sábado, 4 de janeiro de 2014

Te Contei, não ? - O primeiro grito da terra

Em tempos de Fundamentalismo Islâmico, convém revisitar e refletir sobre a revolta que se iniciou perto do Rio Vaza-Barris, no norte da Bahia - a prova de que o fanatismo religioso é capaz de destruir até as causas mais justas

Da Redação
        
Montagem: Fabiana Neves com foto Nailson Moura
 
Arquivo 2D
 
I. Primeiras lições
Canudos é, do ponto de vista histórico, uma sucessão de equívocos lamentáveis. Em primeiro lugar, sem dúvida, a demonstração de que, em seus primórdios, a República brasileira - ou, o poder central, instalado no Rio de Janeiro - pouco administrava para além das fronteiras setentrionais de Minas Gerais; e também de que o fanatismo religioso é péssimo conselheiro.
Não há intenção de se fazer blague com o nome do líder revoltoso da Fazenda Canudos. A revolta liderada por Antônio Conselheiro reflete uma triste realidade: a do país esquecido pelos governantes à beira-mar. Uma nação de geografia inclemente, povo pessimamente instruído e ausência de Estado - o terreno fértil para um... conselheiro.
Araquém Alcântara Pereira
Canudos: geografia inclemente, povo pessimamente instruído e ausência de Estado
II. O Brasil esquecido
Nessa época, governava o Brasil Prudente de Morais, um republicano e abolicionista de bons princípios, mas pouco tino administrativo - e, ainda por cima, tolhido por problemas de saúde. Foi nesse cenário que, silenciosamente - as vias de comunicação do Nordeste com a capital eram, naquela época, de difícil funcionamento e lentíssimas -, instalou-se na antiga Fazenda Canudos, ainda em 1893, o sertanejo Antônio Conselheiro, de 65 anos. Em torno de sua pregação foi se formando uma comunidade.
O Brasil interiorano do fim do século 19 era, do ponto de vista das leis, da ação do Estado e da criatividade local para seu desenvolvimento econômico, terra arrasada. Especialmente na parte oriental da região Centro-Norte, que abarcava o sertão Nordestino - distante do mar, dos entrepostos de comércio, dos principais jornais.
Bruno Rizzo
Rio Vaza-Barris e o Riacho de Umburanas, vida difícil e de pouco esperança
IPHAN/SR - BA
Antonio Conselheiro e seus camponeses-combatentes que raramente se deixavam fotografar
Os descendentes dos indígenas viviam à míngua, misturados a antigos escravos, à miséria social controlada pelos latifundiários. Os negros padeciam da falta de qualificação para os modos de produção inspirados na Revolução Industrial. A semente capitalista exigia proletários - trabalhadores com alguma especialidade -, não escravos. Os brancos e miscigenados das camadas mais pobres da sociedade interiorana conformavam uma crescente massa de deserdados da sorte, à procura de uma voz - ou um poder - que lhe servisse de guia. A propaganda oficial consistia em palavras que não se traduziam em atos - ou levavam tempo demais para fazê-lo.
Para além dessas circunstâncias sociais desfavoráveis havia a inclemência do clima e a fome. As culturas do milho e da mandioca mal vingavam em um solo árido. E mesmo para a comunidade de Canudos, instalada perto do Rio Vaza-Barris, a vida era difícil, de pouca esperança. No sertão baiano, a alternativa era contar com a "generosidade" e a modernidade das máquinas adquirida por uma elite de "coronéis". E pelo socorro nem sempre em tempo das obras caritativas da Igreja Católica.
No norte da Bahia apareceu, então, uma outra via: as pregações de Antônio. Antônio Conselheiro. Foi para essa população sem terra, forçada a se submeter aos coronéis, que ele surgiu. As terras que os sertanejos aravam pouco produziam, e o Conselheiro se apresentava como um emissário de Deus, vindo para abolir as desigualdades sociais, o descaso da República, os impostos escorchantes. No arraial de Canudos, começou a correr a notícia de que o líder era, na verdade, um divino mestre. Alguém, por sua sabedoria, capaz até de praticar milagres - afinal, não era ele um enviado de Deus?
IPHAN/SR - BA
IPHAN/SR - BA
Prisioneiros sobreviventes do massacre
1897, as crianças órfãs foram levadas como "trófeus"
 
 
 
