quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Te Contei, não ? - O Quinze - Um romance que não envelheceu

 
                                                                        
 
 
Adolfo Casais Monteiro
 
 

"Todos os grandes livros têm um mistério inviolável. Ninguém saberá jamais, mesmo quem o escreveu, por que coube em sorte a uma professorinha de vinte anos dar ao romance brasileiro uma de suas obras definitivas. Podemos encontrar a explicação das condições que lhe deram o assunto, as personagens, etc.; podemos evidentemente compreender como ela terá sido conduzida a fazer da seca o tema do seu livro. Mas o fato da obra-prima fica por entender, a não ser que saibamos ter a humildade de pensar que, quanto a isso, só há realmente a entender uma coisa: que Rachel de Queiroz os fios da necessidade e da liberdade, do motivo e da capacidade para lhe dar corpo como arte, da consciência social e da emotividade individual, convergiram e se difundiram na hora própria.
Haverá que ache que será satisfazer-se com pouco. Mas não será melhor do que dizer, para afinal não dizer nada, que ela tomou consciência do problema social? A consciência dos problemas jamais deu talento a romancista nenhum; o talento está primeiro, e só por ele os problemas se tornam visíveis - se o autor é capaz de não falar em problemas, mas em existências, em casos humanos, nas coisas de todos os dias. Nós julgamos ver lá o problema; mas é um erro: o que o romancista nos oferece é o contraste, o choque das vidas, os encontros e desencontros; e o patético, como o dos retirantes de O Quinze, vem de cada um deles ser uma existência tornada presente, posta diante de nós sem ar de lição, mas como imagem da vida.
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Com efeito, e por isso mesmo falei em arquitetura, O Quinze é uma ação magistralmente conduzida em dois planos, aos quais liga a figura central de Conceição, a
qual pertence "realmente" aos dois. É através da sua experiência, através do que ela sente, que os ricos e os pobres confluem, é Conceição, pela inevitável fusão da personagem com a autora, que, integrando numa humanidade única os veios da ação romanesca, a ambos torna reais - pois com efeito a receptividade da personagem é a mesma da romancista: é ela que dá autenticidade a cada um dos mundos, e, tornando-os próximos, evitando o perigo do romance social, com a sabida divisão entre "bons pobres" e "maus ricos", nos faz sentir, num plano muito superior, a igual inevitabilidade do drama sob ambas as suas faces.
Assim é que, por não um "romance social", O Quinze é o mais notável, senão o único romance social brasileiro - porque as classes não existem em fórmulas sublinhadas pelo romancista, mas no irremediável das coisas, na espontaneidade dos próprios fatos, quer eles sejam exteriores ou interiores, quer se passem à escala dos grupos ou à de cada indivíduo. Por isso eu sou levado a pensar que a mestria de Rachel de Queiroz se deve à sua "inocência": a de ter posto no papel a sua emoção sem a condicionar uma tese, ou, sequer, à preocupação de procurar inocentes e culpados.
Mas esta virtude só vem depois daquela parte que constitui sempre o segredo inviolável do romancista: o dom. E este exprime-se na perfeita sobriedade, na total ausência de "literatura", no desenho incisivo, firme e sem hesitação da sua prosa; o que ela só podei ter aprendido consigo próprio, pois que é... ela própria. Mas o autor pode corromper os seus dons: o milagre está em que, suponho, Rache de Queiroz não quis fazer literatura; e por isso o seu primeiro romance resultou a grande obra literária que ela podia fazer, posta ante a experiência que vivera fundamente no mais íntimo do seu coração.
Não quero dizer - pois não sei, e portanto não o poderia fazer - que Rachel de Queiroz se tenha posto a si própria em O Quinze; ao falar em experiência fundamental vivida, penso, não em fatos que ela tenha participado, mas do receber a realidade dentro de si, e revivê-la, o que pode acontecer sem o autor ter tido qualquer participação naquilo que narra. A forma da sua experiência é bem diferente da deste último tipo, que será a do memorialista. O romancista tanto memoriza como inventa fatos: o que ele não pode inventar é o sentimento da vida como ela é, e para isso é preciso que tenha estado em algum lugar da
terra e se tenha impregnado duma determinada conjuntura emocional, duma atmosfera, dum ambiente, dum céu e duma terra, e de presenças humanas.
O Quinze é uma obra profundamente amarga. Bastaria a odisséia da família de Chico Bento para marcar o romance com as cores negras da desgraça. Mas elas não de limitam ao calvário dos retirantes, nem às páginas extraordinárias em que a terra e os homens parecem confundir-se na mesma visão de esterilidade e irremediável miséria; não é menos autêntico o drama da comunicação impossível entre Conceição e Vicente, a muralha que se vai erguendo entre ambos à medida que ela vai entendendo o que sente, vai dando forma de compreensão à infinita miséria que a rodeia, e que é um drama sem situações dramáticas, sem que, sequer, Vicente seja o "proprietário mau" (pelo contrário), por via do que o mesmo irremediável acaba afinal por definir o plano dos sentimentos e o plano dos "acontecimentos", mostrando a vida e a natureza dominadas pela mesma inflexível lei.
O Quinze chega até nós, com os seus vinte oito anos de idade, tão jovem como ao surgir nas livrarias, em 1930. e não envelheceu porque a matéria da qual é feito está isenta do peso da idade: a simplicidade (a mais difícil das virtudes literárias!), a sobriedade ca construção, a nitidez das formas, a emoção sem grandiloquência

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