Página infeliz da nossa história
Autor(es): Jerônimo Teixeira
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Veja - 21/10/2013
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Gilberto Gil, Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso dizem que querem resguardar a privacidade — mas as propostas do grupo resumem-se a apenas uma infame palavra: censura.
São apenas três os tipos de biografias. Existem as autorizadas e as não autorizadas, ambas, a despeito de sua qualidade, úteis à sociedade. O terceiro tipo é um tiro no pé das democracias, é a biografia censurada. Pois é justamente esse o tipo de biografia que nossos ídolos querem ver prevalecer no Brasil. Nossos ídolos não são mais os mesmos. Eles passaram a semana inteira tentando, em vão, explicar que acham sensato o biografado censurar sua biografia, mas que isso não significa a morte da liberdade, justamente a causa que os tomou célebres, admirados, amados e. claro, biografáveis! Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil enfiaram-se em um labirinto retórico de dar dó. A cada nova justificativa, desciam mais um degrau do autoritarismo. A cada falsidade desmascarada, desciam um ponto na escala da admiração que conquistaram no coração dos brasileiros.
Chico Buarque, logo ele, mentiu. Ao defender, em um artigo no jornal O Globo, o direito de artistas vetarem biografias, o compositor de Apesar de Você afirmou que nunca dera entrevista a Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia — censurada — Roberto Carlos em Detalhes. Como Chico vai listado no livro entre as mais de 150 personalidades que deram depoimentos sobre Roberto Carlos, só haveria uma conclusão possível: o autor inventou uma entrevista. O desmentido foi imediato e definitivo. Araújo divulgou foto e vídeo da entrevista com Chico, realizada no Rio em 1992. Chico alegou falha de memória. O princípio invocado pelos artistas que, como Chico, vêm defendendo a censura — eles refutam a palavra, mas não existe outra — de biografias é o direito à privacidade. No entanto, eis aqui um vexatório fato público que nem o mais encomiástico biógrafo de Chico Buarque poderá ignorar no futuro: o compositor tentou denegrir a reputação de um profissional sério. Mesmo que Araújo fosse um falsificador de entrevistas, a má conduta de um biógrafo não justificaria a submissão de todo um gênero literário e histórico ao cabresto de artistas, celebridades e homens públicos que desejam controlar o que se diz a seu respeito.
Está em jogo neste debate, um princípio inegociável da democracia: a liberdade de expressão. Embora seja vital para todo e qualquer cidadão, a liberdade de expressão deveria ser especialmente cara a quem tem na arte o seu ofício, e talvez ainda mais aos músicos da geração que nos anos 60 e 70, sofreu com a censura do regime militar. No entanto, foram estes que se mobilizaram para solapar esse fundamento do Estado de direito. No grupo ridiculamente chamado Procure Saber, capitaneado pela hábil empresária Paula Lavigne, estão Chico, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan. Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Roberto Carlos. De início, o grupo organizou-se para pedir mudanças na legislação sobre direitos autorais. Mas, no encontro que a trupe teve com a presidente para falar desse tema, Roberto Carlos aproveitou para adiantar sua preocupação maior: a manutenção dos dispositivos do Código Civil que permitem o veto a biografias não autorizadas. Esses pontos da lei estão sendo contestados, no Supremo Tribunal Federal, por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pela Associação Nacional de Editores de Livros.
Paula Lavigne e outros membros do Procure Saber têm se apresentado como uma humilde guilda de artistas em Lula contra a iniciativa agressiva da poderosa indústria livreira. A rigor, porém, são os editores que tentam se defender de uma série de ameaças judiciais a seu trabalho. Embora tenha havido casos anteriores de censura — notadamente, no processo movido, em 1995, pelas filhas do jogador Garrincha contra a biografia Estrela Solitária, de Ruy Castro —, o episódio zero se deu em 2007, quando Roberto Carlos conseguiu que fosse sustada a circulação da biografia escrita por Araújo. Censurado por Roberto e difamado por Chico, Araújo define essa situação com ironia: "Agora me tomei inimigo tanto da música mais popular quanto da MPB intelectual".
