Apóstrofo, apóstrofo... sinal diacrítico cuja força está na ausência, e não na presença
por José Augusto Carvalho*
Olha a voz que me resta Olha a veia que salta Olha a gota que falta Pro desfecho da festa Por favor.. Deixe em paz meu coração Que ele é um pote até aqui de mágoa E qualquer desatenção, faça não Pode ser a gota d'água Pode ser a gota d'água Pode ser a gota d'água.... Chico Buarque | Nas ondas da praia Nas ondas do mar Quero ser feliz Quero me afogar. Nas ondas da praia Quem vem me beijar? Quero a estrela-d'alva Rainha do mar. Excerto de A Estrela da Manhã Manuel Bandeira |
ETIMOLOGIA
Apóstrofo: do adj. grego apóstrofos, 'que voltou'; do verbo grego apostrépho, 'voltar, fazer voltar, chamar'.
Fonte: Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, versão online.
Não é só o emprego do hífen que constitui o terror dos que escrevem, segundo o malvindo acordo ortográfico de 1990 que, felizmente, Portugal não vai seguir, para que os "donos da língua" resolvam trabalhar num acordo cientificamente válido e definitivo, discutido e elaborado por pesquisadores, doutores, linguistas e filólogos de notável saber, recrutados nos países lusófonos interessados numa ortografia unificada que ponha um fim a esse excesso de acordos e desacordos que só servem para atrapalhar a vida dos usuários da língua.
Antes de começar este ensaio, gostaria de mostrar a diferença entre vocábulo mórfico e vocábulo fonético. As palavras"cálice" e "cale-se" são três unidades mórficas, isto é, constituem três unidades lexicais distintas: um substantivo, um verbo e um pronome pessoal apoclítico, respectivamente. Ora, "cálice" e "cale-se" se pronunciam da mesma forma. Constituem, portanto, um único vocábulo fônico, uma unidade fonológica, ainda que sejam escritos diferentemente, por serem vocábulos mórficos distintos.
O inútil e desastroso acordo de 1990 diz que o apóstrofo se emprega nos seguintes casos:
1. Para indicar a supressão da vogal em palavras ligadas pela preposição de: copo-d'água (planta), galinha-d'água, mãe-d'água, olhod'água, pau-d'água (árvore), pau-d'alho, pau-d'arco, etc.;
2. Para evitar uma contração ou aglutinação, quando um elemento ou fração respectiva pertence a um conjunto vocabular distinto: d'Os Sertões, n'Os Lusíadas, pel'Os Sertões, etc. Porém, a preposição pode empregar-se na íntegra: de Os Sertões, por Os Lusíadas, em O Globo, etc.;
CURIOSO AFASTA DE MIM ESTE CÁLICE/CALE-SE! Em Cálice, canção escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, percebe-se um elaborado jogo de palavras criado para despistar a censura da ditadura militar que dominava o Brasil à época. A canção teve sua execução proibida durante anos no Brasil e só foi lançada em disco em novembro de 1978 no álbum Chico Buarque. Para saber mais sobre a história da canção, acesse: |
3. Para evitar a contração ou aglutinação, quando um elemento ou fração respectiva é forma pronominal e se quer dar realce com o uso da maiúscula: d'Ele, d'Aquele,d'O, pel'A, m'O, lh'O, no caso em que a forma pronominal é aplicável a Deus, à Virgem, à Providência divina, a santos;
4. Para representar a elisão das formas santo e santa antes de nomes do hagiológio:Sant'Ana, Sant'Iago, etc. Se as ligações desse gênero se tornam perfeitas unidades mórficas, não se usa o apóstrofo: Santana da Parnaíba, Santiago do Chile, ilha de Santiago, etc.
Também se pode usar o apóstrofo nas ligações de duas formas antroponímicas, quando se elide o o final do primeiro nome: Nun'Álvares, Pedr'Eanes...