III. A vida em Canudos
A fama de reduto que se autogovernava sem esperar pela ajuda da República, e que contava com a proteção de um líder místico e aparentemente poderoso, transformou a comunidade de Canudos em pólo de atração para os migrantes menos preparados para sobreviver ao sertão baiano. O território era, à época, varrido por hordas de desordeiros e bandoleiros. Eles estimulavam agitações sociais e aliciavam camponeses para bandos armados que apavoravam comunidades pacíficas e invadiam as propriedades dos "coronéis".
IPHAN/SR - BA
IPHAN/SR - BA
Ruínas da Igreja Velha de Santo Antônio e Ruínas da Igreja Nova
Tropa do Exército Brasileiro acantonada no interior de Canudos
A própria geografia do norte da Bahia era um castigo. O clima seco castigava a região, danificava o plantio de alimentos, secava os diques e matava de sede os animais. Antônio Conselheiro e seus devotos proclamavam a salvação da alma - e o povo tinha fé que seu messias o ajudaria a resistir. A Igreja não foi páreo para Antônio Conselheiro, mesmo com as primeiras reações do governo de Salvador e de algumas autoridades do Rio, que insistiam em rotular o líder de Canudos como "falso religioso".
Em 1896, o arraial de Conselheiro, habitado por um ajuntamento de 3 mil a 4 mil famílias, tinha a sua própria rotina econômica. Nessa comunidade predominavam cerca de 20 mil sertanejos, que compartilhavam a produção entre todos os habitantes do lugar (inclusive negros e indígenas), e ainda trocavam o excedente dessa modesta geração de riqueza com as cidades vizinhas - uma forma rudimentar de adquirir os bens e alimentos não disponíveis em Canudos.
As compras de artigos vindos de fora da comunidade logo passaram a incluir armas, como mosquetões e pequenos revólveres. Esse parco arsenal iria equipar as milícias encarregadas de defender o arraial das investidas organizadas pelo governo baiano e pelos latifundiários.
IPHAN/SR - BA
Soldados do governo na guerra de Canudos
IV. Aliança para o massacre
Os "coronéis" haviam organizado uma aliança com a Igreja e com as autoridades de Salvador e do Rio, pois todos perdiam com a vitalidade da comunidade de Canudos. Os latifundiários perdiam mão de obra, a Igreja perdia fiéis, a autoridade constituída perdia credibilidade...
Nesse cenário, os padres e as famílias dos latifundiários procuraram os jornalistas e intelectuais. Logo começou a circular a versão de que Canudos era a semente de uma rebelião que pregava a volta da monarquia. O governo baiano viu-se forçado a reagir. Um pedido de ajuda ao Rio encontrou o poder central nas mãos do presidente em exercício, Manuel Vitorino Pereira, que assumira o poder no lugar de Prudente de Morais, afastado do cargo desde 10 de novembro de 1896, por motivo de doença.
IPHAN/SR - BA
Vista geral de Monte Santo, destruída
No plano militar, sucessivas vitórias dos amotinados de Antônio Conselheiro sobre três colunas expedicionárias - organizadas e apoiadas por Salvador - fizeram Prudente interromper a convalescença de uma cirurgia. Ele nomeou o ministro da Guerra, general Carlos Machado Bittencourt, como comandante de uma ampla operação que deveria liquidar a resistência de Canudos. Machado Bittencourt designou o general Artur Costa para comandar um corpo expedicionário de aproximadamente 10 mil homens.
A comunidade de Canudos foi arrasada em uma terça-feira, 5 de outubro de 1897, depois que, naquele primeiro fim de semana do mês, muitas de suas posições defensivas já haviam sido penetradas pelas tropas legalistas. Dezenas de famílias aproveitaram a confusão para fugir - mas centenas de outras não tiveram a mesma iniciativa. Elas ficaram ali, no palco do massacre que entraria para a história como o mais intenso já perpetrado no interior do Brasil.
 
