sábado, 4 de janeiro de 2014

Personalidades - Simonal, a fábula maldita

Quatro decadas depois de ter organizado a tortura de um seu empregado no DOPS carioca, o cantor Wilson Simonal, morto em 2000, ainda divide opiniões, e sua história ilustra intensidade das tragédias gestadas no ventre da ditadura brasileira

Por Roberto Lopes
        
 

“Era 1987, e devia ser umas seis e meia ou sete da noite. Eu já estava na minha poltrona, no vôo da Varig que saía de Congonhas com destino a Curitiba. Foi quando o Simonal entrou. Trôpego, vinha amparado por um assessor. Não estava mal vestido, mas o aspecto era de desmazelo. Estava magro, mas tinha o rosto inchado, vermelho. Não fez escândalo e nem falou alto, nada. Parecia, claramente, bêbado”.
 

Divulgação / José Augusto de Moraes
O relato é do psicanalista paulista José Augusto de Moraes(foto ao lado), um bem-sucedido especialista em coaching, de 62 anos, cuja rotina se traduz em prover altos executivos das ferramentas e conhecimentos que lhes permitirão o melhor desenvolvimento profissional (executive coaching) e pessoal (life coaching).
Vinte e quatro anos atrás, Moraes era ainda um recém-chegado ao Brasil. Ele passara uma longa temporada nos Estados Unidos, onde se graduara no Instituto de Motivação para o Sucesso (Success Motivation Institute), da cidade texana de Waco. Ali, captara a doutrina do filantropo americano Paul J. Meyer, que desde um remoto ano de 1960 vinha formando consultores das mais diversas nacionalidades: treinadores de gente (naquele tempo ainda não se falava em coaching), cuja tarefa seria preparar as lideranças civis dos seus países para que eles se tornassem pessoas cada vez mais bem-sucedidas.
Amuado em sua poltrona de avião, olhar desconcentrado, o cantor Wilson Simonal de Castro – identificado centenas de vezes pelos principais jornais, no período de 1971 a 1974, como um dedo-duro da Ditadura – era, por outro lado, a antítese do sucesso. Seu último álbum – “Alegria Tropical” – saíra em 1985, pela gravadora Copacabana. O próximo – “Sambas da Minha Terra” –, precisaria esperar até 1991 para ser lançado pela Sony Music.
Ilustração Fabiana Neves
Nos 13 anos de vida que lhe restavam, Simonal, que já duetara com celebridades da música internacional, como Sarah Vaughan, Steve Wonder, Quincy Jones e o brasileiro Tom Jobim, conseguiria gravar apenas mais cinco álbuns, saltando de gravadora em gravadora: Sony, Warner, Movieplay, EMI e Happy Sound. “Eu não existo para a música popular brasileira”, concluiria ele, no fim dos seus dias, para a segunda mulher, Sandra Cerqueira. Estava certo: o cantor era um morto-vivo no cenário artístico tupiniquim. Alguém que ainda servia para gravar comercial de supermercado (como o que ele “estrelou”, ao lado do ícone “brega” Waldick Soriano), cantar em restaurante, numa festa de bairro da zona norte carioca ou (no máximo) em uma capital como a paranaense, fora do eixo Rio-São Paulo – a caixa de ressonância do país.
 
Nos 13 anos de vida que lhe restavam Simonal, que já duetara com celebridades da músicas internacional, como Sarah Vaughan, Steve Wonder, Quincy Jones, e o brasileiro Tom Jobim, conseguiria gravar apenas mais cinco álbuns
 
