quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Te Contei, não ? - Tema em discussão - A legalização de quilombos

NOSSA OPINIÃO

 
A Constituição de 1988 teve a intenção de passar a limpo praticamente todas as demandas institucionais de um país que saía do longo período de arbítrio do regime de 64. No corpo permanente da Carta, tratou-se de sincronizar a vida institucional à nova realidade provocada pelo fim da ditadura. No capítulo das disposições transitórias, os constituintes inscreveram uma série de questões que não eram de interesse geral da sociedade, senão objeto de litígios, disputas e contestações pontuais — mas, ainda assim, pendentes de serem resolvidas.
Entre essas contendas, o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias contemplou o reconhecimento de supostos quilombos, um pressuposto para a regularização fundiária de áreas ocupadas por autoalegados descendentes de escravos. Passado mais de um quarto de século desde a promulgação da Constituição, a discussão, controversa, está na agenda do Supremo Tribunal Federal, à espera de uma solução final.
O artigo 68 trata do reconhecimento dos quilombos remanescentes à época da aprovação da nova Carta, em 1988. Foi um referendo à luta dos escravos que, conseguindo fugir das fazendas, resistiram naqueles nichos de liberdade, uma afirmação contra a opressão escravocrata. Enfim, uma reparação, alcançando os legítimos descendentes (os chamados quilombolas) dos que lutaram contra a escravidão, a uma injustiça que, ao se abater sobre a população negra do país naquele período, maculou a História do Brasil. No entanto, ao que parecia ser uma boa intenção do constituinte seguiu-se uma confusão sobre o alcance do benefício do ato transitório. Em 2003, logo ao assumir o governo, o então presidente Lula assinou o Decreto 4.887, na mesma lógica político-ideológica de outras ações de “reparo” histórico: em vez de disciplinar a aplicação do artigo 68, o ato abriu brechas para que litígios fundiários, mesmo depois de 1988, se abrigassem de forma oportunista na legislação relacionada a supostos direitos de quilombolas.
De tal forma que a questão transbordou, por exemplo, até para áreas vitais à segurança nacional. Entre terras reclamadas por quilombolas estão a Base de Alcântara (MA), estratégica para o programa espacial brasileiro, e a Restinga da Marambaia, no Rio, região que a Marinha usa para treinamento e, assim, mantém a salvo da especulação. Também no Rio, na recente querela sobre a retomada de áreas ilegalmente ocupadas com moradias no Jardim Botânico apareciam, entre os invasores, as digitais de autoalegados quilombolas.
Evidência de que se trata de tema tão complexo quanto desvirtuado dos objetivos originais, a questão é objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade. O DEM entrou com a medida junto ao Supremo, que chegou a incluir a ação em sua pauta (com o voto pela inconstitucionalidade do decreto 4.887 dado pelo então ministro Cezar Peluso, e pedido de vistas da ministra Rosa Weber, o que o mantém fora da pauta). Quando voltar ao plenário, espera-se que o STF recoloque o artigo 68 em seu foco original, desembaraçando-o de um viés que, por oportunista, agride a segurança jurídica.
 
 
OUTRA OPINIÃO - DANIEL SARMENTO
 
 
 
É dramática a situação das comunidades quilombolas brasileiras. Tais grupos são compostos predominantemente por pessoas negras, em geral paupérrimas, que partilham cultura e trajetória histórica ligadas à resistência à opressão racial. Para eles, a terra tradicionalmente ocupada é muito mais do que um bem econômico. Trata-se do espaço em que as comunidades podem viver de acordo com seus costumes e tradições, e sem o qual tendem a desaparecer, pois seus membros acabam absorvidos pela sociedade envolvente.
Para resgatar a dívida histórica da nação com essas comunidades e garantir para as presentes e futuras gerações a preservação da sua cultura, a Constituição assegurou aos remanescentes dos quilombos o direito à propriedade das terras que ocupam (art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Porém, passados mais de 25 anos da promulgação da Constituição, praticamente nada se avançou na área.
De acordo com dados do governo federal, existem mais de 2 mil comunidades quilombolas no país. Contudo, apenas um percentual ínfimo delas já obteve a regularização fundiária. A imensa maioria vive mergulhada na mais profunda insegurança, envolvida em conflitos possessórios, em que não faltam episódios de violência e até de homicídio de quilombolas. O quadro geral é de miséria, de falta de acesso a serviços públicos essenciais, de invisibilidade.
As forças hegemônicas têm conseguido sabotar a aplicação da Constituição nesse tema. Infelizmente, a questão está longe de ser prioritária para o governo federal, que não quer atrito com os grupos que se beneficiam do status quo e compõem sua heterogênea base de sustentação. Daí a injustificável morosidade na regularização das terras dos quilombos.
No Supremo Tribunal Federal (STF) está em julgamento uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo partido DEM, que, se acolhida, poderá agravar ainda mais o quadro. A ação questiona o Decreto 4.887/03, que disciplinou o procedimento de reconhecimento das terras quilombolas. Alega-se na ação que, até que o Congresso legisle sobre o tema, as terras dos quilombos não poderiam ser garantidas pelo Estado, em razão do princípio da legalidade. De acordo com essa ótica, o direito de uma minoria vulnerável, assegurado pelo próprio constituinte, deveria ficar completamente subordinado às escolhas políticas da maioria parlamentar. Se o STF acolher o pedido, voltar-se-á à estaca zero na proteção das terras quilombolas no Brasil.
O quadro é desalentador. A Constituição rompeu com a invisibilidade dos quilombolas, assegurando os seus direitos, mas só isso não basta. É fundamental que os poderes do Estado atuem para que tais direitos finalmente saiam do papel, assegurando a cidadania plena a esses deserdados da terra.
Daniel Sarmento é professor de Direito Constitucional da Uerj

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