Da revolta só restou, hoje, a mansidão
Josué Ribeiro
VII Celebração Popular pelos Mártires de Canudos, 1990
O Canudos de hoje é um município baiano do vale do Rio Vaza- Barris - no conhecido Polígono das Secas -, de 2.984 km², 16 mil habitantes e governo entregue aos representantes de um partido sem expressão (o PRB). Trata-se da terceira Canudos dessa região. A primeira surgiu no século 18, às margens do Vaza-Barris, a uns 12 km de sua sede atual: uma pequena aldeia nos arredores da Fazenda Canudos. Com a chegada de Antônio Conselheiro e seus seguidores, em 1893, o lugar foi rebatizado de Belo Monte e expandiu- se, chegando a ter, em 1897, 25 mil habitantes.
A segunda Canudos surgiu 13 anos depois da primeira ter sido arrasada pelo Exército, bem sobre as ruínas de Belo Monte. Seus fundadores eram os sobreviventes do massacre. Mas depois de uma visita do presidente Getúlio Vargas ao lugar, em 1940, decidiu-se construir um açude no local. Em 1950, com o princípio das obras de construção da barragem que inundaria o vilarejo, os habitantes começaram a deixar aquele local. Foram para Euclides da Cunha, Feira de Santana e outras cidades. Mas então, alguns voltaram, e um novo povoado se formou aos pés da barragem em construção, em uma antiga fazenda chamada Cocorobó, a 20 km da segunda Canudos.
Evandro Teixeira
Cerac
Canudos Velho
Terceira Canudos
Em 1969, veio a inundação prevista ainda em fins dos anos de 1940. Um pequeno bairro do vilarejo perto da barragem ficou fora das águas e, hoje, é chamado de Canudos Velho. Em 1985, a população da área da fazenda Cocorobó conseguiu a transformação de sua comunidade em município. O nome dessa nova unidade do Estado baiano não podia ser outro: surgiu a terceira Canudos.
Vestígios
Entre 1994 e 2000, os períodos de seca deixaram à mostra as ruínas da segunda Canudos. Mas também a terceira Canudos guarda lembranças da Revolta. O Parque Estadual de Canudos preserva alguns pontos onde ocorreram as batalhas da Guerra de Canudos, dentre eles o Alto do Mário, o Alto da Favela e a sede da Fazenda Velha - onde morreu o Coronel Moreira César, conhecido como "o corta-cabeças", em sua desastrada tentativa de conquistar Canudos.

O Instituto Popular Memorial de Canudos preserva o Cruzeiro de Antônio Conselheiro, crivado de balas, além de uma coleção de arte popular inspirada na história do Belo Monte e uma pequena biblioteca sobre a guerra de Canudos e questões camponesas. O Memorial Antônio Conselheiro, mantido pela Universidade Estadual da Bahia, guarda achados arqueológicos da região, além de algumas roupas e máscaras, usadas na produção do filme "A Guerra de Canudos", de Sérgio Rezende.
agosfoto.com.br
Vista parcial da Terceira Canudos
 