 
No longo artigo “Simonal e a ditabranca” (pedroalexandresanches.blogspot. com), de junho de 2009, o jornalista Pedro Sanches, diz que o artista “condensava, em si, qualidades (e/ou cacoetes) de personagens tão variados quanto Frank Sinatra, Agostinho dos Santos, Sammy Davis Jr., Cyro Monteiro, Ray Charles, Lúcio Alves, Harry Belafonte, Dick Farney, Chris Montez, João Gilberto, Chacrinha, Hebe Camargo, Silvio Santos, Roberto Carlos, Elis Regina, Sergio Mendes, Jorge Ben etc. e tal”.
Pois bem. Na metade final dos anos de 2000, quando três respeitados talentos – o comediante Claudio Manoel, e os cineastas Micael Langer e Calvito Leal – decidiram documentar em filme a trajetória de Wilson Simonal, foi como se toda essa nuvem de referências musicais se dissipasse no ar. Durante a entrevista de lançamento do filme “Ninguém sabe o duro que dei”, na última semana de maio de 2009, o repórter Oswaldo Faustino, um negro baixo, simpático e gorducho, que conhecera o cantor pessoalmente – e dele guardava lembrança generosa –, foi direto: “Alguém se recusou a participar do programa, revelando o que conhecia do Simonal?”
Ilustração Fabiana Neves
“Muitos!”, foi a resposta seca mas eloquente do produtor e diretor Claudio Manoel para a plateia de jornalistas. Ele apenas se esquivou da penosa tarefa de elencar nomes. Mas sabe-se: o “Rei” Roberto Carlos, que em 1986 recebera o morto-vivo Simonal – de forma breve mas afetuosa – em seu camarim do Maracanãzinho, foi um dos que, procurados pela produção do documentário, jamais se dignaram a sequer responder se topavam, ou não, gravar uma lembrança qualquer do antigo “Rei da Pilantragem”. Jorge Ben foi outro que sumiu nessa nuvem de silêncio.
Para o psicanalista – e especialista em sucesso -- José Augusto de Moraes, “Simonal era não apenas um personagem egóico, mas também uma pessoa sem a clara valoração da simbologia, isto é, sem a base que permite aos seres humanos recolher e interpretar adequadamente os sinais gerados por suas trajetórias pessoal e profissional. Alguém que achava que podia tudo. Um caso bem parecido com o de certos jogadores de futebol, que se deixam inebriar pela sensação de onipotência gerada pela idolatria dos fãs, da imprensa e da torcida”.
 
 
No caso de Wilson Simonal, o fardo foi pesado demais .E ele sucumbiu. Afogado na depressão e no álcool, o cantor matou sua incrivel a ventura de "Principe Encantado das Meninas Negras", como bem define aativista Sueli Carneiro
 
“Ninguém sabe o duro que dei” trilhou a carreira de sucesso de seu protagonista. Mas, ao contrário dele, é rico, riquíssimo em simbologia.
Aclamado pela crítica, ainda este ano ele foi reprisado pelo canal de TV a cabo GNT, controlado pelas Organizações Globo. Entre os seus méritos, está o de permitir ao espectador perceber, no rol de testemunhos, ausências notáveis, como as de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jair Rodrigues e Ivan Lins – todos contemporâneos de Wilson Simonal (e parte daqueles “muitos” que Claudio Manoel não quis nomear).
É assim a vida, pontilhada de decepções. E, apesar delas, é preciso que sigamos em frente. No caso de Wilson Simonal, o fardo foi pesado demais. E ele sucumbiu. Afogado na depressão e no álcool, o cantor matou sua incrível aventura de “Príncipe Encantado das Meninas Negras”, como bem define a ativista Sueli Carneiro [leia depoimento de Oswaldo Faustino]. Uma saga que, arguto, o jornalista Sanches observa, “não foi ficção, embora pareça fábula”.
        
Cronologia de uma tragédia
Divulgação
5 de julho de1969
• Escalado para fazer o show de abertura do “concerto de despedida” da turnê brasileira do músico Sérgio Mendes (que se radicara nos Estados Unidos), o cantor Wilson Simonal dá um inédito espetáculo de musicalidade e carisma, comandando a cantoria das 30 mil pessoas que haviam ido aquela noite ao Maracanãzinho. Era para ser a festa de Sérgio Mendes, mas foi a inesquecível apoteose do mestre do suíngue – o auge de uma carreira de apenas oito anos, tão rápida quanto brilhante.

