sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Te Contei, não ? - Ilha Grande - Memórias do cárcere


Velho barco que transportava presos políticos e criminosos lendários vai virar peça de museu. Cessão só depende do estado

ROSAYNE MACEDO



Rio - O ano era 1970. No porão do pequeno barco, dezenas de pessoas se amontoavam, numa viagem que durava até 10 horas, sacudida pelas ondas do mar agitado da Baía de Ilha Grande. Eram presos políticos do período mais duro da ditadura militar, que seriam trancafiados, junto com traficantes, assaltantes e assassinos, no Instituto Penal Cândido Mendes.

“O porão era muito apertado. A gente ficava ali, espremido, junto aos alimentos, um calor infernal. De lá de fora dava para ouvir o guarda, armado, gritar no convés: ‘Se vier aqui vai tomar porrada’”, lembra o jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira, um dos passageiros do Tenente Loretti, barco que está prestes a virar, literalmente, peça de museu. 



Construída em 1910, a embarcação que serviu durante longos 57 anos para transportar detentos entre o Rio de Janeiro e a Ilha Grande foi resgatada após afundar em março deste ano e está sendo restaurada em um estaleiro de Angra dos Reis. A ideia é que possa ser aberta à visitação, como parte do acervo do Museu do Cárcere, administrado pela Uerj, que ocupa parte dos escombros da antiga penitenciária e que hoje recebe cerca de mil visitantes por mês. A cessão do barco, que pertence à Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap), está sendo negociada pela prefeitura. 
Comandada com mãos de ferro durante anos pelo Capitão Constantino Cokotós,falecido em 2013, a Tenente Loretti transportou presos políticos e bandidos famosos. Nela, além de Gabeira, viajaram o romancista e jornalista Graciliano Ramos; o compositor Carlos Imperial; o assaltante João Francisco dos Santos,o “Madame Satã”; o contraventor Castor de Andrade; o traficante José Carlos dos Reis Encina, o “Escadinha”, e Lúcio Flávio, condenado a 585 anos de prisão por furtos e homicídios.




“O Tenente Loretti com certeza é um símbolo da prisão da Ilha Grande. Todos os presos que iam para lá eram transportados pela embarcação”, conta Gabeira. Outra preciosidade que ajuda a contar a história do cárcere no Brasil, porém, permanece desaparecida no fundo do mar: a Jupira, por onde os presos de Ilha Grande escapavam. “A Jupira era muito conhecida pelos encarcerados. Eles a viam como um ouro, a chance de escapar”, completou Gabeira, que só não fugiu pela Jupira porque não sabia nadar.

Embarcação ajudou a salvar Roberto Marinho em 1970 
O antigo cargueiro de madeira de 23 metros foi lançado ao mar em 1910 e desde 1937 estava na Ilha Grande. O Tenente Loretti foi usado para transportar material e operários que construíram o presídio. “A partir de 1950, passou a realizar duas viagens semanais para o Rio, transportando presos até a extinção do presídio, em 1994”, conta a historiadora Ana Maris Ribeiro.


No dia 12 de março de 1970, a embarcação ajudou a salvar a vida de Roberto Marinho, fundador das Organizações Globo, e dois amigos, vítimas de um naufrágio na Baía da Ilha Grande. Doada pela Marinha em 1994 ao governo do estado, a embarcação passou a ser utilizada pelo Corpo de Bombeiros em ações de salvamento. Fundeada na Vila do Abraão, teve o motor inutilizado pela falta de conservação — o casco de madeira foi atacado por moluscos conhecidos por “cupins do mar”. 
Em março deste ano, o velho barco foi a pique após uma pane elétrica. “Sabendo do gigante valor histórico da embarcação para a cidade, a prefeitura não poderia deixá-la no estado em que estava, submersa”, disse Silvia Rúbio, presidente da TurisAngra.

Colaborou o estagiário Vinicius Amparo

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