OBSERVAÇÃO: Restringindose o emprego do apóstrofo a esses casos, cumpre não se use dele em nenhuma outra hipótese, segundo o Formulário Ortográfico, que rastreio. Assim, não será empregado:
a) Nas contrações das preposições de e em com artigos, adjetivos ou pronomes demonstrativos, indefinidos, pessoais e com alguns advérbios: del (em del rei); dum, duma (a par de de um, de uma), num, numa (a par de em um, em uma); dalgum, dalguma (a par de de algum, de alguma), nalgum, nalguma (a par de em algum, emalguma): dalguém, nalguém (a par de de alguém, em alguém), doutrem, noutrem (a par de de outrem, em outrem); dalgo, dalgures (a par de de algo, de algures); daquém, dalém, dacolá (a par de de aquém, de além, de acolá); doutro, noutro (a par de de outro, em outro), dele, dela, nele, nela, deste, desta, neste, nesta, daquele, daquela, naquele, naquela, disto, nisto, daquilo, naquilo, daqui, daí, dacolá, donde, dantes, dentre; doutrora (a par de de outrora), noutrora; doravante (a par de de ora avante), etc.;
"Pai d'égua é sempre maior Pai d'égua é dia de sol Pai d'égua é rede, é vento Pai d'égua é moça, é tento"
Lucinha Bastos - Pai d'égua
Lucinha Bastos - Pai d'égua
GLOSSÁRIO DO APÓSTROFO *as definições abaixo correspondem ao contexto do artigo, e não necessariamente a todas as acepções dos termos. 1. Apóstrofo substantivo masculino 1 sinal diacrítico, freq. em forma de vírgula voltada para a esquerda, mas tb. reto, que, alceado a um nível superior ao das letras minúsculas, serve para indicar a supressão de letra (s) e som (ns) (como em mãe-d'água, Vozes d'África, etc). 2. Diacrítico adjetivo e substantivo masculino 1 diz-se de ou sinal gráfico complementar que modifica o valor de algum símbolo. 2 fon. ortg. diz-se de ou sinal gráfico que se acrescenta a uma letra para conferir-lhe novo valor fonético e/ou fonológico [na ortografia do português, são diacríticos os acentos gráficos, a cedilha, o trema e o til]. 3. Apoclítico adjetivo 1 que diz respeito à apóclise. 4. Apóclise substantivo feminino 1 subordinação de acentuação de uma palavra à tônica da palavra anterior, como nos pronomes enclíticos, ou seja, os que ocorrem depois do verbo (p. ex. diga-me, vê-lo). 5. Elisão substantivo feminino 1 ato ou efeito de elidir; supressão, eliminação. 2 fon. gram. modificação fonética decorrente do desaparecimento da vogal final átona diante da inicial vocálica da palavra seguinte (p. ex: daqui [de aqui], d'água [de água], Sant'Ana [Santa Ana]). 6. Hagiológico adjetivo relativo a santos. 7. Antroponímico adjetivo referente a antropônimo, nome próprio de pessoa ou de ser personificado. Fonte: Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, versão online. |
b) nas combinações dos pronomes pessoais: mo, ma, mos, mas, to, ta, tos, tas, lho, lha, lhos, lhas, no-lo, no-la, no-los, no-las, vo-lo, vo-la, vo-los, vo-las;
c) nas expressões vocabulares que se tornaram unidades fonéticas e semânticas: dessarte, destarte, homessa, tarrenego, tesconjuro, vivalma, etc.;
d) nas expressões de uso constante e geral na linguagem vulgar: co, coa, ca, cos, cas, coas (= com o, com a, com os, com as), plo, pla, plos, plas (= pelo, pela, pelos, pelas), pra (= para), pro, pra, pros, pras (= para o, para a, para os, para as), etc.
Ora, segundo essas regras, como as expressões "dágua", "nágua", por exemplo, são "unidades fonéticas e semânticas", como "tesconjuro" ou "vivalma", recomendadas pelas regras citadas acima na alínea "c", é lícito supor que escrever "debaixo d'água", com apóstrofo, contraria as normas estipuladas pelo Acordo e pelo Formulário Ortográfico.
Escrevi à Academia Brasileira de Letras a seguinte pergunta, depois de ter transcrito as regras constantes do Acordo de 1990 e do Formulário Ortográfico: "Escrever 'debaixo d'água' em lugar de 'debaixo dágua' não seria uma violação às regras do emprego do apóstrofo?".
Resposta da ABL: "Prezado consulente, não havia necessidade de copiar as regras ortográficas, visto que o representante oficial no Brasil do novo Acordo Ortográfico, Prof. Dr. Evanildo Bechara, é acadêmico da ABL e Coordenador da Equipe de Lexicografia e Lexicologia. Evanildo Bechara explica em sua obra acerca do novo Acordo: 'd) Emprega-se o apóstrofo para assinalar, no interior de certas formações, a elisão do e da preposição de, em combinação com substantivos: borda-d'água, cobra-d'água, copo-d'água (= certo tipo de planta; espécie de lanche), estrela-d'alva, galinha-d'água, mãe-d'água, pau-d'água (= certa árvore; bêbado), pau-d'alho, pau-d'arco, pau-d'óleo'. Escreve-se, portanto, com apóstrofo".