24 de agosto de1971
• Informado de que se encontra profundamente endividado, Simonal conclui que foi roubado por seu contador, Raphael Viviani. Ele, então, manda dois amigos – um deles, seu segurança – sequestrar Viviani no bairro de Copacabana, e arrancar dele a confissão sobre um suposto desfalque. Perto da meianoite desse dia, Viviani é levado para a sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Estado da Guanabara, na Rua da Relação – centro do Rio –, e torturado com socos, pontapés e choques elétricos na língua e nos órgãos genitais. Logo no dia 25 o contador escreve uma confissão para se livrar das sevícias, dizendo que gastou o dinheiro da empresa Simonal Produções Artísticas em noitadas “com mulheres”. Não satisfeito, o cantor dará declarações a amigos e jornalistas, vangloriando-se de suas ligações com agentes da Ditadura.

Acervo 2D
Novembro de 1971
• Simonal é vaiado em um show no Teatro Opinião, a casa de espetáculos de protesto e de resistência ao Regime Militar, no Rio. O tablóide carioca “O Pasquim”, que também representa a oposição ao autoritarismo e à censura, o chamará de delator. As vendas de seus discos caem drasticamente, e o cantor tem alguns shows cancelados; os convites para novos espetáculos rareiam. Simonal passa a ser evitado por músicos e agentes artísticos. Os jornalistas continuam a procurá- lo, mas agora para repercutir a boataria acerca de seu suposto envolvimento com a repressão.

13 de novembro de 1974
• Wilson Simonal e os sequestradores que ele recrutou são condenados pela Justiça Criminal do Rio. No curso do processo a vítima do artista, Raphael Viviani, revelou que Simonal fora à falência porque brigara com João Magaldi, diretor de comunicações e marketing da Shell, empresa que patrocinava Simonal – e não por causa de algum desfalque. Acusado de extorsão mediante sequestro, o cantor é condenado a cinco anos e quatro meses de prisão, mais um ano de internamento em colônia agrícola. Mas em 1976 essa acusação é desclassificada para outra bem mais leve (e inadequada), de constrangimento ilegal, e a pena reduzida para três meses de detenção. Simonal passou apenas nove dias preso.

Janeiro de 1999
• O então Secretário Nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, assina um documento atestando que, após pesquisa realizada nos arquivos de órgãos federais, como o Serviço Nacional de Informações e o Centro de Informações do Exército, não foram encontrados registros de que Wilson Simonal de Castro tivesse sido servidor, prestador de serviços eventuais ou simples colaborador voluntário dessas organizações. O cantor vai ao programa de TV de sua amiga Hebe Camargo, e lê o texto da nota de Gregori, mas a repercussão que obtém com esse gesto é ínfima.

25 de junho de 2000
• Simonal morre no Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, vítima de falência múltipla dos órgãos decorrente de gravíssima disfunção hepática. Ao seu enterro, no Cemitério do Morumbi, comparecerão apenas umas 60 pessoas – o sepultamento, em 1986, do apresentador de TV Flávio Cavalcanti (apoiador declarado da Revolução de 1964) reuniu 2 mil. O adeus a Simonal atraiu bem poucas personalidades do mundo artístico: Ronnie Von, Jair Rodrigues e Silvio Britto foram três delas. Eles tiveram a companhia do cantor Pedro Camargo Mariano, filho de Elis Regina com César Camargo Mariano, um dos músicos arranjadores que Simonal mais prezava.

10 de novembro de 2003
• Após investigação de um ano sobre o passado de suposta cooperação de Wilson Simonal com os serviços de segurança da Ditadura, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conclui: o cantor é “artista honrado e merecedor do reconhecimento nacional, razão pela qual tem o direito de ser reabilitado moralmente, mesmo que de forma tardia”. A apuração da OAB fora solicitada pela família do artista, mas seu resultado obteve uma divulgação apenas modesta na mídia.

