Revista Garrafa 24
ISSN 1809-2586
maio-agosto de 2011
A seca e a narrativa do trágico em O Quinze de Rachel de Queiroz
Andrea Teresa Martins Lobato1
Eduardo Oliveira Pereira2
“(...) o domínio é sempre da outra mão, daquela que não escreve, capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lápis e de o afastar (...)”
Maurice Blanchot
1 INTRODUÇÃO
A princípio, parte-se da constatação de que O Quinze, de Rachel de Queiroz, é uma obra que se enquadra nas balizas referentes ao gênero “romance”.
Contudo, o “romance”, especificamente considerado, consiste, com subsídio no entendimento de Marthe Robert (2007, p. 11 - 20), em um gênero errante, arrivista a teorizações encasteladoras e arredio a delineamentos estruturais rígidos, ou seja, na História da Literatura tal gênero passou e passa por profundas e constantes transformações, mutações em seus elementos fundantes, tais como em relação ao autor, personagens, tempo, espaço, etc.
Em face disso, preferiu-se adotar, como objeto do presente artigo científico o estudo acerca do elemento “narrativa” atinente à referida obra, na medida em que tão-somente o debruçamento sobre a narrativa da obra literária em apreço – elemento mais rico em significação e, por conseguinte, mais carregado em representações estéticas do texto – possibilitará o enlace entre os demais elementos estruturais acima mencionados, os quais em torno da própria narrativa se acredita gravitarem.
Levando em conta ainda que Walter Benjamin (1994) adverte que a narrativa assume a responsabilidade de figurar como o grande repositório das experiências humanas, comunidade entre vida e palavra, conclui-se pela condição de que a narrativa está, sim, autorizada a permanecer - no corpus do texto literário em evidência - como objeto principal de estudo, como símbolo poético central e, por conseguinte, passível de toda atenção e tentativa de compreensão, haja vista que, pela ótica da narrativa, tem-se a constatação de que o ser humano é um ser de linguagem.
Pois bem, objetivamente, perscrutando-se a narrativa de O Quinze se pode extrair o fenômeno da “Seca” que, longe de qualquer contradição, é o elemento que manipula a tessitura do texto, a trama narrativa, haja vista que, parafraseando Jean Bellemin-Nöel (1978, p. 9), é a própria Seca a Penélope que tece e destece o tecido narrativo do romance ao sabor de sua angustiante onipresença, seu caráter cíclico e perene na elaboração espaçotemporal da obra em estudo, fazendo-se perceber não de forma personificada, tampouco coerente com os tradicionais pactos firmados em Literatura, ou seja, a Seca não enuncia diretamente a sua presença através da linguagem verbal, haja vista não possuir falas expressas no texto, entretanto, não deixa de ser Significante, pois sub-repticiamente impõe seu ritmo à narrativa, à movimentação das personagens e também aos temas suscitados e discutidos ao longo do texto.
Portanto, sustentar a figura da Seca enquanto condutora do fio narrativo, ou melhor, como narradora da obra em exame, significa entendê-la pelo viés metafórico, redimensionando-a como elemento estético que não se restringe à limitada perspectiva de espaço descrito no texto, pois dessa forma se abre a senda necessária para suplantar o estereótipo, desmistificar o engodo de que O Quinze consiste em uma obra estritamente “regionalista”, à maneira de todas as outras obras que têm a Seca como mote.
Nessa esteira, cumpre o mencionado elogio da Seca o afã de desestabilizar os institutos tradicionais canonizados ao longo da História e da teoria literária, notadamente no que concerne ao estatuto do narrador e do pacto existente entre este e o leitor, no qual este último submerge no universo do texto literário através do regaço da voz e dos enunciados verbais proferidos pelo narrador, seja ele em primeira ou em terceira pessoa.
Entretanto, a narradora Seca não fala, mas por um “discurso mudo”, inserido nas sombras e no silêncio da linguagem, conduz a trama romanesca com mãos hábeis e onipresentes, capazes inclusive de trazer à lume temáticas que respondem à esfera do trágico.