 
Canudos, por Carpeux
Otto Maria Carpeaux nunca nasceu. Otto Karpfen sim, nasceu em Viena, em 9 de Março de 1900. Ele estudou filosofia, matemática, sociologia, literatura comparada e ciências políticas nas principais metrópoles europeias. Dedicou-se à música, casou-se com Helena em 1930, e então... vieram os nazistas.
Refugiado em Antuérpia, no norte da Europa ele precisou "matar" o sobrenome judeu Karpfen e "dar à luz" o "Maria Carpeaux" - supostamente francês -, para poder alcançar o Brasil sem sofrer preconceitos.
Seu texto sobre Canudos é antológico. A visão de outsider sobre um fenômeno tipicamente brasileiro. Mas não brasileiro das cidades, não um fenômeno urbano. Um fenômeno do campo, eivado de miséria, desencanto e fanatismo religioso. Algo que soa muito parecido a certas explosões de violência dos nossos dias.
Deixemos que Otto Maria Carpeaux - ou Herr Karpfen - nos conte:
A lição de Canudos, sempre atual
Todos, no Brasil, conhecemos Canudos. A rebelião dos sertanejos baianos, sob a chefia do sectário místico que se chamava Antônio Conselheiro, sacudiu fundamente os primeiros anos da vida republicana do país. É um dos episódios mais fascinantes da história brasileira e sobre este tema foi escrita uma das obras-primas da literatura nacional: Os Sertões, de Euclides da Cunha, que assistira às expedições militares contra aqueles fanáticos, notando como aqueles homens violentos, ignorantes, bárbaros chegaram a perturbar a pacata vida provinciana do Brasil de 1897, assustando os burgueses, os bacharéis, os poetas e até os oficiais do Exército.
IPHAN/SR - BA
IPHAN/SR - BA
Corpos de camponeses espalhados após a batalha e funeral de Antonio Conselheiro
Sobre os fatos de Canudos, existem muitos livros e inúmeros estudos esparsos. Cada geração, das que se sucedem, encontra algo de novo naquela história impressionante. Nossa época atual também é capaz de encontrar algo de inusitado naquele acontecimento: um aspecto que antes não se tinha percebido. Canudos é, novamente, uma atualidade.
Euclides foi o primeiro que escreveu sobre Canudos. Era ex-oficial do Exército, grande escritor, homem culto e até erudito, mais tarde, alto funcionário do Itamarati, professor do Colégio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Letras, enfim: pertencia às classes dirigentes do país. Mas a Revolta de Canudos ensinou- lhe o fato de que a maioria dos brasileiros eram homens do campo, analfabetos, roídos pelas doenças, iludidos pelas superstições, um povo esmagado pela miséria. Esta era a realidade brasileira. Seguindo as lições da ciência de seu tempo, Euclides explicou essa realidade bárbara pelo clima adverso, pela esterilidade das terras e pela esterilidade mental das massas brasileiras, desses mulatos e mestiços que não têm capacidade para conquistar pelo trabalho um decente nível de vida. Explicou o acontecimento de Canudos em função da raça e do ambiente físico.
Mas a raça e o ambiente físico são fatores imutáveis. Ninguém é, nem será jamais capaz de modificá-los. Então, sempre será assim como foi? Desgraças como a revolta selvagem dos miseráveis analfabetos de Canudos seriam capazes de repetir-se novamente? Mas então era preciso manter essas massas irresponsáveis sob o guante da disciplina severa dos governos fortes. Canudos parece ser, assim, justificativa perene para a existência e a manutenção das ditaduras. Entretanto, assim não o é. Euclides da Cunha tinha estudado os aspectos geográficos e raciais de Canudos. Um estudioso de nossos dias, Rui Facó, examinou os aspectos sociais de Canudos: os fatores que não são imutáveis, mas que a história criou no passado e que, por isso, a história do futuro poderá modificar ou mesmo abolir. Quais foram esses fatores sociais de Canudos?
Os historiadores brasileiros costumam zombar da incrível ignorância desse chamado Antônio Conselheiro, desse sectário que chefiava os sertanejos de Canudos: pois em 1897, oito anos depois da proclamação da República, o homem ainda não queria tomar conhecimento dela e teimava em professar sua lealdade ao para ele ainda Imperador D. Pedro II. Mas, se olharmos mais de perto para a realidade de então, perceberemos que o homem tinha razão: a República não tinha, para os sertanejos, mudado nada, e o Brasil, sob um presidente da República, era o mesmo Brasil do Imperador, continuando os sertanejos dominados pelos mesmos latifundiários. O Brasil oficial negava, indignado, esse fato. Só um analfabeto poderia pensar assim. Acontece que os latifundiários, eles próprios, também pensavam assim. Pois quando os sertanejos de Canudos começaram a reunir-se em torno de seu chefe de seita, o major proprietário de terras da região, um típico barão feudal, retirou dali sua família e seus pertences.
O barão já parecia ter percebido o que Rui Facó nos ensina hoje: que o misticismo sectário de Canudos era a expressão da esperança de acabar com a miséria que há séculos oprimia os camponeses brasileiros e que continua a oprimí-los. Homens ignorantes e supersticiosos como aqueles, não sabiam nada de reivindicações sociais. Esperavam da Igreja a redenção, e quando os bispos e vigários, ligados às classes dominantes, não ouviram o grito de desespero, os sertanejos de Canudos separaram-se da Igreja, tornando-se sectários. O verdadeiro motivo dos movimentos rebeldes nos campos brasileiros é a estrutura da sociedade brasileira. Essa estrutura não é um fato da natureza ou da raça, que seria imutável. Foi criada pelos homens no passado e poderá ser modificada pelos homens, no futuro. Basta que se queira. Mas se queira de maneira adequada.
