O monumento carioca personifica um homem ereto, simpático, plácido e saudável, em cujo rosto se pode perceber um sorriso sutil
O veto da Arquidiocese do Rio de Janeiro ao uso da imagem do Cristo Redentor no episódio “Inútil Paisagem”, de José Padilha, no filme “Rio, eu te amo” é um fato muito mais preocupante do que a derrota da seleção brasileira para a Alemanha por 7 a 1 na Copa do Mundo.
O jogo, por mais dramático e humilhante que tenha sido, foi só um jogo. O veto é um atentado à Liberdade. É também um acinte e um desrespeito aos habitantes do Rio e a todos os brasileiros que prezam a democracia e a liberdade de expressão. Mais que isso, é um grande disparate. Nada mais anticarioca que a falta de humor, desinteligência e intolerância dos clérigos responsáveis por esse veto. Um Estado laico não pode permitir que uma religião detenha os direitos de um monumento público tão importante e símbolo maior da cidade mais representativa do país.
O veto é também um equívoco. Alguém precisa avisar aos padres responsáveis que o Cristo Redentor não é o Jesus Cristo da Bíblia. Será que eles ainda não perceberam isso? De que adiantaram todos aqueles anos no seminário, afinal de contas?
O Cristo bíblico é uma figura geralmente representada pela imagem de um homem agonizante pregado a uma cruz, com chagas, feridas sangrentas e outras marcas de tortura espalhadas pelo corpo descarnado, cuja face encovada e olhos cerrados sombreados por uma coroa de espinhos indicam uma assustadora iminência do rigor mortis, a rigidez do corpo que ocorre horas após a morte. As imagens do Cristo crucificado impressionam pela violência e morbidez. Espanta-me que o símbolo principal da religião católica seja um instrumento de tortura romano e que o enviado de Deus tenha vindo ao mundo para redimir os pecados dos homens. Que pecados? As transgressões à sua própria doutrina?
O Cristo Redentor que nos saúda do alto do Corcovado nada tem a ver com seu xará bíblico. O Cristo carioca personifica um homem ereto, simpático, plácido e saudável, em cujo rosto se pode perceber um sorriso sutil. Este Cristo abre os braços sobre a cidade como se se preparasse para abraçá-la, ou nela mergulhar. Com esse gesto o Cristo carioca parece aceitar o Rio de Janeiro com suas mazelas, injustiças, trânsito insuportável, contradições, qualidades, defeitos, esperanças, desilusões, alegrias, tristezas e... pecados. “Não julgueis para que não sejais julgados”, sussurra ele entre nuvens, do cume do morro.
O Cristo bíblico cuja imagem os padres censores querem preservar é aquele que proferia raivoso e indignado pelas cidades poeirentas da Galileia aos que não concordavam com suas pregações: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação ao inferno?”. O Cristor Redentor carioca, conhecido pela gentileza, tolerância e afabilidade, jamais seria tão sectário.
O monumento do Cristo Redentor, projetado e executado pelo engenheiro Heitor da Silva Costa, pelo artista plástico Carlos Oswald e pelo escultor francês Paul Landowski e inaugurado em 12 de outubro de 1931, há muito deixou de ser só um símbolo religioso. Ele encarna o espírito “gente boa” e tolerante do carioca, e também sua vocação para a alegria, apesar das adversidades. O Cristo Redentor representa também a religiosidade impura e heterogênea desta cidade, em que umbandistas, budistas, católicos, macumbeiros, evangélicos, judeus, muçulmanos, protestantes, ateus, agnósticos, indefinidos e indiferentes misturam suas crenças e descrenças na mais absoluta paz de espírito. Das igrejas, dos puteiros, dos escritórios, das praias, das escolas de samba, das universidades, dos ônibus lotados, dos jatinhos particulares, das favelas, das mansões, das calçadas imundas, dos terreiros, dos bueiros e dos táxis, de qualquer janela sempre se avista o Cristo Redentor, perene, a nos confirmar que nos encontramos no Rio de Janeiro. Aqui, até do inferno dá para avistar o Cristo.<SW><YR>
Em “Por que não sou cristão”, o filósofo Bertrand Russell, dissertando sobre o cristianismo, afirma: “Quando ouvimos pessoas na igreja se rebaixando e dizendo que são pecadoras miseráveis e tudo o mais, isso me parece algo desprezível e indigno de seres humanos que respeitem a si mesmos. É necessário nos erguermos e olharmos para o mundo com franqueza, de frente. Precisamos fazer com que o mundo seja o melhor possível — e, se ele não for tão bom como gostaríamos que fosse, no final das contas ainda será melhor do que aquilo que todos esses outros fizeram dele ao longo de tantas eras. Um mundo bom precisa de conhecimento, gentileza e coragem; não precisa de anseios pesarosos pelo passado nem do agrilhoamento do livre pensar a palavras proferidas há muito tempo por homens ignorantes. Precisa de perspectivas desprovidas de medo e de liberdade para a inteligência. Precisa de esperança para o futuro, e não de retrocesso a um passado que já morreu, que, acreditamos, será enormemente superado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar”.
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