sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Crônica do Dia - Analfabetismo da alma - Flávia Oliveira

O preconceito contra religiões de matriz africana é mergulho no desconhecimento sobre a História, a cultura e a fé do povo brasileiro


Enquanto ergue o muro da intolerância religiosa, o indivíduo afunda no obscurantismo. O preconceito é o analfabetismo da alma. É cegueira voluntária, expressa no desprezo pelo respeito ao outro. Cada ofensa dirigida, cada pedra arremessada, cada incêndio provocado ampliam o desconhecimento sobre a História, a cultura, a tradição e a fé que moldaram boa parte do povo brasileiro e estão no DNA do “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”, como cantou Jorge Ben Jor. O intolerante abre mão de uma fieira de conhecimento do tamanho da capacidade humana de reter informações. É, portanto, ignorância ao infinito.

O intolerante deixa de saber que as religiões de matriz africana são matéria-prima da identidade nacional. O candomblé guarda os hábitos e a espiritualidade da gente que cruzou à força o Oceano Atlântico e ainda “produziu milagres de fé no extremo Ocidente”, ensinou Caetano Veloso. Ancorada no sincretismo, a umbanda é, por si só, exemplo de integração. O catolicismo imposto pelo colonizador português se moldou aos rituais de África e às crenças dos nativos do Novo Mundo, recém-descoberto. Um é tradição; outra, comunhão.

O intolerante deixa de saber dos fiéis que cantam, dançam e reverenciam a natureza. Prefere desconhecer o poder de cura das plantas. Ainda este ano, a ialorixá Maria Stella de Azevedo Santos lança “O que as folhas cantam para quem canta folha”, livro sobre os rituais que fazem das folhas remédios. Desde 1976 à frente do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais tradicionais de Salvador, Mãe Stella de Oxóssi foi a primeira líder do candomblé a se tornar membro da Academia Baiana de Letras. Ela ocupa a cadeira 33. Este ano, será a homenageada da Festa Literária de Cachoeira (Flica), prima mais nova da Flip de Paraty (RJ).

O intolerante deixa de saber que, aos 89 anos, Mãe Stella e Graziela Domini, a Iyá Iberê, psicóloga e iniciada no candomblé, trabalham num livro de provérbios africanos, indígenas e portugueses. Ignora que, em poucos meses, uma biblioteca itinerante com livros sobre religiões de matrizes africana, indígena e cristã começa a circular pela Bahia. Projeto das religiosas, o ônibus adaptado levará informações de fé ao povo baiano.

O intolerante deixa de saber que o candomblé tem um Deus supremo, Olorum, e divindades intermediárias que o ligam aos humanos, os orixás. Abre mão de aprender que a religião tem um texto base, o Código de Ifá, mas é transmitida oralmente aos iniciados. “De geração para geração, o aprendizado se fixa pela fala. É a tradição”, explica Mãe Stella. No candomblé não há catequese. As divindades se manifestam nos corpos, espécies de templos. A hierarquia é marcante, tanto na organização dos terreiros quanto na reverência a idosos e ancestrais.

O intolerante deixa de saber que cultos de origem africana, como qualquer religião, embutem valores de equilíbrio espiritual e harmonia entre os povos. Perdeu a visita ao Brasil, em fins de julho, do rei da cidade nigeriana de Oyo, a terra de Xangô, orixá da justiça. Oba Adeyemi III visitou terreiros de Salvador para estreitar os laços entre Nigéria e Brasil, par de nações que concentra as maiores populações de negros do planeta. Convertido ao islã, outra fé cercada de incompreensão, deixou simbólica mensagem de resistência aos religiosos baianos: “Assim como ninguém para a chuva, a chuva não para o caminho de ninguém”.

É bom saber.



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