A ADI dos editores contesta os artigos 20 e 21 do Código Civil. O artigo 21 estabelece que a privacidade é "inviolável". O 20, de redação muito infeliz, dita que, "salvo se autorizadas (...). a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas (...) se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais". Pela letra fria dessa lei, toda biografia precisaria ser autorizada previamente pelo biografado ou por seus herdeiros. "Isso é um caso muito claro de censura", avalia o procurador regional da República e professor de direito constitucional da Uerj Daniel Sarmento. "O Código Civil dá todo o peso à privacidade e nenhum à liberdade de expressão. Nem na França, cuja lei protege mais a privacidade, há essa necessidade de autorização prévia." A lei ameaça não só biografias: autores de livros de história, de memórias e de reportagens jornalísticas estariam obrigados a fazer o beija-mão de qualquer personagem citado em um contexto que se possa interpretar como "privado".
A lei que chancela a censura, porém, não pode se sobrepor à Constituição. Não se pode instituir a censura prévia no Brasil por meio de uma lei ordinária, quando a própria Constituição, em seu parágrafo IX do artigo 5, determina: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Diz o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que atuou na defesa de Estrela Solitária quando a biografia esteve proibida por ordem judicial: "No tangente a figuras públicas — políticas, autoridades, artistas —, a liberdade de biografar não pode ser tolhida". Nesse sentido, é notável a sentença dada pelo juiz Maurício Magnus ao liberar a circulação de Sinfonia Minas Gerais — A Vida e a Literatura de Guimarães Rosa, de Alaor Barbosa. A biografia era contestada por Vilma Guimarães Rosa, filha do autor de Grande Sertão: Veredas. Diz Magnus: "É inadmissível que o patrimônio cultural tenha dono".
A remuneração do biografado ou de seus herdeiros legais é uma questão menor. Para começo de conversa, nenhuma biografia no mercado editorial brasileiro vai render fortuna suficiente para mudar a vida do autor ou de quem tiver participação no lucro da venda dos livros. Mas esse é um ponto facilmente negociável entre as partes sem que, para solucioná-lo, seja preciso recorrer ã instalação da censura prévia no Brasil. Luiz Schwarez, editor da Companhia das Letras — que publica os livros de Chico Buarque e de Ruy Castro —, respondeu, no site da editora, com um texto elegante e incisivo: "Pela lei vigente, os herdeiros se transformam em historiadores, editores e. desculpe-me. censores, sim".
Walter Isaacson, que escreveu a vida de Steve Jobs por encomenda do próprio, não aliviou a descrição dos modos despóticos do criador da Apple. Em outros casos, porém, o biografado ou seus herdeiros desejam silenciar os fatos. A viúva e as filhas do poeta Paulo Leminski estão tentando impedir uma reedição de Paulo Leminski — O Bandido que Sabia Latim, biografia escrita pelo jornalista Toninho Vaz, só porque o autor acrescentou ao livro um parágrafo com mais detalhes sobre o suicídio de Pedro, irmão do biografado. Lembra Vaz: "O próprio Leminski atribuía importância a isso. Ele era avesso a telefone, mas me ligou logo depois do suicídio do irmão".
Se, por óbvios, os malefícios da censura prévia dispensam longas considerações, os benefícios trazidos às sociedades pelos biógrafos merecem, à luz do atual momento, uma análise mais detida. "A biografia é um modo de investigar de que forma as esferas pública e privada se chocam na vida do indivíduo", diz Lira Neto, biógrafo de Getúlio Vargas (o autor, aliás, considera abandonar o gênero por receio da ação de herdeiros censores). É essa fluidez entre o público e o privado que escapa aos defensores intransigentes do caráter inviolável da intimidade. Não, biógrafos não estão apenas atrás da fofoca, como vêm insinuando os porta-vozes do Procure Saber. "As pessoas que se opõem a essa liberação estão mais preocupadas com as biografias calhordas do que com os trabalhos sérios", diz o músico Roberto Frejat. Correto: e, contra os calhordas, cabem processo e pedidos de indenização, jamais censura. Eis a palavra que eles querem evitar ("censor, eu? Nem morta!", protestou Caetano em sua coluna em O Globo). Mas é disso que se trata. As biografias são, desde a Antiguidade, fontes de informação preciosas — saberíamos menos sobre Alexandre, o Grande, ou Júlio César sem as Vidas Paralelas, de Plutarco —, mas não são apenas coleções aleatórias de fatos: elas oferecem uma interpretação do personagem e de seu tempo (leia matéria na página seguinte). "Nenhuma biografia é definitiva. Na França, deve estar na casa do milhão o número de biografias de Napoleão e a cada uma delas se renova a percepção sobre o personagem", diz a historiadora Mary Del Priore. É difícil e doloroso caracterizar Caetano, Gil, Chico e companhia como censores. Não combina com eles e suas obras. Talvez essa recaída no obscurantismo seja apenas uma página infeliz da nossa história.
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