Acervo 2D
Setembro de 2009
• Chega às lojas o último álbum com músicas de Wilson Simonal – 16 canções lançadas entre 1972 e 1974 –, batizado de “Um Sorriso Para Você”. Trata-se da oitava coletânea do cantor (morto em 2000), desde que, em 2002, as gravadoras voltaram a reeditar seu trabalho
 
        
Amigo de coronel Erasmo defensor dos militatres
Ilustração Fabiana Neves
Ao menos uma vertente da imensa polêmica criada em torno da proximidade entre Wilson Simonal de Castro e os militares patronos do golpe de 1964, não merece permanecer à sombra da História: sim, o mestre do suíngue – que havia sido cabo do Exército – admirava sua antiga corporação, e a defendia com entusiasmo.
A mãe, lavadeira e empregada doméstica, gostaria que ele tivesse seguido carreira na caserna, mas o ritmo dos blues predominante no fim da década de 1950 foi mais forte, e o sugou com a força de uma ventosa para fora do quartel. “O Simonal não admitia que se falasse mal dos militares”, confirma o repórter Oswaldo Faustino, que o acompanhou de perto durante a parte final dos anos de 1990. Em seu depoimento para a Leituras da História, Faustino faz uma segunda revelação importante: a proximidade entre o artista e o Coronel da reserva do Exército Erasmo Dias, um veterano combatente, na década de 1970, de estudantes, guerrilheiros e demais opositores da Ditadura. Dias fora Coronel de Artilharia, Simonal, cabo da mesma Arma do Exército. “Conforme Patrícia, tratava-se de um amigo de seu pai”, lembra o jornalista.
A 28 de agosto de 1971, ao depor no inquérito que investigava o sequestro do contador Raphael Viviani, que ele próprio organizara, Simonal declarou-se “um homem de direita” – caracterização que, mais tarde, deixaria de lado, para se declarar apenas “um nacionalista”.
Em maio de 1999, questionado pelo jornal “Folha de S.Paulo” se era favorável ao regime militar, Simonal ainda tentou proteger o seu Exército: “Todo mundo era contra. Aquilo durou muito tempo por incompetência. Não acredito que nenhum milico fosse favorável. Milico não foi treinado para isso”.
 
 
Fogo amigo (Como os agentes da Ditadura queimara o cantor tido como "colaborador" das Forças armadas")
Ilustração Fabiana Neves
Como acontece em todo o episódio polêmico que, no curso da História, acaba ficando para trás, o da suposta cooperação do cantor Wilson Simonal com os órgãos de informações e de repressão da Ditadura instaurada pelo Movimento de 1964, vai, com o tempo, ganhando mais e mais limbo – e perdendo as últimas fontes habilitadas a esclarecê-lo.
Não são poucos os acusadores de Wilson Simonal. O músico Paulo Vanzolini, hoje com 87 anos, detesta o cantor, e não hesita em lembrá-lo como um mero “dedo-duro”. Bem mais importantes, do ponto de vista histórico, são, contudo, os depoimentos colhidos pela Justiça do Rio, junto ao Inspetor Mário Borges, à época chefe da Seção de Buscas Ostensivas do DOPS do Estado da Guanabara, e a um oficial lotado na área do então I Exército, o Tenente-Coronel Expedito de Souza Pereira.
Ouvido a 16 de novembro de 1972 na 23ª Vara de Justiça Criminal, o detetive Borges disse que o cantor “era informante do DOPS e diversas vezes forneceu indicações positivas sobre atividades de elementos subversivos” – acusação gravíssima que a defesa do cantor tentou argumentar, vinha desacompanhada dos nomes daqueles que teriam sido delatados.
O próprio Simonal havia, contudo, se encarregado de prevenir tal “falha”... Ainda em 1971, demonstrando sua aguda incapacidade de entender o momento político – e as consequências que poderiam advir de seus atos –, ele, ao depor na 13ª Delegacia de Polícia, de Copacabana sobre o sequestro e a tortura de seu contador, lembrou: a 24 de agosto, dia em que Raphael Viviani desapareceu, estivera efetivamente no DOPS, onde, entre outras considerações, revelara que conhecia “como da área subversiva”, “uma irmã do senhor Carlito Maia [Carlos Maia de Souza, publicitário de 47 anos, nascido em Minas Gerais]”. A informação tinha, para o pessoal do DOPS, valor apenas relativo, pois a pessoa denunciada era uma uma velha conhecida da repressão: a produtora cultural Dulce Maia, de 33 anos, integrante do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e ex-presa política, àquela altura exilada.
 
