Nas ruas muito mais negros, mais índios, mais argentinos, mais gringos, mais pardos. Pela primeira vez telão na praça. Pela primeira vez show de graça. Pela primeira vez Gal Costa em Paraty. Pela primeira vez Gal Costa cantando em Paraty, que jamais será a mesma depois da negra índia fa-tal e sua banda, inteiramente encapetados, diva e caras, o público sem ar. Pela primeira vez o que acontece no escurinho das tendas transmitido para a galera ao sol, hipnotizada em frente aos telões com as conversas e leituras, ao vivo, como ficava-se no passado assistindo aos jogos do Brasil quando eram ainda jogos. Pela primeira vez foi mais baixa a altura do palco na tenda dos autores, isso aqueceu a interação palco–plateia, aconchegou. Os palcos altos funcionam melhor para o rock ‘n’ roll, eu acho. Escritores e poetas são seres estranhos mesmo comparados aos roqueiros, e o palco mais baixo faz deles gente como a gente, pelo menos ali, por hora e pouquinho.
Qualquer desmistificação da linguagem científica é sempre um grande ganho, uma vez que as publicações científicas tornam-se obsoletas da noite para o dia com as novas descobertas diárias fazendo dos livros novos dinossauros no decorrer de um mês. Assistir à fala de Marcelo Gleiser, à sombra das árvores da praça, reconheço o privilégio. Deslocar-se de um lugar a outro do Centro Histórico sem perder, pelos telões, o tempo das tiradas da Fernanda Torres, é direito público conquistado. Sugiro não, reivindico para as próximas edições a Tenda Nanda, onde ela fique lá entrevistando, sendo entrevistada, apresentando os Budas Ditosos à noite, tudo pelos telões. Se a gente parar para escutá-la, começa a sentir-se portador de estranha anomalia, e não se consegue fazer absolutamente mais nada. Acho prático que ela esteja nos telões para que se possa almoçar, ir à livraria, comprar redes, sem perdê-la.
Pela primeira vez Dona Maricota oferece saladas e hambúrgueres tradicionais muito bem feitos, hambúrguer vegetariano de quinoa e cogumelos no pão sarraceno, e sorrisos. Pela primeira vez, na livraria das Marés, uma sessão de poesia não feita apenas de nomes relacionados às Flips.
Pensam as pessoas que a Flip é uma festa que reúne um bando de malucos do meio literário que vão lá para bater papo e beber cachaça. É isso mesmo. É lindo de ver e, mesmo não tendo tantos motivos assim, basta abrirmos os jornais e as janelas, morre-se de rir com eles, que é, convenhamos, de que o mundo mais precisa. Como sempre, os celulares não funcionaram direito, a internet é precária, e isso é sempre um dos pontos altos da festa, o tempo caiçara. Os encontros marcados com meses de antecedência e que dependem de “te ligo quando chegar em Paraty” simplesmente não acontecem. Em compensação, aqueles que se dão ao acaso, em geral com alguém ajudando alguém a não cair de cara na inclemência das ruas de pedra, já produziram encontros, ensaios, romances e filhotes. Os dias estavam lindos, os cachorros continuaram deitados nos lugares onde passam o ano inteiro, não importando se é a porta de um centro cultural ou de um bar. Ou seja, para você que já escalou uma rua inteira, pedra por pedra, qual o problema de precisar pular cuidadosamente sobre um vira-lata entediado bem na frente do degrau de entrada, caboclo?
Na tradicional mesa de encerramento, depois das “leituras de cabeceira” dos autores participantes, o microfone foi entregue ao pajé ianomami Davi Kopenawa, para que falasse livremente, se é que se pode usar “livremente” para a fala de um homem ameaçado de morte. Que diz, microfone na mão, que não quer acabar como seu amigo Chico Mendes. É um pajé ianomami, não é suposto que baixe a guarda e se emocione na frente de brancos. Emociona-se. É um pajé ianomami, não é suposto que tenha um microfone aberto para falar “livremente” ao mundo. Entrega o microfone. Respira, respiramos todos, volta-se para sair. Cruza o olhar com os olhos de piscina sem fundo de Liz Calder. A coragem volta. Paulo Werneck alcança-lhe o microfone, estamos em Paraty, somos nós os forasteiros, o microfone é seu. “Sem o índio o mundo não vai funcionar.” A colunista debulhada em lágrimas. Se foi a Flip das Flips não sabe, não liga para o mundo dos rankings, mas foi a seu ver a Flyp das Flips.
Pela primeira vez sem Ivan Junqueira, sem João Ubaldo, sem Suassuna. Pela primeira vez sem Tintim.
Assim, que no longínquo ano de 2014, no Brasil, em Paraty, nas mesas dos restaurantes à noite, na 12ª Flip, falava-se sobre a guerra. Aqueles eram tempos de guerra.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/a-flyp-das-flips-13548870#ixzz3AUubyaiC
Nenhum comentário:
Postar um comentário