Por fim, empreender um estudo dessa ordem corresponde à reafirmação diuturna – tal como um compromisso, uma profissão de fé – que se deve proceder quando se adota a Literatura como objeto de estudo, qual seja a de assumir que se está a trabalhar com um objeto movediço, avesso a normatividades, que se posta entre o dito e o não-dito, enfim, que se desenvolve nas entrelinhas e, nem por isso, pode perder o status de “cientificamente relevante” por não apresentar resultados matematicamente concretos e bem delimitados.
2 A ÍNTIMA RELAÇÃO ENTRE SECA E NARRATIVA EM O QUINZE
A partir de uma leitura inicial e desavisada do romance O Quinze, obra inaugural da vida literária de Rachel de Queiroz, pode-se facilmente afirmar que se está diante de mais um dos intitulados “romances regionalistas” que permearam a Literatura Brasileira após a Semana de 22.
Na esteira dessa interpretação, assaz superficial, salta aos olhos a Seca enquanto fenômeno geográfico-sociológico, caracterizador do espaço no qual se elabora a obra literária em estudo.
Sucede que - com o caminhar da narrativa e do texto - a tal superficialidade se impõe uma pujante desfiguração para, ato contínuo, fazer surgir a Seca como elemento que está sempre ali, a lançar seu olhar ininterrupto sobre a tessitura narrativa, mostrando sua inteligibilidade pelo viés
das mais variadas manifestações dos personagens e de suas interrelações (condutas, movimentações e vozes).
Sob esse espectro de vigilância manifestado pela Seca em relação ao texto e sua trama, chega-se até a sentir o peso e o calor de sua presença, por vezes visível (enquanto componente ativo do ponto de vista sócio-cultural) e muitas outras vezes de maneira invisível (dissimulando maliciosamente suas pretensões), dentro e fora do cenário narrativo, mas sempre presente, ou melhor, onipresente.
A Seca encerra em si mesma a condição de contexto, de ambiente descrito, de pano de fundo da obra, mas também de narrador, de guia dos personagens enquanto rebanho, de artífice da própria linguagem do texto literário.
Permita-se que a obra, em suas primeiras linhas, fale por si, litteris:
Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, dona Inácia concluiu: ‘Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém. ’ Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a: - E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena... Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes: - Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril. (...) A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto. - A benção, Mãe Nácia! – E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor. Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama – a velha cama de casal da fazenda – e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
- Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!... (...). (QUEIROZ, 2008, p. 11 – 12)
Da leitura do trecho acima se percebe, sem sequer lhe mencionar o nome expressamente, que a Seca se apresenta, e até mesmo se impõe em relação à vontade de São José, Santo da Igreja Católica e, conforme crença dos nordestinos, responsável por levar a chuva ao sertão castigado pelo sol implacável e pela estiagem.
É também a Seca responsável por manter Mãe Nácia a rezar e Conceição a desacreditar, apoderando-se, concomitantemente, dos fios volitivos de personagens que, no âmbito do romance em questão, representam esteticamente o fator religioso e seu contraponto racional, respectivamente.
Em face do exposto, e conforme anunciado em capítulo introdutório, fixa-se o argumento de que a Seca encarna a grande metáfora do romance O Quinze, o “rio semântico” que está a murmurar por detrás das palavras materializadas no texto literário.
Objetivamente, para se pensar a Seca enquanto narradora do discurso romanesco e defendê-la como metáfora central do romance, faz-se imprescindível a adoção de uma postura que aceite, cumulativamente, a condição plurissignificativa da Literatura, que assuma a linguagem literária como fenômeno que vai para além do verbal e se insira nas camadas mais profundas do não-dito e até mesmo da mudez, trazendo à tona um silêncio rico em significados, e que, por fim, transcenda os elementos cujos pés estão tradicionalmente fincados em convenções imutáveis e estanques, como aquelas que dizem não à possibilidade de o espaço da obra poder narrá-la.
Despindo-se de preconceitos teóricos, bem como de soluções conceituais oferecidas a priori, pode-se prosseguir com a argumentação até aqui empreendida, pois tão-somente assim se confere primazia à obra literária em si, colocando-se em segundo plano qualquer teoria que venha a sufocar e reduzir as possibilidades interpretativas emanadas do texto literário.