 
Mário Borges era um agente da repressão bastante familiar à militância de Esquerda que, no período agudo de 1967 a 1978, enfrentou a Ditadura. Ele chegara ao DOPS da Guanabara em 1966, e, nas sessões de tortura, algumas de suas vítimas souberam que eram “interrogadas” pelo “Capitão Bob”. Mas igualmente relevante para a desgraça de Wilson Simonal foi o depoimento em Juízo, a 29 de julho de 1974, do recém-promovido (em abril daquele ano) Tenente-Coronel do Exército Expedito de Souza Pereira, militar cujo perfil representava, para a resistência à Ditadura, não mais do que um enigma.
Ele entraria para o índice onomástico do caso, como a pessoa que rotulou o artista como “colaborador das Forças Armadas”. Leituras da História resgatou traços da biografia desse outro acusador de Simonal. Gaúcho de nascimento, Expedito Pereira integrou a turma de 1949 do Colégio Militar de Porto Alegre; três anos mais tarde concluiu o curso preparatório de oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras.
Descrito por seus colegas como um jovem oficial enérgico, do tipo “faca-naboca”, Pereira graduou-se no Centro de Instrução de Guerra na Selva, de Manaus, tradicionalmente frequentado pela elite da Força Terrestre.
Em 1971 ele servira como Relações Públicas do Comando do I Exército, em um escritório cujos janelões, na lateral do antigo prédio do Ministério da Guerra, às margens da Avenida Presidente Vargas, bem no centro do Rio, davam para a movimentada Estação Central do Brasil. Em 1974 esse oficial já havia sido removido para o corpo de oficiais da Escola Superior de Guerra, no aprazível e muito mais tranquilo bairro carioca da Urca.
É do termo de seu depoimento na Justiça: “Conhece o primeiro acusado [Simonal] porque após a revolução de 64 o primeiro réu [Simonal era réu juntamente com os dois agentes do DOPS que sequestraram seu contador] sempre colaborou com as Forças Armadas”.
Pereira informou ter conhecido o cantor ainda em seus tempos de Relações Públicas do Exército. Ele contou ter recebido a visita de um Simonal preocupado com ameaças que estaria sofrendo. Segundo a mesma versão, o militar aconselhou o artista a procurar ajuda no Departamento de Ordem Política e Social – sugestão que o visitante famoso acatou.
O que chama a atenção é a ampla e um tanto inusitada cobertura que os jornais puderam dar ao caso Wilson Simonal. Entre 1971 e 1976, notas e pequenas reportagens sobre a investigação policial, o inquérito e a ação penal referentes ao sequestro e tortura de Raphael Viviani, antigo contador do artista, frequentaram livremente as páginas dos diários – uma exposição ampla para os padrões da censura militar da época.
Assim, a pergunta que se impõe é: por que foi possível noticiar o desastre que Wilson Simonal arquitetou para a sua própria trajetória pessoal, se o controle exercido pelos militares sobre o noticiário da imprensa era tão minucioso?
Ou, tão importante quanto isso: se o ex-cabo Simonal era mesmo um “colaborador das Forças Armadas”, conforme denunciou o oficial Pereira, por que permitir que ele fosse queimado assim, de público?
Admitindo que o militar estivesse dizendo a verdade (ao rotular o artista de “colaborador das Forças Armadas”), é de se pensar qual a utilidade que ele ainda poderia ter como informante infiltrado no cenário artístico nacional, depois de ter sido desmascarado de forma tão contundente pelo tenente-coronel...
Que Wilson Simonal já tivera momentos ruins com os seus antigos companheiros de farda, não há dúvida.
No final dos anos de 1960, a letra de seu sucesso “Tributo a Martin Luther King” [veja quadro ao lado] pareceu aos luminares da censura uma incitação ao conflito entre negros e brancos. Simonal prezava o seu papel no Movimento Negro. Incapaz de formular teses nesse sentido, ele, mesmo assim, se orgulhava de inserir o assunto em seu repertório – quase todo destinado a alcançar grande repercussão.
De outra feita, o problema foi o cenário de um show, onde os censores enxergaram uma perigosíssima bandeira vermelha da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Wilson Simonal sobreviveu à agonia da União Soviética, mas certamente não teve tempo de prestar atenção nisso. Em 1991, quando a federação de repúblicas inimiga dos revolucionários de 1964 estava em sua fase terminal, o mestre do suíngue perseguia documentos e depoimentos que pudessem inocentá-lo da pecha de “dedo-duro” da Ditadura.
Expedito de Souza Pereira sobreviveu ao martírio de Wilson Simonal de Castro, mas nunca passou da patente que alcançou em abril de 1974 – três meses antes de, com o seu depoimento, contribuir para o enxovalhamento do nome do cantor por seus colegas e pela larga parcela do público não-alinhada com a Revolução. O militar foi reformado como Tenente-Coronel e declarado inválido. Em 6 de dezembro de 2006 passou a receber da União um “auxílio-invalidez” (informação do Diário Oficial da União de 11 de dezembro de 2006, Seção 2, pág. 8).
 
