quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

TE Contei, não ? - País vive 'apartheid cultural' em vários estados

País vive ‘apartheid cultural’ em vários estados

  • Desigualdade na oferta de cinemas, teatros, livrarias e museus é obstáculo à implantação do Vale-Cultura
 
Publicado no Jornal O Globo 
Caso tudo saia como o Ministério da Cultura (MinC) planeja, 2014 será o ano da popularização do Vale-Cultura — o cartão de R$ 50 que as empresas poderão dar a seus empregados, obtendo abatimento no Imposto de Renda, para que eles paguem por produtos ou atividades culturais. Aprovado pelo Congresso em dezembro de 2012 e regulamentado pela presidente Dilma Rousseff em agosto, o vale nasce como uma tentativa de tornar menos desigual a oferta e o consumo de cultura nas cinco regiões do país. Mas, para que essa meta seja atingida, o governo precisará vencer a escassez de equipamentos culturais Brasil afora.
O GLOBO cruzou dados recentes do MinC, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), do Cadastro Nacional de Museus (CNM), da Associação Nacional de Livrarias (ANL) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Enquanto São Paulo tem 869 salas de cinema, o Acre (o pior estado nesse setor) tem apenas quatro. E todas na capital, Rio Branco.
No quesito museus, São Paulo se destaca novamente com 559 estabelecimentos, enquanto Roraima, em último no ranking, tem cinco. Roraima também tem baixíssima oferta de livrarias: são apenas duas, em contraponto com o líder, São Paulo, que dispõe de 821.
No que diz respeito à oferta de teatros, Tocantins é o estado com menor número de palcos:apenas três, todos na capital, Palmas. São Paulo, novamente, lidera o ranking com 306 salas.
Para ministra, um “estímulo”
A ministra da Cultura, Marta Suplicy, encara o problema por um viés positivo:
— Vemos esse desafio como estímulo — diz ela. — Não será feito um milagre (com o Vale-Cultura), mas, onde existe consumidor, geralmente o mercado se organiza.
Marta espera que “as prefeituras ajudem as livrarias e os cinemas a se consolidarem e poderem crescer, oferecendo, por exemplo, isenção de IPTU. Segundo a ministra, a pasta tem incitado os prefeitos a estimularem os grupos culturais de suas cidades e conseguido elevar a demanda pela construção de equipamentos.
Ela lembra a existência dos Centros Unificados das Artes e do Esporte (CEUs), lançados por ela em São Paulo, e dos pontos de cultura. Esses espaços, de frequência gratuita, servirão, segundo Marta, para qualificar a produção local e incutir no povo a vontade de consumir cultura.
— O vale vai chegar a muitos locais e, por isso, precisamos fortalecer a musculatura cultural dos municípios para que o trabalhador possa gastar seu benefício — diz. — Estamos diante de um momento de possibilidades gigantescas.
Essa não é a opinião do empresário paulista Gilberto Araújo. Em 2011, sem a ajuda de editais ou leis de incentivo, ele desembolsou R$ 5 milhões e construiu as únicas quatro salas de cinema do Acre — todas no shopping Via Verde, em Rio Branco. Na época, achou que era uma boa ideia, mas , agora, diz que não põe nem mais um centavo por lá.
— Somando as quatro salas, são 996 assentos. Todas digitais e com “blockbusters” em cartaz. Nelas, oferecemos entre 12 e 16 sessões por dia, e a entrada custa entre R$ 8 (às quartas-feiras) e R$ 17 (aos fins de semana). Mas a média semanal de pagantes é de 6.500 pessoas, metade do que seríamos capaz de receber — lamenta ele.
Segundo Araújo, não está incutido na rotina dos 733 mil habitantes do Acre o costume de ir ao cinema.
— O poder econômico lá é muito baixo e não há estímulos do governo. Não há a menor possibilidade de eu abrir outra sala em Rio Branco, nem com a chegada desse Vale-Cultura.
Os livreiros de Roraima — estado que tem só duas lojas em funcionamento — também não enxergam no Vale-Cultura a possibilidade de grande mudança. Antônio Bentes, dono da Saber (líder do mercado local), fala em “descrença”:
— Tenho 15 mil títulos, mas o forte das vendas são os livros jurídicos e de Direito. Todo mundo aqui quer passar num concurso. Mas eu só fico com as contas no azul porque não faço extravagância. Não sirvo nem cafezinho aqui na loja.
Segundo Bentes, o Vale-Cultura não deve mudar o mercado editorial em Roraima — estado que tem 450 mil habitantes.
— É muito difícil ser dono de livraria aqui. Um livro demora entre 30 e 45 dias para chegar a Boa Vista; saindo de São Paulo, ele passa por Brasília, Belém e Pará. Lá, toma uma balsa para Manaus e, depois, um caminhão para Boa Vista. Só isso responde por 12% do meu preço. Se mandasse vir de avião, ele sairia 30% mais caro e inviabilizaria o negócio. Éramos quatro livrarias até pouco tempo atrás, mas duas decidiram ser apenas papelaria devido a essa dificuldade de trazer livro.
— O Brasil lê pouco, e quem atua em áreas remotas ainda enfrenta a concorrência desleal da internet — afirma Ednilson Xavier, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL) e dono da Livraria Cortes, na capital paulista. — O setor não tem vontade de abrir novos espaços.
Não bastasse a baixa oferta de livrarias, Roraima é o estado com menos museus. Em seus 224 mil quilômetros quadrados, são cinco. O principal deles, o Museu Integrado de Roraima, com acervo voltado para o artesanato indígena, fauna e flora, está fechado para “remodelação” há cerca de um ano.
— Nossos municípios são pequenos. Não são atrativos para a iniciativa privada — diz Marco Aurélio Porto, secretário estadual de Cultura de Roraima. — A secretaria mesmo só foi criada em janeiro, e eu só assumi em março.
Com 1,3 milhão de habitantes e 139 municípios, Tocantis tem três salas de teatro. Todos em Palmas, a capital.
Quando se analisa a oferta cultural do país por número de habitantes, no quesito teatro, tudo fica igual. Tocantins ainda aparece em último, com uma sala para 466 mil pessoas. No extremo oposto está o Rio de Janeiro, com uma sala para 70,2 mil habitantes.
O Maranhão aparece em maus lençóis no que diz respeito a museus e cinemas. No estado, há um museu para 248,7 mil pessoas e uma sala de cinema para 319,7 mil. Realidade distante da do Rio Grande do Sul, o melhor estado na relação museu/habitantes (um para 26,4 mil), e do Distrito Federal, com um cinema para 34,8 mil, o melhor índice do país.
 
 

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