Assim, de acordo com o legado de Freud não há resistências e engessamentos no que concerne ao trato com a linguagem literária. Nesse sentido, Kristeva (2003, p. 267 - 275) que, ao versar sobre interrelação entre Linguagem e Psicanálise afirma
(...) o momento capital do estudo da relação entre o sujeito e a sua linguagem foi sem dúvida marcado, ainda antes do princípio do século XX, pela obra magistral de Sigmund Freud (1856 – 1939), que abriu uma nova perspectiva na representação do funcionamento lingüístico e que subverteu as concepções cartesianas nas quais se baseava a ciência linguística moderna. (...) quando Freud fala de linguagem, não entende apenas o sistema discursivo no qual o sujeito se faz e se desfaz, o próprio corpo fala (...). Compreendemos agora que o alcance da psicanálise ultrapassa largamente a zona do discurso perturbado de um sujeito. Podemos dizer que a intervenção psicanalítica no campo da linguagem tem como consequência maior impedir o esmagamento do significado pelo significante, que faz da linguagem uma superfície compacta logicamente segmentável; a psicanálise permite pelo contrário dividir linguagem em camadas, separar significante de significado, obrigar-nos a pensar cada significado em função do significante que o produz, e vice-versa (...).
Já no que diz respeito especificamente à Literatura e à Linguagem, Kristeva (2003, p. 289 – 290) vocifera:
A literatura é sem dúvida o domínio privilegiado em que a linguagem se exerce, se precisa e se modifica. (...) têm uma função que, longe de ser puramente ornamental, veicula um novo significado que se acrescenta ao significado explícito, ‘Corrente subjacente de significação’, diz Poe (...).
Com o amparo teórico fornecido pela Psicanálise, notadamente no que concerne valor dado ao silêncio enquanto significante (possibilitado pela estratificação da linguagem em camadas pluridimensionais), assim como a evidência de que a Literatura permite a proliferação e o trânsito de múltiplos significados, enfim, constatações que retiram da linguagem verbal o lugar privilegiado que sempre ostentou ao longo da história das ciências, abre-se o caminho propício no afã de explorar a tese fundamental do presente estudo, doravante esquadrinhada.
Consoante anunciado alhures, reitera-se, o fenômeno da Seca manipula o fio narrativo do romance O Quinze, faz com que o cânone evidenciado pela relação narrador/narrativa seja quebrado, solenemente subvertido, haja vista que a Seca se faz perceber e influenciar tão-somente por intermédio de um “discurso mudo”, concepção que transcende a ideia mais usual e imediata da linguagem, ou seja, aquela que fala ao leitor por intermédio do verbo, dos mecanismos e instrumentos da língua, prima donna da Linguística.
De passagem, não se pode olvidar que se trata de Literatura, portanto, falar sem verbalizar, comunicar pelo silêncio é, sim, possível; é justamente o que se defende aqui.
Voltando ao texto literário em exame, não é forçoso identificar que a narradora Seca, repisa-se, sem recorrer ao verbo, determina a movimentação de um dos personagens centrais do romance, nomeadamente o vaqueiro Chico Bento que, pela estiagem, se vê impelido a assumir a condição de retirante em nome da própria sobrevivência e de sua família. Mais uma vez, o calor e o peso da presença invisível da Seca se fazem sentir, sussurram nas entrelinhas do texto:
- Por falar em deixar morrer... O compadre já soube que a dona Maroca das Aroeiras deu ordem pra, senão chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral? E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra ninguém.
(...)
- Do que tenho pena é do vaqueiro dela... Pobre do Chico Bento, ter de ganhar o mundo num tempo destes, com tanta família!...
- Ele já está fazendo a trouxa. Diz que vai pro Ceará e de lá embora pro Norte.... (QUEIROZ, 2008, p. 15 – 16)
O discurso da Seca se insinua no tropos do discurso primeiro da obra (WHITE, 2001), isso porque todo discurso, seja de tipo realista ou de tipo imaginativo, apresenta necessariamente esse elemento, que consiste na sombra da qual se tenta fugir, no silêncio que insiste em se fazer inteligível, eloquente, e que constitui a noção de mudança, de guinada de direção no sentido do texto. São os tropos que engendram as figuras de linguagem ou de pensamento mediante a variação entre as possibilidades de sentido. Seca desejada metaforicamente.
