Sul-africano narra em livro como nasceu a amizade com o líder que lutava contra o apartheid, fala da postura humilde e da delicadeza dele nos anos de prisão e conta como a convivência o influenciou
Camila Brandalise (camila@istoe.com.br)
O líder sul-africano Nelson Mandela é uma referência para as gerações mais jovens do país. Mas, para Christo Brand, 53 anos, ele é mais que um exemplo: é uma pessoa que influenciou decisivamente o curso de sua vida. Brand foi carcereiro de Mandela por 12 anos. Esteve com ele na prisão na Ilha Robben e nas cadeias de Pollsmoor e de Victor Verster, na região da Cidade do Cabo. Da convivência, surgiu uma improvável amizade que perdurou até a morte do maior símbolo da luta contra o apartheid, em dezembro do ano passado. Dessa relação nasceu também o livro “Mandela: Meu Prisioneiro, Meu Amigo” (ed. Planeta), em que Brand, com a ajuda da escritora Barbara Jones, narra os anos em que estiveram próximos.
A obra não teria sido escrita se não fosse pelo próprio Mandela. O líder sul-africano acabara de lançar seu próprio livro de memórias e estimulou o amigo a fazer o mesmo. “Na hora, relutei. Disse que não era escritor, que não conseguiria”, relembra Brand em entrevista à ISTOÉ. Demorou quase dez anos, mas acabou por seguir o conselho de Mandela, como, aliás, acontecera outras vezes. Na primeira, Brand era seu carcereiro na prisão, quando lhe contou que pensava em abandonar o posto. “Mas ele falou que eu era importante lá e decidi ficar.” Em outra, Mandela o aconselhou a estudar – sugestão que lhe rendeu uma promoção.
Brand conheceu Nelson Mandela em 1978, quando se tornou seu carcereiro na Ilha Robben, uma prisão de segurança máxima. Este havia sido o destino do então líder do Congresso Nacional Africano (CNA), após ser condenado por sabotagem – palavra encontrada pelo governo para relegar sua luta pelo fim do apartheid e enquadrá-lo como um traidor aos olhos do Estado. O país fervilhava com os embates travados entre os que combatiam e os que eram a favor da segregação racial. Mas Brand, oriundo de um vilarejo na zona rural, não tinha noção do que acontecia. “Não sabia quem ele era nem o que representava. Onde eu morava, as notícias não chegavam. Em Robben, me disseram que ele era um perigoso terrorista”, conta. Ao ficar a sós com Mandela pela primeira vez, se surpreendeu. “Imaginava um homem bravo, alterado. Mas encontrei o contrário. Ele era calmo, humilde e respeitoso mesmo com a nossa diferença de idade: eu tinha 19 anos e ele 60.” Desde então, passou a saber mais sobre o que acontecia em seu país e tirar suas próprias conclusões sobre Mandela. Não demorou muito e estava do seu lado. “Queria ajudá-lo. Percebi que era um homem privado da sua liberdade por lutar pela liberdade do seu povo”, diz.
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No livro, Brand conta histórias de sua vida pessoal ao mesmo tempo que descreve as impressões sobre as transformações políticas pelas quais passou a África do Sul nos anos de trabalho no sistema penitenciário. Chama a atenção seu olhar delicado sobre alguns momentos com Mandela. Quando o escoltava em caminhadas, o líder sempre se agachava para pegar uma flor e depois a colocava na cabine de visitas para que nos horários em que recebia a mulher, Winnie, ela a visse do outro lado da vidraça que os separava. Detalha seu asseio, a preocupação em modelar o cabelo com a brilhantina Pantene e o porte altivo, que atraía a atenção de todos em volta, quando começava a falar. “Era um pai falando a seus filhos”, compara Brand. Para ele, o mais impressionante era a humildade do líder sul-africano. “Certa vez ele me contou uma história muito emblemática. Caminhando pela praia, uma mulher disse que ele se parecia com Nelson Mandela. Ele respondeu falando que gostaria muito de conhecê-lo pessoalmente”, diz, em um dos poucos momentos da conversa em que se permite rir.
Quando Mandela foi finalmente solto, Brand diz ter ficado feliz e triste, pois não teria mais aquele amigo ao seu lado. Os dois continuaram se encontrando nas visitas que Mandela fazia às prisões. Um tempo depois, ao ser eleito presidente, ofereceu-lhe um emprego público. Mais uma vez, estariam próximos, mas em uma situação hierárquica oposta. O último encontro deles foi em março do ano passado. Antes de morrer, Mandela pôde ler os dois primeiros capítulos do livro de Brand. “Ele gostou, ficou feliz por eu ter começado a escrevê-lo”, conta. O ex-carcereiro ainda lida diariamente com as lembranças da época do trabalho na prisão. A Ilha Robben tornou-se um ponto turístico e ele é o supervisor das lojas de suvenires. Compartilha também as próprias lembranças, contando aos visitantes como as coisas funcionavam quando Mandela estava preso ali. “Tenho muito orgulho de tê-lo conhecido, de ter passado tanto tempo ao seu lado e de ser considerado um membro de sua famíla”, afirma. Das imagens que guarda na memória, com a voz um pouco embargada, diz que a risada de Mandela é das mais lúcidas: “Ele ainda está vivo dentro de mim”.
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