era contra. Houve uma ocasião em que a secretária do ensino básico do ministério me chamou e disse: “Professor, o senhor vai me desculpar, mas não quero participar dessa atividade”. Perguntei por quê, e ela foi direta: “A olimpíada vai discriminar os estudantes e, na minha maneira de ver as coisas, na sala de aula são todos iguais”. A ideia só prosperou mesmo porque instâncias superiores gostaram do projeto. O primeiro a se manifestar a favor foi o Eduardo Campos (então ministro de Ciência e Tecnologia). Quando eu expliquei que custaria 5 milhões de reais para alcançar inicialmente 5 milhões de estudantes, ele logo se entusiasmou: “Um real por aluno? Vou falar com o Lula". Aí o presidente me pediu que fosse a Brasília e expôs suas preocupações. O que exatamente preocupava o então presidente Lula? Ele colocou duas questões na mesa. Primeiro, queria saber o que os pedagogos achavam da minha ideia. Eu disse que havia os bons pedagogos e os não tão bons — esses últimos é que eram contra. Contei a Lula que eles repudiavam justamente o princípio elementar da olimpíada: a competição. O presidente refletiu e disse: “Na Amazônia existem o capim, os arbustos, árvores maiores e menores brigando pela mesma luz solar. É da natureza competir”. O outro comentário de Lula foi sobre uma ideia que ele próprio lançou no encontro, a de uma olimpíada voltada para professores. “Por que não fazemos?”, indagou. E ele mesmo respondeu: "Deixa para lá. Os sindicatos seriam contra”. Na recente greve de professores do Rio de Janeiro, os sindicalistas agitaram bandeiras de repúdio à meritocracia, como já aconteceu outras vezes. Qual é a raiz dessa resistência? Tradicionalmente, os que gostam de sistemas que premiam o mérito são aqueles que veem aí uma chance de ter seu talento reconhecido, e não os que sabem de antemão que não reúnem as condições mínimas para ser bem avaliados — exatamente o caso de uma parcela dos docentes. No meu modo de ver, a questão salarial pode até ser posta à mesa, mas desse jeito, apoiada sobre a isonomia, não trará grandes avanços ao ensino, tampouco prestígio à carreira do professor. Qual seria o caminho para a docência conquistar prestígio? No mundo todo, em qualquer área, o prestígio só vem com uma formação de alto nível e junto a um sistema em que a ascensão profissional seja determinada por resultados, e não por conquistas sindicais. Antes que obtivessem a cátedra, aliás, os professores deveriam passar por uma prova como a que a OAB faz para os que querem atuar corno advogados: só seriam aprovados os que de fato sabem o que precisam ensinar. A alta qualidade está ligada à dura seleção, mas o Brasil não tem pendor para a competição. Repare que a isonomia não é bandeira histórica apenas dos sindicalistas, que sempre lutaram por salários iguais para todos: ela é também defendida por correntes que abominam o princípio de distinguir os alunos pelo mérito na sala de aula. Para mim, essa é uma visão oblíqua. Os talentos precisam, sim, ser incentivados. O Impa é uma das poucas instituições brasileiras de relevo na comunidade acadêmica internacional. Quais as raízes da ainda modesta participação do Brasil na elite da pesquisa? A pesquisa brasileira se desenvolve em um sistema estatal pesado, sob um excesso de normas que atravancam o trabalho do cientista e o processo de inovação. O labirinto burocrático do serviço público pesa, por exemplo, na hora de contratar cérebros e importar materiais. Mesmo atrair estrangeiros para nossos centros de pesquisa não é uma tarefa simples. Há resistência por parte da academia a acolher estrangeiros? Na verdade, nós os espantamos graças a um hábito cartorial brasileiro, que remete ao mais puro tradicionalismo: ainda que a situação esteja melhorando, a maioria das provas dos concursos é até hoje feita em português. Isso, claro, afasta pesquisadores de fora. É a burocracia agindo contra a qualidade. O Impa não tem essas amarras. Como organização social (OS), nosso orçamento é livre de carimbos e podemos contratar e demitir com base exclusivamente no mérito. Um terço de nossos professores são estrangeiros, e nós nos beneficiamos muito. Afinal, o país não precisou pagar pela boa educação deles, e pudemos fazer uma seleção mais qualificada, entre os melhores do mundo. A academia brasileira ainda vê com desconfiança a aproximação com a indústria? Essa distância vem encurtando gradativamente na área das ciências. A competição global ajuda a demolir o muro que separa esses dois mundos na medida em que torna a inovação uma questão de sobrevivência. Ou seja, as empresas têm e terão cada vez mais de ir atrás de cérebros na academia para equacionar seus problemas. O estreitamento do elo entre universidade e mercado também tem a ver com a sofisticação da indústria nacional: enquanto ela cresce, as questões por solucionar vão demandando mais e mais expertise. É essencial que se estabeleça essa ponte. Os países que conseguiram se despir de qualquer ideologia e fazer isso com pragmatismo são também os mais inovadores. O Brasil deveria refletir sobre o assunto de forma estratégica, como faz, por exemplo, Singapura, uma ilhota de 50 quilômetros de diâmetro que virou sinônimo de inventividade. É um exemplo em que o Brasil poderia mirar. Quais são os aspectos que fazem de Singapura um país tão inovador? Olhe como funciona o CNPq de lá. Esse órgão, que serve para fomentar a pesquisa, conta com um grupo de sábios que vive de mapear janelas de oportunidade para a investigação científica. Eles não limitam a procura apenas a Singapura, evidentemente, mas prospectam no mundo inteiro áreas que podem trazer inovação e dinheiro. Definido o foco, garimpam