A essa altura, o Encourado está ainda mais zangado porque não consegue cumprir sua parte no julgamento – e, coitadinho, por força do papel, nem se divertir ele pode. A Compadecida, dessa vez, foi dispensada de interceder pelo homem alto e magro que, recém-chegado ao céu, reúne a maior plateia já vista de anjos e santos, todos embevecidos com sua aula-espetáculo. Ariano Suassuna ainda não percebeu, mas Manuel, o Jesus negro da peça “Auto da Compadecida”, teve de se recolher a um canto discreto para não comprometer a aura divina: às gargalhadas, ele ouve as histórias do escritor que transformou o sertão num clássico da cultura nacional e sucesso de público internacional.
Histórias como a da madrugada em que se preparava para o vestibular, no misto de sala de estudos e quarto de dormir, no primeiro andar da casa em que a família morava, no centro do Recife, quando ouviu a ponta de uma escada encostando na janela aberta. Com a luz apagada, Ariano se acocorou ao pé da janela enquanto acompanhava pelo som a escalada do intruso. Quando ele colocou a cabeça para dentro do sótão para reconhecer o ambiente, Ariano se levantou de supetão:
– Boa noite, seu ladrão!
O homem recuou do susto, a escada tombou e ele fugiu.
“O céu está em festa”, disse Ana Rita, a mais nova dos seis filhos de Ariano e Zélia, durante o velório do pai, na quinta-feira 24. “Nós vamos chorar e rir, pois lembraremos de todas as histórias dele.”
Mas Ariano era avesso ao céu. Pelo menos o dos homens, com seus aviões. Numa das suas saídas do Recife, a aeromoça percebeu seu incômodo com a viagem.
– Moço, o senhor está com falta de ar?
– Não, minha senhora. Estou com falta de terra.
O escritor de 15 peças de teatro, seis romances e dezenas de poemas, seu lado menos conhecido do grande público, partiu aos 87 anos, vítima de um AVC. Escrevia à mão e usava a máquina de escrever para passar o texto a limpo, antes de corrigir, refazer, rasurar novamente o papel. “Gosto do corpo a corpo com escrita”, explicou numa entrevista à ISTOÉ Gente. “Acho o computador frio.”
Ariano tinha na cultura oral e nos personagens populares do sertão sua eterna fonte de inspiração. Soube garimpar na aridez profunda das terras da Paraíba e de Pernambuco o ouro cultural que a Península Ibérica aportou ao Brasil nos séculos da colonização. Para isso, temporadas na fazenda de um tio, em São José do Egito, e os anos em que morou em Taperoá, na Paraíba, ofereceram-lhe os motes e os personagens.
“Na legendária Fazenda São Pedro ouvi, pela primeira vez na minha vida, meu tio Joaquim – seu Quincas – ler para mim, com uma dicção impecável, páginas e páginas de uma biografia de dom Sebastião, rei de Portugal. Foi lá que aprendi as primeiras “cantigas velhas”, romances ibéricos sobreviventes em nossa tradição oral e que aparecem ainda hoje em quase tudo o que escrevo”, anotou Ariano. Tirou de um dos moradores da fazenda, Mané Gaspar, o jeito de João Grilo, o protagonista da “Compadecida”.
Na origem desse homem sorridente, contador de histórias divertidas, havia um início de vida doloroso. Ariano nasceu no Palácio da Redenção, na capital da Paraíba, então chamada de Nossa Senhora das Neves. Seu pai era o presidente da província da Paraíba, de onde saiu eleito deputado federal. Aos 3 anos, despediu-se dele no porto do Recife. Para sempre. No Rio de Janeiro, então capital do País, João Suassuna foi assassinado com dois tiros, vítima da radicalização política da Revolução de 1930. No dia 8 de outubro, enviou uma carta à mulher, Rita, que pela emoção das palavras e a força dos propósitos marcou profundamente a família. Leia alguns trechos desse documento marcante, registrado no livro de um dos irmãos de Ariano como “Carta de um homem à sua mulher, na véspera de ser assassinado”.
Rio 8 de outubro de 1930
Ritinha
Saudades infindas!
Ah! minha querida mulher, só Deus sabe como tenho sofrido moralmente nesses dias de incerteza e apreensões terríveis. Quero dar o testemunho mais uma vez perante o Senhor para, se eu desaparecer também e não nos virmos mais nesse mundo de tristezas e dores pungentes, poder você assegurar aos nossos adorados filhos que eu sou inocente na morte do presidente João Pessoa.
Eu nunca me despedi de você, Ariano, Betinha e Saulo, a bordo, como de Neves e dos outros filhos em Paulista, com tanta saudade.
Ah! que esforço fiz para não chorar e demonstrar a você como me ficava o coração naquele abraço, talvez o último nesse mundo, em que os deixo ou deixarei pobres e expostos a verdadeiros martírios.
Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de vingança contra ninguém. Recorram a Deus e para Deus somente. Não se façam criminosos por minha causa!
Continue a educá-los no trabalho, na modéstia da vida e na religião cristã.
Ariano se lembra da despedida. A ausência do pai o marcou profundamente. “Essa é uma coisa com que a gente nunca se conforma”, disse. À ISTOÉ Gente contou uma história que mostra o poder da frase do pai, pedindo na carta para a família não alimentar vingança.
Condenado a quatro anos, o pistoleiro Miguel Alves de Souza cumpriu dois e, uma vez solto, passou desavisadamente próximo à fazenda da família, em Sousa, no sertão paraibano. Escapou da morte por misericórdia. “Lembro de um morador, que gostava muito de papai, ajoelhado nos pés de mamãe”, contou Ariano. “Ele pedia que ela não dissesse que mandava matar ele: mas dissesse apenas que permitia. Ela não permitiu.” Rita de Cássia Vilar Suassuna tirou dos nove filhos qualquer ideia de vingança e, até morrer, aos 94 anos, usou luto como forma de protesto.
Ariano deixa um livro inédito, uma obra de centenas de páginas a que se dedicou por três décadas. “É um livro dividido em vários romances mais curtos”, explicou. “Cada um deles tem vida independente. Pode ser lido separadamente. Mas, no todo, forma um conjunto harmonioso porque os personagens são os mesmos. Eu já escrevi muita coisa, mas o problema é saber o que vou colocar no primeiro. Porque o primeiro precisa servir de introdução aos outros.”
Quando seus interlocutores se espantavam demais com as reviravoltas de uma história, explicava que nunca mentia para criar uma história, apenas a melhorava. E, talvez pela infância difícil e a leveza com que tocou a vida depois, tinha outra máxima: “Toda história ruim de passar é boa de contar depois”. Ariano se vai, deixando pequenas joias, como esse trecho do poema “A mulher e o Reino”:
Dizem que tudo passa e o Tempo duro
tudo esfarela: o Sangue há de morrer!
mas quando a luz me diz que esse Ouro puro
se acaba por finar e corromper
meu sangue ferve contra a vã Razão
e há de pulsar o Amor na escuridão!
Foto: Leo Martins / Agencia O Globo
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