Só um otário poderá nos restituir a dignidade. ‘Seja otário, seja herói’, diz o meu poema-bandeira, parafraseando o saudoso e genial Hélio Oiticica
“Seja marginal, seja herói”, diz o poema-bandeira do artista plástico Hélio Oiticica. Na obra a frase se sobrepõe a uma foto do bandido Cara de Cavalo, morto pela polícia do Rio em 1964. Criado em 1968, o poema-bandeira de Oiticica tornou-se uma pièce de résistance contra a ditadura militar, quando qualquer transgressão e desobediência funcionava como necessária e bem-vinda afronta ao regime. Durante a ditadura esse comportamento teve sua função, mas depois de restaurada a democracia — e com o crescimento do crime organizado e da violência em nossas cidades —, a exaltação da criminalidade soa hoje anacrônica e sem sentido.
Não quero dizer com isso que devemos obedecer bovinamente qualquer lei ou obrigação impostas. É legítimo questionar democraticamente leis que atentem contra direitos individuais, e acredito que várias delas (as que criminalizam aborto e uso de drogas, por exemplo) e obrigatoriedades (voto, serviço militar etc.) devem ser revistas. Sei que muitos reivindicam outras revisões. É saudável que nos insurjamos contra o que consideramos errado. Mas obedecer a leis que garantem o convívio pacífico e a segurança pública e consolidam o estado democrático deveria ser uma prioridade, e não um estorvo.
No Brasil a valorização da figura do malandro é antiga. Nutrimos uma patriótica simpatia por aqueles que conseguem viver à margem da lei, driblando-a com habilidades de um Garrincha (Garrincha, para que não se percam leitores mais jovens, era uma espécie de Neymar da antiguidade. Um Neymar melhorado, apesar das pernas tortas e assimétricas). Enxergamos a malandragem como a maior de nossas virtudes: a capacidade de dar um “jeitinho” e continuar tocando a vida, como quem conduz uma bola na intermediária, escapando de reveses e fintando obstáculos. É assim que nos idealizamos: tirando de letra aporrinhações, sempre alegres e inzoneiros conforme determina nossa “brasilidade”, seja lá isso o que for. Gostamos de nos imaginar como “espertos”. Mui espertos.
A malandragem se imiscuiu em nossa percepção de nós mesmos e todos temos nossos 15 minutos de marginalidade, numa acepção de que o próprio Oiticica muito desgostaria. Corrupção, hipocrisia e dissimulação tornaram-se praxe em nossas relações civis. Policiais agem como bandidos, bandidos agem como bandidos, políticos agem como bandidos e cidadãos comuns também agem como bandidos ao cometer infrações e crimes que consideram corriqueiros e inofensivos como burlar o fisco ao declarar valores falsos em transações imobiliárias, oferecer uma “cervejinha” ao policial rodoviário numa blitz de estrada, trafegar no acostamento, desrespeitar o sinal vermelho, ultrapassar pela direita e por aí vai.
Nossa malandragem e nossa esperteza conduziram a um país desigual, atrasado, injusto e violento, com péssimos índices de IDH, de relevância internacional nula e desenvolvimento econômico pífio.
Tomemos o vareio de 7 a 1 como uma expressão crassa de nossa “malandragem”: os alemães, que a nossos olhos sempre foram duros e desprovidos de ginga e picardia, meteram sete gols goela abaixo dos malandraços aqui. Os otários germânicos têm empregos, segurança, hospitais, escolas e serviços de transporte público da mais alta qualidade. E futebol! Os malandros brazucas têm essa merda que nos enreda. Parabéns, malandragem! Nem com o futebol podemos mais contar como metáfora de nossa esperteza. Resta-nos chorar ao som do hino nacional. “O patriotismo é o último refúgio de um canalha”, já dizia o pensador inglês Samuel Johnson ainda no século XVIII.
Malandro que é malandro chora mas desconhece concordância verbal, não usa o plural, se lixa para conjugações e acha que falar direito é perda de tempo. Comunicar-se pela linguagem de presidiários é considerado cool entre bem-nascidos. No Brasil malandro não para no sinal vermelho. De madrugada, então, o otário que fizer isso é imediatamente promovido a babaca. Os espertos não leem. Ler pra quê? Há bons resumos na internet. Estudar? Com que finalidade? “Somos genuínos!”, bradam orgulhosos os pícaros. “É nóis!” O que me leva a concluir que não existem mais otários no país. Somos todos malandros.
A questão é: como ficam os malandros se não há mais otários?
E assim inicio minha campanha cívica “Procura-se um otário”. Só um otário poderá nos restituir a dignidade. “Seja otário, seja herói”, diz o meu poema-bandeira, parafraseando o saudoso e genial Hélio Oiticica. Um super-herói otário, um Super-Homem ao contrário, cuja identidade secreta é a de Clark Kent, o otário fundamental. Um otário gentil, honesto e educado. Um otário que respeite as leis, valorize o conhecimento e assim nos liberte de nossa escravidão mental.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/procura-se-um-otario-13474609#ixzz3AVtNsWcx
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