João Grilo, astuto e fanfarrão, recitava versos destrambelhados, fazia traquinagens com o amigo Chicó, arrematando impressões com a maior inocência, como a que fez para Manuel, o Leão de Judá, o filho de David, o Jesus negro da peça O Auto da Compadecida:
- O senhor é Jesus? Aquele a quem chamam de Cristo? (...) não é lhe faltando o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.
As lorotas de João provocam gargalhadas, mas, por pouco, não baniram de nossas escolas seu pai, o teatrólogo, advogado, cancioneiro, o admirado romancista de A Pedra do Reino, o imortal da Academia Brasileira de Letras, o genial paraibano Ariano Suassuna, que, ao falecer, quarta feira passada, aos 87 anos, deixa um dos mais ricos legados da história de nossa literatura.
O banimento quase se deu, há alguns anos, quando um grupo que se dizia defensor do conceito “politicamente correto”, vestindo o manto dos censores da Inquisição ou dos anos de chumbo da ditadura de 64, produziu uma cartilha financiada pelo Governo Federal, onde se registravam como discriminatórios verbetes e expressões comezinhas, como “comunista”, “anão”, “beata”, “barbeiro”, “palhaço”, “ladrão”, “farinha do mesmo saco”.
A expressão de Suassuna certamente estaria presa no cárcere montado pelos guardiões do templo da palavra nesses tempos de controle do verbo e descontrole de verbas. O amontoado de besteiras apenas serviu para subir o tom das gargalhadas de João Grilo e Chicó.
Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro (que também nos deixou,semana passada) e Jorge Amado, seu conterrâneo, foram exímios intérpretes da alma nacional. Desenharam uma galeria de personagens desbocadas, autênticas, alegres, doidas, radicais, sem nunca se submeterem ao tacão do “politicamente certo”, conceito que tem sido a vara de condão de grupos ideológicos entroncados na árvore do poder. Amparavam-se na linguagem para retratar o cotidiano. Quem os vê como discriminadores, senão radicais ou ignorantes?
Quem não fica indignado em ver Monteiro Lobato no paredão da censura? Acusam-no de ser preconceituoso por retratar “a preta” Tia Anastácia. Lobato foi execrado por ter comparado Tia Anastácia, personagem em Caçadas de Pedrinho, a uma “macaca de carvão” e, ainda, porque o conto Negrinha, de sua autoria, abrigar conteúdo racista.
Não há como imaginar personagens que tanto encantaram crianças e adultos – como Tia Anastácia, Emília, Pedrinho, Saci-Pererê, Visconde de Sabugosa, – fazendo a discriminação, ao final do século XIX, como enxergam os patrulheiros de plantão.
Jorge Amado, em Capitães de Areia, apresenta João Grande, “negro de treze anos, forte e o mais alto de todos. Tinha pouca inteligência, mas era temido e bondoso”. Retratavam um tempo em que a negritude era apresentada de maneira pejorativa.
Censurar a expressão de uma época é apagar costumes, jogar as tradições na fogueira de Torquemada.
A polêmica sobre o uso do lexema negro na literatura se expande na esteira de um debate enviesado sobre direitos humanos. Ocorre que as lutas pela igualdade têm jogado na vala comum da discriminação manifestações de todo tipo, mesmo as que retratam ciclos históricos.
Voltemos à antiguidade. Aristóteles, o pensador da filosofia clássica, dividia o mundo entre gregos e o resto, no caso, os bárbaros, selvagens e escravos natos.
Já Platão, em sua obra clássica A República, definia o Estado ideal como aquele dirigido pelos melhores. Dizia ele: “o ouro não se mistura ao bronze”.
Joaquim Nabuco, o abolicionista, chegou a se indignar com os sacerdotes que possuíam escravos: “nenhum padre nunca tentou impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas”.
E o que dizer de Aluisio Azevedo, descrevendo nas páginas de O Mulato (1881): “se você viesse a ter netos, queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina?”
Lima Barreto também não escaparia do paredão. Em Histórias e Sonhos, diz: “não julguei que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo feiticeiro”. Para os ignaros da censura, explique-se que este grande intérprete produziu Clara dos Anjos (1922), libelo contra o preconceito, a história de uma mulata traída e sofrida por causa da cor.
Em Escrava Isaura (1875), Bernardo Guimarães escreve trechos que hoje estariam no índex proibido: “não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme como a mais vil das negras”?
Sem esquecer o jesuíta André João Antonil com seu texto que pode ser considerado discriminatório: “os mulatos e as mulatas são fonte de todos os vícios do Brasil”. Ele escreveu o clássico Cultura e Opulência do Brasil (1711).
À guisa de conclusão, o celebrado Fernando Pessoa: “o espírito feminino é mutilado e inferior; o verdadeiro pecado original, ingênito nos homens, é nascer de mulher”. Arrematado por Shakespeare, que narra, em Otelo, o drama de Brabâncio deixando a filha livre para escolher o marido que mais a agradasse. A donzela escolheu um mouro. Otelo foi contratado para matá-lo.
Toda essa moldura vem à tona no momento no adeus a Ariano Suassuna, fiel intérprete do espírito da linguagem. Dizia ele que o português é a linguagem mais sonora e musical do mundo. Daí a necessidade de expressá-la com as nuances das ruas, com seus personagens e sem a gramática que ajusta as curvas da língua, um ato antidemocrático.
Suassuna, “uma aula viva estupenda e um permanente espetáculo folgazão de inteligência, vida, senso de humor e savoir-faire”, no dizer de José Neumanne (OESP, 23/07/2014), deixa grande lição: “respeitemos a linguagem falada, que é diferente da letra”.
Não é possível que a preamar do niilismo, anunciada por Ortega Y Gasset na terceira década do século XX, tente reaparecer em nosso mundo literário.
Que o desaparecimento de Ivan Junqueira, João Ubaldo, Rubem Alves e Ariano Suassuna nessa triste quadra reforce a convicção de que não podemos ceder um milímetro aos organizadores da “nova cultura”.
João Grilo implora.
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