Em contrapartida, é provável que surjam contestações acerca dessa tese, sobretudo forjadas com fulcro no que se costuma denominar “intenção do autor”. Melhor explicando, há quem possa sustentar que a intenção de Rachel de Queiroz foi apenas retratar, em caráter estritamente realístico, a grande seca de 1915, e talvez até seja verdade, entretanto, nem a própria Rachel está autorizada a dizer que sim ou que não.
Endossando a assertiva acima, tem-se a argumentação fundamentada na dessacralização da figura do “Autor” como o arquiteto supremo do texto literário, senhor exclusivo de todas as sendas interpretativas possivelmente conferidas à obra de sua lavra, sujeito consciente, de cujo domínio nada escapa em termos de “intenção do texto”. Ou seja, o “Autor” enquanto autarquia de onde exsurgem todas as vozes audíveis e expressas no romance restou desmistificado ao longo do percurso da Teoria Literária.
Na mesma toada, traz-se à baila a inteligência de Barthes (2004a, p. 57 - 58) que, ao decretar a morte do autor, versa:
(...) a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que se vem perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve.
Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado [grifos do autor], para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa(...).
Nesse viés, vejamos a afirmação de Blanchot (1987, p. 15 - 17):
O escritor parece senhor de sua caneta, pode tornar-se capaz de um grande domínio sobre as palavras, sobre o que deseja fazê-las exprimir. Mas esse domínio consegue apenas colocá-lo e mantê-lo em contato com a profunda passividade em que a palavra, não sendo mais do que sua aparência e a sombra de uma palavra, nunca pode ser dominada nem mesmo apreendida, mantém-se inapreensível, o momento indeciso da fascinação. (...) O que se
escreve entrega aquele (sic) que deve escrever a uma afirmação sobre a qual ele carece de autoridade, que é ela própria sem consistência, que nada afirma, que não é o repouso, a dignidade do silêncio, pois ela é o que ainda fala
quando tudo foi dito, o que não precede a palavra, porquanto, na verdade, impede-a de ser palavra iniciadora, tal como lhe
retira o direito e o poder de interromper-se [grifo nosso].
Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu (...). Quando escrever é entregar-se ao interminável, o escritor que aceita sustentar-lhe a essência perde o poder de dizer ‘Eu’. Perde então
o poder de fazer dizer ‘Eu’ a outros que não ele (...).
De outro modo e sob outra perspectiva teórica (a dizer, a psicanalítica), contudo, atendendo ao mesmo escopo defendido no cerne do presente estudo, é oportuno transcrever abaixo a dicção de Jean Bellemin-Nöel (1978, p. 12 – 13):
(...) As palavras de todos os dias reunidas de uma certa
maneira adquirem o poder de sugerir o imprevisível, o desconhecido; e os escritores são que, escrevendo, falam, sem o saberem, de coisas que literalmente ‘eles não sabem’.
O poema sabe mais que o poeta [grifo nosso]. Se o sentido excede o texto, existe falta de consciência em alguma parte. O fato literário só vive de receptar em si uma parte de inconsciência, ou de inconsciente. A tarefa que desde sempre a crítica literária se atribuiu consiste em revelar esta falta ou este excesso. Em suma, já que a literatura carrega nos seus flancos o não-consciente e já que a psicanálise traz uma teoria daquilo que escapa ao consciente, somos tentados a aproximá-las até confundi-las.
Nessa perspectiva, a Seca desempenha seu devido e merecido protagonismo ao versar e ao cantar melancolicamente o trágico desenrolar da narrativa romanesca em O Quinze, para apenas deitar sensibilidade sobre os fatos literários contidos na obra e, por conseguinte, deixar que a mesma fale por si.
Mais uma vez o texto literário:
Novamente a cavalo no pedrês, Vicente marchava através da estrada vermelha e pedregosa, orlada pela galharia negra da caatinga morta. Os cascos do animal pareciam tirar fogo nos seixos do caminho. Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no chão que estalava como papel queimado.