"O Príncipe Encantado das Meninas Negras..."
Por Oswaldo Faustino
Ilustração Fabiana Neves
‘Nós modulávamos nossa voz pela voz do Simonal...’ A frase é do saudoso jornalista Hamilton Bernardes Cardoso, uma das lideranças do movimento negro paulista, entre os anos 70 e 90.
Essa nossa ‘modulação’ ia além da emissão sonora vocal. Era comportamental, motivada pela ânsia de ecoar a liberdade e a segurança que o artista transmitia ao apresentar seu Show em Si... monal, pela TV Record, principal emissora brasileira dos anos de 1960.
Simonal revezava com Roberto Carlos, o papel de atração máxima nos festivais e programas especiais da emissora – mensais ou anuais –, como o Show do dia 7 e o Prêmio Roquete Pinto. Há não muito tempo, em sua coluna semanal no jornal “Correio Braziliense”, Sueli Carneiro, doutora em Educação, feminista e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra – confessou: Simonal era o príncipe encantado das meninas negras de sua adolescência.
Para nós, rapazes, ele ditava o estilo, como o uso da bandana colorida em forma de faixa na cabeça. No documentário para a TV Ninguém sabe o duro que dei, Simoninha, o filho mais velho do cantor, diz que a moda da faixa foi introduzida casualmente. Ele conta que, pouco antes de uma apresentação, seu pai sentiu uma forte dor de cabeça. Então colocou a faixa, e entrou no palco sem tirá-la. A novidade virou capa de disco, e bossa para ser imitada em todos os bailes black da época. Quem de nós não teve pelo menos um chaveiro com o boneco Mug?
O Tributo a Martin Luther King, composto em parceira parceria com Ronaldo Boscoli, tornou-se uma espécie de hino, que cantávamos com verdadeira comoção em nossos encontros de militantes. Enfim, tínhamos um ídolo, um espelho de sucesso, uma referência. Então vieram as acusações no Pasquim – nosso tabloide preferido –, de que Wilson Simonal, era dedo-duro das forças de repressão. Fica fácil imaginar quantas toneladas pesou a decepção que experimentamos, O ídolo sumiu da mídia, e da minha memória.
Os anos se passaram, tornei-me jornalista e, no período de 1985 a 1990, exerci as funções de Editor de Cultura e Variedades do jornal “Diário Popular”. Um dia, no final dos anos de 1980, uma assessora de imprensa me informou que Wilson Simonal ia fazer um show num restaurante da zona Sul, e perguntou se eu queria entrevista-lo. A informação era, na verdade, mais ampla do que isso: dava conta de que o cantor solicitara um documento oficial comprovando que não tivera qualquer envolvimento com os órgãos de segurança da ditatura moribunda. Respondi que se Wilson Simonal, meu antigo ídolo, fosse à sede do jornal, na Rua Major Quedinho, eu o ouviria. Do contrário, não teria tempo disponível.
No mesmo instante em que Simonal apontou na porta da redação, em companhia de Simoninha, o telefone de minha mesa tocou. Era um colega de jornal vociferando: “O que esse f.d.p. está fazendo aqui?! Você vai dar espaço pra esse dedo-duro?” Desliguei, recebi pai e filho e pedi que me aguardassem, enquanto ia à mesa do colega, do outro lado da redação. Indaguei:
– Qual o problema, companheiro?
– Você não sabe que o Simonal é dedo-duro do DOPS?
– Calma, meu! Eu quero ferrar o cara. Me ajuda aí! Vamos prensá-lo na parede. Diz aí: quem ele entregou pra repressão?
– Ah! Todo mundo sabe...
– Todo mundo, não. Eu não sei.
– Ora... ele entregou o... o... o Caetano, o Gil, o Chico, o Vandré...
– Oh, meu irmão! Mas entregou como? Disse que eles eram contra a ditadura? Alguém precisava contar isso à polícia? Me dá algo mais consistente...
Voltei à mesa e iniciei a entrevista. Apesar de manter o olhar triste, pouco a pouco foi ressurgindo alí, diante de mim, o artista genial, com milhares de histórias para contar.
Depois daquela tarde encontrei Wilson Simonal várias vezes. Foi assim que nasceu em mim o desejo de escrever um livro intitulado: Simbora!, com o seguinte sub título: A história de Wilson Simonal por ele mesmo, através de depoimentos ao jornalista Oswaldo Faustino. Ele disse que a ideia era ótima, mas que eu deveria espera sua volta de uma turnê pelos Estados Unidos. Em vão, tentei outros contatos, através de Patrícia, sua filha. Ele nunca tinha tempo para me receber. Dizia que, apesar de estar fora da mídia, ainda trabalhava muito, fazendo shows pelo Brasil e fora do país.
A última vez em que o vi, já no final nos anos de 1990, foi numa noite em que, a convite de Patrícia, fui assistir a um show do pai na casa de espetáculos “Circus”, pertencente ao ex-diretor de futebol do Corinthians, Adilson Monteiro Alves.
 
