“Mas, perante Deus, acuso um só homem como responsável por esse crime. Este homem chama-se Getúlio Vargas”. Com estas palavras Carlos Lacerda acusou o então presidente da República de ser o autor do atentado que sofreu no dia 5 de agosto de 1954, que completa 60 anos na próxima terça-feira, e foi o estopim para a crise no governo que culminou com o suicídio do governante.
O jornalista e político estava chegando em sua casa, na rua Tonelero número 180, em Copacabana, depois de um comício, quando vários tiros foram disparados em sua direção. Lacerda estava acompanhado de dois oficiais da Aeronáutica e de seu filho. Uma das balas atingiu fatalmente o oficial Rubens Vaz e outra, motivo de especulações até os dias atuais, teria acertado o pé do principal opositor de Vargas.
— Carlos Lacerda era um homem absolutamente teatral. Até hoje não é possível reconstituir, em uma narrativa única, pronta e acabada, todas as circunstâncias daquela trágica madrugada de 5 de agosto — afirma o jornalista Lira Neto, autor da biografia sobre Getúlio Vargas, com dois volumes já lançados e um terceiro que deve chegar às lojas neste ano. — As várias versões são contraditórias, incompatíveis entre si. O próprio Lacerda, ao longo do tempo, em situações distintas, narrou o episódio de diferentes maneiras, ajudando a tornar a história ainda mais nebulosa. O desaparecimento do prontuário do hospital, que poderia atestar se o jornalista teria ou não sido realmente ferido no pé, só complicou ainda mais o esclarecimento do caso — acredita.
Ainda assim, o jornalista conseguiu atrair setores da sociedade para se manifestarem contra o presidente. A imagem de Lacerda sendo levado por dois oficiais da Aeronáutica foi estampada nos principais jornais do país e demonstrou a aproximação que o político tinha com as Forças Armadas.
— Os dois oficiais da Aeronáutica faziam a segurança particular de Lacerda e não estavam fardados, mas quando apareceu para o público, o jornalista foi carregado pelos militares uniformizados — o professor de História do Brasil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Marcus Dezemone. — Existia uma aproximação muito forte entre o Lacerda e seu partido, a UDN, com a Aeronáutica. O que evidencia o motivo pelo qual Vargas passou a confiar em uma milícia para sua segurança pessoal em vez das forças do Estado — analisa.
Dezemone aponta diferentes versões do caso:
— Houve relatos de que ele deu um tiro no próprio pé para criar uma encenação ou até que a bala acertou suas nádegas. A questão é que o atentado foi usado como uma tentativa política para inviabilizar a permanência de Vargas no poder. E, de certa forma, conseguiu.
Mais do que ligar o caso à imagem do seu opositor, as investigações apontaram que pessoas do círculo mais próximo do presidente estavam envolvidas. Ainda assim, não há nenhuma indicação de que Vargas sabia dos planos.
— Getúlio morreu negando, com veemência, qualquer envolvimento pessoal no caso. E, na esfera privada, ficou verdadeiramente chocado quando as investigações apontaram para Gregório Fortunato (chefe da sua guarda pessoal) e outros homens de seu grupo — afirma Lira Neto, que aponta que o inquérito desenvolvido por oficiais do Galeão, ligados a Lacerda, abalou o presidente por mostrar tráfico de influência no Palácio do Catete.
A informação de que seu filho, Maneco Vargas, havia vendido uma fazenda para Gregório, abalou a moral do presidente, segundo Lira Neto.
— Para fechar o negócio, Gregório, cujo salário era incompatível com o valor em jogo, contara com a ajuda de Jango, que avalizara para ele um vultuoso empréstimo bancário. No entender de Getúlio, ficara caracterizada a mácula: o filho de um presidente da República fechara com o chefe da segurança oficial um negócio suspeito, com o devido aval de um ex-ministro, homem de sua mais absoluta confiança — diz.
A atuação do presidente já não era mais a mesma. O homem que esteve à frente da Revolução de 1930, instaurou a ditadura do Estado Novo e governou o país por quase 19 anos, com uma interrupção entre 1945 e 1950, perdia o seu protagonismo.
— O cerco da imprensa, que já era enorme, fechou-se por completo. No parlamento, agravou-se o gradativo processo de isolamento político, então em curso — afirma Lira Neto.
Dezemone aponta que, para além dos aspectos políticos, a própria personalidade do presidente evidencia sua reação perante aos desdobramentos que os tiros na rua Tonelero provocaram.
— Vargas era acostumado a governar “à canetada”. O seu segundo governo é a primeira vez em que é eleito e governa democraticamente. Pela dificuldade em lidar com o regime democrático e com a oposição, há um desgaste — afirma Dezemone, que aponta que a possibilidade de suicídio não era uma novidade para o presidente:
— Em dois momentos Vargas cogitou o suicídio: na Revolução de 1930, ao sair com suas tropas do Sul, ele afirmou que “o preço de um grande fracasso só pode ser pago com um grande sacrifício". E após a Segunda Guerra Mundial, ele acreditou que as Forças Expedicionárias Brasileiras poderiam aplicar um golpe quando chegassem no país. E optaria pelo suicídio caso isso acontecesse.
SUICÍDIO FOI ESCOLHA POLÍTICA
Para Lira Neto, o suicídio de Vargas foi uma resposta política perante o instável cenário da época.
— Os rumos tortuosos do chamado “Inquérito do Galeão" poderiam, no limite, levá-lo à prisão. Com o gesto extremo, suicidando-se, Vargas neutralizou a fúria dos adversários e assumiu a dimensão de mártir popular — analisa Lira Neto.
Na madrugada de 23 para 24 de agosto, Getúlio Vargas, como afirmou em sua Carta-testamento, “saiu da vida para entrar na História" com um tiro no peito em plena residência oficial do presidente da República. A comoção popular foi instaurada nos dias seguintes. Sedes de jornais foram quebradas, Carlos Lacerda teve que lidar com manifestações na porta de sua casa, e uma multidão fez vigília em frente ao Palácio do Catete esperando a retirada do caixão com o corpo de Vargas.
— Não se deve compreender esta comoção como uma manipulação, como muitos já falaram. Ela não está somente na dimensão simbólica. Está ligada à experiência dos trabalhadores, tanto do campo como da cidade, que viram ganhos no seu governo e, por isso, foram às ruas. Não foi o suicídio que atrasou um possível golpe que poderia ocorrer naquele momento, foi a reação das pessoas — relata Dezemone.
As semanas seguintes foram de forte turbulência política, com uma inédita sucessão presidencial em que o posto de presidente da República foi ocupado por três políticos em pouco mais de cinco meses. As mobilizações contra Lacerda fizeram com que ele saísse do país por curto tempo. Ainda assim, o jornalista fez campanha para a depor outros presidentes, como Juscelino Kubitschek e João Goulart, e ficou conhecido “demolidor de presidentes”.
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