Como modificar a estrutura da sociedade brasileira, se ela é protegida e garantida pela política, pelas forças armadas, pelos grupos conservadores e por todos os poderes públicos?
Isso também nos ensinou Antônio Conselheiro. Mas só hoje começamos a compreender sua lição. É uma faceta de Canudos que até os dias que correm nunca foi devidamente apreciada: o aspecto tático militar.
Como começaram as coisas? Os sertanejos de Canudos estavam, por volta de 1895, pacatamente reunidos em seu reduto, apenas trabalhando para seu sustento e o dos seus. Mas é isso que homens como o então barão de Jeremoabo não toleram: pois querem que os camponeses trabalhem para o sustento dos barões, como hoje os grandes proprietários de terras querem que os camponeses trabalhem para o seu sustento. Surgiram, então, boatos de violências perpetradas pelos sertanejos e boatos da natureza perigosa das superstições que eles professavam; assim como, ainda hoje, surgem, a toda hora, boatos de rebeldia, de "atos de terrorismo", e da periculosidade de "ideologias exóticas". Então, as autoridades resolveram agir.
do Estado da Bahia mandou para Canudos um batalhão da polícia estadual, bem armado, sob o comando do tenente Pires Ferreira. Os sertanejos, atacados, defenderam-se com espingardas de caça, facões de mato e cacetes de madeira - e na escaramuça de Uauá obrigaram os policiais a fugir. Em janeiro de 1897, o governo da Bahia voltou ao ataque, contando com o apoio do governo federal. Mandou para Canudos tropas estaduais e federais, sob o comando do Major Febrônio de Brito - que sofreu nova derrota.
Em fins de fevereiro de 1897, seguiu para Canudos verdadeiro destacamento misto, composto das três armas: infantaria, cavalaria e artilharia, sob o comando do coronel Moreira César, temido pela sua energia e ferocidade, e as tropas foram novamente derrotadas pelos sertanejos precariamente armados, que conheciam melhor o terreno e se tinham espalhado pela retaguarda das tropas. O próprio coronel Moreira César foi, no campo de batalha, morto pelos rebeldes.
Enfim, só em junho de 1897, acabou tudo, mas, para tanto, foi necessário reunir três brigadas de infantaria, acompanhadas da artilharia, sob o comando do general Artur Oscar, que conquistou Canudos e mandou fuzilar milhares de sertanejos, cujos corpos foram barbaramente mutilados. Eis como não foi fácil vencer Canudos. Sobre esse aspecto tático militar de Canudos não se falou nada, até hoje. Não se fala nada, aliás, sobre muitas coisas.
IPHAN/SR - BA
Fim do líder político-religioso
Homenageia-se Euclides da Cunha, o historiador de Canudos, como grande figura das letras nacionais e do Exército Brasileiro e da Academia, mas não se conta ao povo que esse mesmo Euclides, em novembro de 1888, ousou jogar seu sabre de oficial aos pés do ministro da Guerra, para protestar contra uma lei iníqua. E não se conta que o mesmo Euclides organizou em São José do Rio Pardo, em 1º de maio de 1901, a primeira festa de 1º de Maio socialista em solo brasileiro. Não querem saber de tais atos de rebelião social de um oficial do Exército Brasileiro. Pois sabem que fatores sociais explicam a fraqueza de qualquer exército do mundo, ante a revolta organizada dos oprimidos.
O Exército Brasileiro de 1897 podia ser, em comparação com os exércitos das grandes potências, materialmente obsoleto e taticamente fraco. Mas, em comparação com os sertanejos de Canudos, era tática e materialmente superior. Entretanto, mostrou-se vulnerável à tática das guerrilhas. O Exército Brasileiro de hoje continua a não poder se comparar com os exércitos das grandes potências, seja em número, seja em apetrechos bélicos. Mas, os exércitos das grandes potências tampouco podem contra as guerrilhas. Antônio Conselheiro é o precursor de Mao Tsé-tung na China, de Boumedienne na Argélia e dos Vietcongues no Vietnã. Canudos foi a semente da China Brasileira, da Argélia Brasileira, do Vietcongue Brasileiro. Mas - dirão vocês! -, apesar de tudo, os sertanejos de Canudos foram enfim derrotados! Sim, porque eram guerrilheiros improvisados e não conheciam bem os princípios da guerrilha: concentraram-se num reduto em vez de se espalharem pela região. Foi um erro. Mas também os erros constituem ensinamento.
O Canudos da segunda metade do século 20 não será um reduto, um foco só, uma base só, mas o país inteiro. Será? Mas quando? Podemos esperar. E esperar indefinidamente? Não. Não é preciso esperar tanto. Quando, em novembro de 1888, o então cadete Euclides da Cunha, em presença de todo o corpo de generais brasileiros, jogou seu sabre aos pés do ministro da Guerra do imperador, ninguém poderia saber que só um ano depois, em novembro de 1889, a monarquia, com todos os seus generais e ministros, já estaria desaparecida muito depressa: só um ano! Hoje, que as coisas andam muito mais depressa, é lícito acreditar que não precisaremos esperar muito, sobretudo se seguirmos os ensinamentos da lição de Canudos.

[Artigo datilografado, não assinado, possivelmente do início da década de 1970, que se encontra entre os papéis de Otto Maria Carpeaux, depositados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Uma correção autógrafa, na penúltima linha, a palavra depressa, autoriza a atribuição.]



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