Foi uma noitada com episódios marcantes. O primeiro, motivado pelo atraso de mais de uma hora no início da apresentação do cantor. A demora devia-se à de, pelo menos, um dos músicos (Simonal teria perdido o prestígio também entre os de sua classe?). A segunda lembrança que guardo: avistar na mesa bem ao lado da minha, a figura – constrangedora – do ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antonio Erasmo Dias. Conforme Patrícia, tratava-se de um amigo de seu pai. Mas Erasmo se retirou antes do inicio do espetáculo, xingando Simonal pelo atraso e o que ele considerava um desrespeito do artista para com o público.
Depois veio a apresentação de Simonal, feita pelo empresário Adilson. O dono da “Circus”, lembrou sua história de “homem de Esquerda”, e acusou a própria Esquerda do que chamou de “uma grande injustiça com o maior cantor brasileiro”. Por fim, lembro-me de Simonal passando mal no meio do show, e se deitando no palco.
Divulgação / Oswaldo Faustino
Oswaldo Faustino
Quando se sentiu melhor, ele recusou a ideia de ser levado a um hospital. Ajudado por Patrícia eu o convenci a entrar em meu carro, e o levei a seu apartamento, não muito longe dali.
Continuei modulando minha voz e minha ginga na vida, pelo suíngue de Wilson Simonal.
Minha autoestima e minha firmeza no combate ao racismo têm muito a agradecer a ele. Cheguei a contar-lhe isso, mas jamais saberei se esse meu reconhecimento confortou-o de alguma forma – ou teve alguma importância para ele.”
 
 
 
TRIBUTO A MARTIN LUTHER KING
(W. Simonal – R. Bôscoli)
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Sim, sou um negro de cor
Meu irmão de minha cor
O que te peço é luta sim
Luta mais!
Que a luta está no fim...
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Oh! Oh! Oh! Oh!
Cada negro que for
Mais um negro virá
Para lutar
Com sangue ou não
Com uma canção
Também se luta irmão
Ouvir minha voz
Oh Yes!
Lutar por nós...
Luta negra demais
(Luta negra demais!)
É lutar pela paz
(É Lutar pela paz!)
Luta negra demais
Para sermos iguais
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Para sermos iguais
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Oh! Oh! Oh! Oh!
 
Ilustração Fabiana Neves
 

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