sábado, 2 de agosto de 2014

Artigo de Opinião - 'Auto da Compadecida', um clássico - Barbara Heliodora

Ariano Suassuna é a prova de que uma cultura vasta e o conhecimento das grandes tradições da arte ocidental parecem ser a melhor base para a criação de uma obra essencialmente brasileira; nascido e criado no nordeste, sua obra dramática foi desde o início influenciada tanto pelo teatro de mamulengos e pela literatura de cordel, quanto por tudo que ele conhecia do teatro universal; e com o tempo Suassuna se dedicou fundamentalmente àquelas expressões de suas origens, integrando-as com as formas eruditas que lhe pareciam ser o melhor caminho para se conseguir estabelecer uma comunicação plena entre a riqueza regional e o total do Brasil contemporâneo. Desde cedo a forma dramática foi sua favorita, e sua obra teatral é vasta, com boa parte dela merecendo atenção e aplauso; no entanto, Suassuna, no teatro, pagou o preço de ter todas as peças que escreveu comparadas ao “Auto da Compadecida”, um dos raríssimos clássicos da dramaturgia brasileira, tão extraordinário que sacrificou, com a possível exceção de “O Santo e a Porca” e “O Casamento Suspeitoso”, todo o resto de suas companheiras.


O talento de Ariano Suassuna era imenso e servido por uma cultura vasta e primorosamente assimilada, de modo que dela se pôde servir com proveito, como fica evidenciado pelo uso da forma do auto medieval para a construção da peça que mais o consagrou. E se aqui me refiro quase que exclusivamente ao “Auto da Compadecida”, é porque sua importância é imensa, e nenhuma outra obra teatral brasileira tem o alcance dela em termos de comunicação com o público.
Não sei a quantas montagens do “Auto da Compadecida” já assisti, mas de uma coisa estou certa: nunca vi uma sequer que não fosse pelo menos satisfatória, e creio que a razão é o fato de não haver ninguém, por estes Brasis, que não reconheça e identifique sua brasilidade, que não se solidarize com as agruras de Chicó e João Grilo. E é preciso parar e pensar para que possamos nos dar conta da justeza, da economia, do cuidado e do requinte que puderam produzir esse texto que parece tão espontâneo, tão simples, tão ingênuo. Se o texto fala de bem e mal, de certo e errado, ele jamais se torna moralizante: a essência crítica vem muito do que se encontra na literatura de cordel, mas o pequeno Sacristão é sem dúvida o “bobo de Deus” medieval, em quem a verdade transparece na ingenuidade. E quem quiser, hoje, denunciar a corrupção entre os poderosos, deve montar o “Auto da Compadecida”, pois lá ela é exemplarmente apresentada.
Devo a Ariano Suassuna uma das experiências mais ricas de toda a minha vida de espectadora no teatro: não estava no Rio, nos idos de 1956, quando estreou aqui a montagem de “Auto da Compadecida” pelo Teatro Adolescente do Recife, e quando cheguei várias pessoas me disseram que estava em cartaz uma peça brasileira de excepcional qualidade. Com a maior curiosidade, lá fui eu ao Teatro Dulcina e... não acreditei; no dia seguinte fui ver de novo o “Auto da Compadecida” para ter confirmada a minha impressão de que havia visto algo realmente extraordinário, impressão que tenho até hoje, quando reconheço que esse é um dos únicos clássicos do teatro brasileiro.


Sei que a figura de Ariano Suassuna é ainda muito mais rica e variada do que isso, mas por outros serão comentados os muitos aspectos de sua vida, seu talento e sua obra, enquanto aqui, neste momento tão difícil para o teatro brasileiro, é muito bom lembrar que, a nosso favor, existe um “Auto da Compadecida”, um Chicó e um João Grilo, exemplos de esforço pela sobrevivência na luta do dia-a-dia, com a certeza de que eles continuarão para sempre servindo o teatro brasileiro e lembrando Ariano Suassuna.

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