08 agosto 2014/ Fernanda Torres
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro escolheu um trecho dos Sermões do padre Vieira para ler na mesa da Flip sobre os livros que os autores convidados levariam para uma ilha deserta. A passagem era de uma beleza extrema e falava muito sobre nós, eternos índios, habitantes da Terra Brasilis.
Nela, Vieira faz uma comparação entre as estátuas de mármore e as feitas de murta. As primeiras demandariam tempo e esforço do escultor e exigiriam um trabalho árduo para transformar a matéria. Uma vez definidas, no entanto, permaneceriam imutáveis ao longo dos séculos. Já as de hera deveriam ser eternamente podadas, para evitar que dedos, olhos e pernas tortas surgissem em lugares indesejados.
O caráter maleável e orgânico das cercas vivas requereria a vigilância constante do escultor.
Vieira usa a metáfora para dizer que a palavra de Deus, nas sociedades ditas civilizadas, demandaria uma pregação rígida, que, uma vez transmitida, estaria para sempre presente na alma dos catequizados. Já entre os silvícolas, a mensagem deveria ser repetida à exaustão, dia após dia, pois ela jamais seria deveras fixada.
Os gentios, diz Vieira, aceitam Cristo com facilidade, para, em seguida, esquecê-lo, voltando de bom grado ao seu estado original. É uma imagem que fala da dificuldade que percebo no Brasil de alcançarmos um nível de civilidade sólido e estável. Vivemos num país que parece caminhar para a frente, para trás, para o lado; um lugar indomável, regido por forças naturais que se negam a ser aprisionadas por dogmas.
No encerramento da mesa, Davi Kopenawa, o líder ianomâmi, fez um apelo aos presentes para que se empenhassem na proteção de seu povo, ameaçado por garimpeiros, por forças políticas e econômicas que almejam o lucro e destroem a floresta.
Desde minha passagem pelo Xingu, em 1989, nas filmagens de Kuarup, compreendi que os índios não estão tão distantes de nós. Os brancos, pretos e amarelos que vieram dar aqui transformaram a terra, mas foram também influenciados pelas nações que ocupavam o território antes dos portugueses. Apesar do genocídio que continua a ocorrer, carregamos essa contradição, esse interesse e, ao mesmo tempo, desprezo pela racionalidade europeia.
A colonização não se dá apenas num sentido, ela também acontece na contramão da história. No México, a herança asteca e maia é tão forte quanto a espanhola, assim como os
incas são tão parte do Peru quanto os descendentes de Pizarro.
O trecho do sermão de Vieira, lido por Viveiros, é revelador quanto à nossa natureza doce e, ao mesmo tempo, arredia, quanto ao nosso encantamento e desconsideração pelo progresso. Lamentamos nossa cultura primitiva e, por outro lado, gozamos da liberdade de sermos selvagens.
No Rio de Janeiro, em especial, um certo escárnio cívico, uma raiva por termos perdido o poder da capital, nos torna ainda mais lenientes e avessos à capacidade da democracia cristã de nos livrar das nossas mazelas. Somos adoradores dos morros, dos matos e das águas, exatamente como os tamoios e tupinambás. Sobrevivemos apesar dos nossos governantes e das crenças que eles carregam.
A eleição que se aproxima promete ser uma escolha entre a cruz e a caldeirinha. Sinto que iremos às urnas como o índio ia à missa. Aceitaremos, mais uma vez, a tragédia que nos espera, com a mesma indiferença com que os silvícolas rezavam o Credo.
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