Fiz ver, numa contestação, que os exemplos dados na resposta eram exclusivamente de palavras compostas, hifenizadas, que não eram objeto da minha dúvida. Portanto, voltei a formular a pergunta.
Resposta da ABL:
"Lamentamos o equívoco da resposta anterior e ressaltamos que a expressão corretamente grafada é 'debaixo de água'".
"Lamentamos o equívoco da resposta anterior e ressaltamos que a expressão corretamente grafada é 'debaixo de água'".
Que se podia escrever "debaixo de água" sem o apóstrofo e sem a supressão da vogal da preposição era uma informação desnecessária e não pertinente. Voltei a escrever à ABL, repetindo a pergunta.
Resposta: "Pergunta já respondida em e-mail anterior".
Respondi malcriadamente, desistindo: "Se há dificuldades para responder à minha pergunta, por favor, peça ao Evanildo Bechara que o faça".
"Se não podes lutar como um samurai, podes ao menos morrer como um samurai."
Kill Bill I
Kill Bill I
POR DENTRO E AÍ... Apóstrofo e apóstrofe são parônimos, ou seja, vocábulos que se diferenciam ligeiramente na grafia e na pronúncia e têm sentido diferente (por exemplo: diferir, deferir; discrição: descrição; emigrar: imigrar), o que causa, muitas vezes, confusão por parte dos usuários da língua). Apóstrofo, como já explicitado, é um sinal diacrítico que indica a supressão de uma letra e som. Apóstrofe, por sua vez, é uma figura de retórica com a qual o narrador ou orador interrompe o curso natural das ideias, para se dirigir a uma pessoa ou coisa. Exemplos: "Desce, e assentate no pó, ó virgem filha de Babilônia; assenta-te no chão; "Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal" (Fernando Pessoa). |
Além da constatação de que não há gente academicamente qualificada para responder às perguntas dos consulentes, resolvi, por conta própria, nos meus trabalhos, escrever "dágua", "nágua", a exemplo de "tesconjuro" e "vivalma", por entender que o "etc." da alínea "c" acima transcrita, do Formulário Ortográfico, me autoriza a fazê-lo, sobretudo porque é dogmática a observação oficial: "Restringindo-se o emprego do apóstrofo a esses casos, cumpre não se use dele em nenhuma outra hipótese". Assim, escrevo "espelho dágua", "pulo nágua", etc.
A regra 3 do acordo diz que se pode escrever "d'Aquele", "d'Ele", etc., quando o pronome se refere à divindade. Ora, se "daquele" e "dele" constituem vocábulos fonéticos, não há razão para quebrar essa unidade lexical com o uso do apóstrofo. Já que se trata de vocábulos fonéticos, escrever "Daquele" e "Dele" com iniciais maiúsculas também indica respeito e reverência, sem necessidade de quebrar a unidade da palavra com o uso do apóstrofo.
Dizer que "pra", "pro", "coa" (alínea "d") são expressões da linguagem vulgar é desconhecer seu emprego por escritores, professores e bons usuários da língua. Cf. "Parabéns pra você".
Na tradução do poema "O corvo", de Edgar Allan Poe, por exemplo, Machado de Assis escreve: "Entro coa alma incendiada" (ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959, p. 160). Linguagem informal não é necessariamente linguagem vulgar.
Acho que os responsáveis pela divulgação do Acordo Ortográfico e do Formulário Ortográfico deveriam ter mais cuidado ao usar o "etc." no exemplário das regras, no mínimo para evitar que as dúvidas dos usuários da língua não esbarrem com a incompetência dos que deveriam responder a elas.
* José Augusto Carvalho é mestre em Linguística pela Unicamp, doutor em Letras pela USP e autor de um Pequeno Manual de Pontuação em Português (1ª edição, Bom Texto, do Rio de Janeiro, 2010, 2ª edição, Thesaurus, de Brasília, 2013) e de uma Gramática Superior da Língua Portuguesa (1ª edição, Univ. Federal do ES, 2007; 2ª edição, Thesaurus, de Brasília, 2011).
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