sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Te Contei, não ? - O baú de Jorge Amado


Reforma na casa onde vivia, na Bahia, descobre e recupera centenas de obras de arte, correspondências e objetos que recontam a vida de um dos escritores brasileiros mais conhecidos no mundo


Ana Weiss (ana.weiss@istoe.com.br)


Jorge Amado era um acumulador. Depois da morte, em 2008, de Zélia Gattai, escritora e viúva do autor, o acervo, que só de telas somava mais de 600 peças, virou um problema. Obras de arte como quadros de Djanira, Segall, Carybé, Pancetti, Diego Rivera e Pablo Picasso não poderiam permanecer fechados na casa baiana em que o autor comprou com a mulher nos anos 1960, com o dinheiro ganho com os direitos sobre o filme “Gabriela”. Depois de uma década fechada, marcada por sinais de abandono, a casa do Rio Vermelho teve as portas abertas para uma reforma que se aproxima do fim. Nesse processo, além de arte, objetos e documentos foram encontrados, outros recuperados e quase todos catalogados. Tudo isso – e mais as obras de arte que os herdeiros venderam, leiloaram ou doaram durante os últimos anos – poderá ser conhecido do público a partir de setembro, quando o endereço se tornará um centro cultural público de documentação e memória do escritor que apresentou a Bahia para o mundo.


Muitas das peças serão reproduzidas nos lugares que ocuparam originalmente por projeções. A tela “Gabriela”, homenagem de Di Cavalcanti à personagem eternizada no cinema pela atriz Sônia Braga, passará a ser projetada em escala natural na parede do quarto do casal, exatamente no lugar que ocupava durante sua vida – ao lado de uma cerâmica assinada por Pablo Picasso e uma tela de Djanira. “As obras que não ficaram na casa foram fotografadas e reproduzidas da forma mais fiel possível”, diz Gringo Cardia, arquiteto responsável pela reforma e pela curadoria do acervo. Apesar da especialização em cenografia, Cardia fez mais do que replicar o ambiente doméstico original. As cartas encontradas, trocadas com os poetas Carlos Drummond de Andrade e Pablo Neruda, por exemplo, e outras já conhecidas serão guardadas em uma sala dedicada só à vasta e riquíssima correspondência do autor. Fotografias e registros de viagens, como a expedição pelo País com o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, ficarão disponíveis em um setor dedicado somente aos amigos, que dizem se tratar de uma das maiores coleções deixadas pelo autor.

TESOUROS
Ao lado da azulejaria pintada à mão por Carybé, referências aos instrumentos
dos orixás Oxum e Oxossi, e obras de Di Cavalcanti, Djanira e Picasso

voltam às paredes às quais pertenceram, por meio de projeções

O criador de “Dona Flor e Seus Dois Maridos” pulava da estante de grandes personalidades para seus corações. Foram seus leitores quase todos os grandes pensadores da esquerda dos países em que foi traduzido a partir da metade do século XX. E não é pouco. Nada escrito em terras brasileiras, sobre o Brasil, ganhou tantas traduções. Vertido em 49 idiomas e lido em 55 nações, o País não teve nem de perto, até hoje, outro ficcionista tão adaptado – para cinema, televisão e teatro. Hoje sua ficção só perde em vendas para o mago Paulo Coelho. São leitores vorazes de sua obra autores distantes, como José Sarney e Salman Rushdie.


Exatamente por isso é que, investigando a vida do etnógrafo francês Pierre Verger, a pesquisadora Josélia Aguiar descobriu quão inescapável é a figura de Jorge Amado de tudo que se conhece hoje da cultura baiana. “Verger teve vontade de conhecer a Bahia quando leu Jorge Amado em Paris antes da Segunda Guerra Mundial; depois, estabelecido na Bahia a partir dos anos 40-50, fez parte do grupo de amigos que frequentariam a Casa do Rio Vermelho”, conta a também historiadora, que finaliza uma biografia sobre o autor baiano, prevista para sair no segundo semestre pela editora Três Estrelas.

A biógrafa adianta que uma das missões de seu livro é desfazer teses sem fundamento sobre a repercussão da obra do escritor, como o fato de ele ser amado pelo público e desconsiderado pela crítica. “Das críticas ruins, a mais citada e a que sobrevive até hoje é a de Álvaro Lins, o senhor do rodapé literário brasileiro no período. Na mesma época, no entanto, temos um jovem crítico chamado Antonio Candido que defende Jorge Amado. Esse é um exemplo, entre vários”, diz a pesquisadora. Josélia lembra que existem textos críticos sobre o ficcionista em todos os países em que foi publicado, um outro feito tratando-se de literatura brasileira. “Os primeiras foram publicados na Rússia, nos anos 1950. Há trabalhos sobre ele em todo o mundo, em todos os lugares onde foi editado. Ou seja, não era apenas um best-seller brasileiro, como muitas vezes fazem parecer os críticos mais duros; sua literatura é realmente levada a sério.”


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