os melhores especialistas, dentro e fora do país, e põem de pé a estrutura necessária, seja um laboratório, seja até mesmo um novo instituto. Eles têm em caixa um orçamento gigantesco, para cinco anos de trabalho, e zero de burocracia. Se a pesquisa termina, desativam aquele instituto, ainda que centenas de cientistas precisem ir para casa, e partem para desbravar outras áreas. No passado, investiram pesado em eletroeletrônicos. Depois veio o petróleo. É difícil de acreditar, mas, sim, o Brasil compra plataformas submarinas de Singapura, que nem petróleo tem. Não dá para competir. Somos devorados no campo das inovações. Como fazer com que os estudantes brasileiros deixem o grupo dos piores do mundo em matemática? Antes de tudo, é preciso entender que, ao contrário do que ocorre em outras disciplinas, o aprendizado da matemática é sequencial. Se o aluno não firma bem determinado conceito, fica mais difícil absorver o seguinte e pior ainda o que vem depois, sedimentando-se assim as lacunas. O ensino da matéria requer, portanto, uma escola organizada e um professor muito bem preparado; alguém que goste de dar aula, tenha domínio do conteúdo e consiga adequar-se ao nível de conhecimento do aluno. A matemática remete a um princípio elementar do espírito humano: o prazer de ser desafiado. Como um bom matemático pensa a matemática? Solucionando problemas mais e mais complexos. É exatamente isso que atrai tantos jovens à olimpíada. Onde estaria a solução para o desempenho sofrível nas salas de aula? Nas faculdades que formam os professores. O nível geral é baixo. Certa vez, falava a um grupo de educadores sobre como preparar os alunos para a olimpíada quando fui surpreendido pela franqueza de uma diretora de escola. "Como o senhor espera que a gente faça tudo isso se nem a matéria sabemos direito?”, ela me perguntou. Olhe a situação: era uma diretora, alguém no auge da carreira, que reconhecia suas deficiências mais básicas. E não é um caso isolado. Depois de oferecer um curso a docentes de escolas públicas, um conjunto de instituições de ensino do Rio constatou que um terço deles eram profissionais irrecuperáveis. Eles deveriam voltar para a escola. O problema é que os pais simplesmente confiam os filhos a essas pessoas. Agindo assim, diminuem as chances de eles galgarem degraus e competirem para valer no tabuleiro global. O que fazer para que as universidades formem professores mais capazes? Elas já são avaliadas, mas precisam ser cobradas de verdade. O governo poderia pensar em uma certificação mais séria, só concedida às que cumprem o papel de formar bons profissionais. As outras, medianas e ruins, devem se guiar por meias e mostrar efetivamente progresso para continuar a funcionar. Na pós-graduação brasileira, as notas são o que define as verbas destinadas a cada programa por CNPq c Capes. É um sistema fincado na meritocracia. Pergunto-me por que esse valor tão caro não se dissemina na educação como um todo. A resistência à ideia de distinguir pessoas e instituições por esforço e produtividade é um obstáculo que precisamos vencer. As próximas eleições presidenciais são, aliás, uma boa oportunidade para começar a elevar o nível do debate sobre os rumos na sala de aula. O senhor acha que os jovens enviados ao exterior pelo programa Ciência sem Fronteiras podem dar uma boa sacudida na universidade brasileira? Expor-se a um ambiente estimulante e meritocrático tem tudo para ser intelectualmente interessante e bom para o Brasil. O grau de efetividade, porém, vai depender dos caminhos percorridos no exterior. Se o estudante envereda por uma área que não tem nada a ver com a sua ou faz algo muito parecido com o que teria aqui, pode ser até atraente para ele, mas não parece que trará grande impacto ao país. Gosto muito da outra mão do programa: aquela que incentiva a vinda de estrangeiros na condição de professores visitantes. Eles arejam a academia nacional, trazendo uma cultura diferente e novas áreas de pesquisa. Na comparação com a China e a Índia, o Brasil forma poucos jovens em ciências exatas. Isso tem solução? Sem dúvida é um entrave que o Brasil precisa superar, e com urgência. As órbitas superiores da ciência têm justamente discutido estratégias para atrair jovens para essas áreas que tanto repelem os estudantes. Não há mistério: o caminho passa pela oferta de um ensino vibrante, capaz de cativar e moldar cabeças para as ciências desde muito cedo. Nesse sentido, a olimpíada de matemática cumpre um bom papel — revelando e estimulando os bons professores e seus alunos — mas é preciso mais. Os países avançados estão riscando seus planos de desenvolvimento para daqui a vinte, trinta anos; a formação de engenheiros, físicos e matemáticos é prioridade absoluta. O Brasil não é muito afeito a planos de longo prazo, mas devemos romper com essa lógica para entrar no jogo. Como a matemática pode ajudar? Ela figura entre as quatro grandes áreas do conhecimento apontadas hoje como fundamentais; fica ao lado de nanotecnologia, tecnologia da informação e das pesquisas sobre cognição. São elas que vão puxar o desenvolvimento da humanidade daqui para a frente. A matemática dá o impulso às outras três, ao lhes proporcionar os modelos. É também ferramenta básica para que o cidadão comum conheça números, interprete gráficos e tenha discernimento das coisas. Assim participará mais da sociedade em que vive, contribuindo para a consolidação da própria democracia.
Revista Veja
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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014
Entrevista - César Camacho
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