O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada. Vicente sentia por toda parte uma impressão ressequida de calor e aspereza (...). (QUEIROZ, 2008, p. 17)
Com isso, através do fenômeno da Seca – elemento constatado tanto de forma teórica quanto empírica e elevado à condição de metáfora3 -, procede-se o deslocamento barthesiano de trapacear com a língua, ou seja, esquivar a linguagem do texto em relação ao poder denotativo contido em descrições pretensamente realísticas, sustentando assim o ideal da Literatura como plurissignificação.
Segundo Barthes (2002, p. 16 – 17):
(...) Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem superhomens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. [grifos do autor] (...) é no interior da língua que a língua merece ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro.
Por fim, e como resultado de todo esse empreendimento teórico, porém com as bases estabelecidas na própria voz do texto literário, tem-se a constatação de que o papel desempenhado pela figura da Seca no seio da obra em estudo não se restringe tão-somente a servir como pano de fundo do que estereotipadamente (e engessadamente) se entende como romance “regionalista”, mas vai para além dessa perspectiva reducionista, encarnando a responsabilidade de ser o elemento poético central da obra, à maneira de um narrador à paisana.
3 A NARRATIVA DO TRÁGICO
Além de articular a ideia de Seca como artífice da narrativa atinente à obra O Quinze, pretende-se ainda explorar outro aspecto marcantemente presente no mencionado romance de Rachel de Queiroz, qual seja a coloração fundamentalmente trágica que impregna o elemento Seca, tendo-se sempre em mente a inafastabilidade de sua pesada e sufocante presença na vida dos personagens, notadamente os Sertanejos (entendidos em sentido amplo), que faz com que a mesma se imponha, silenciosamente, como o destino inexorável destes.
Especificamente, investida no poder de reger os vetores de movimentação do texto e imbricando-se nas malhas de sua tessitura, a Seca provoca o aparecimento de uma peculiar e trágica reflexão - desta vez no cerne do próprio enunciado narrativo verbalizado – acerca da condição humana dos personagens sertanejos.
Por tratar-se de um fenômeno cíclico, portanto, perene e, além disso, onipresente na dura vida do sertanejo, a Seca se posta como uma prefiguração do destino desses personagens, condicionando-os a partir de sua perspectiva.
Entretanto, antes que se proceda pela análise mais detida dos elementos trágicos contidos no seio do romance O Quinze, notadamente pela ótica da Seca e dos personagens, faz-se necessária a colocação de algumas questões de natureza metodológica e epistemológica.
Resumidamente, por mais que se queira aqui empreender uma argumentação que aproxime o romance em tela do gênero “Tragédia Grega”, deve esclarecer que tal intenção não consiste no forçoso e forçado encaixe entre uma e outra realidade, pois é impossível encontrar em obras modernas o reflexo puro das bases e institutos conceituais vigentes na sociedade grega, mas tão-somente ecos longínquos, principalmente no que diz respeito à
concepção de homem, de consciência, de “Eu”, de logos, e do enlace entre estes e a Literatura.
Nesse sentido, abre-se espaço para a constatação de Gazolla (2001, p. 11):
(...) nossos dias não conseguem apreender o que foi a tragédia grega em toda sua amplitude, não só porque a estrutura cultural que temos é outra, mas também porque ela está bastante distanciada no tempo – ao menos uma parte dela, já que outra parte persiste na memória moderna.
Portanto, para se evitar anacronismos teóricos, urge que se faça a presente ressalva, entretanto, nada impede que elementos da tragédia grega, principalmente no que diz respeito ao encadeamento e desdobramentos do texto trágico sejam estudados à luz do romance de Rachel de Queiroz, principalmente porque a tragédia ainda nos fala bem de perto e com translúcida
inteligibilidade no que concerne a temas que são universais, temas que digam respeito à esfera do humano.
Pois bem, retornando ao escopo deste estudo, tem-se que a articulação entre personagem sertanejo, tragédia, Seca e narrativa ocorre com base na seguinte lógica, qual seja: ao personagem trágico-sertanejo é dado - de forma prévia e sem explicações de ordem econômica, social, geográfica ou cultural – o destino indiscutível e permanente de se viver ao sabor e ao ritmo da Seca (metáfora central), sendo que em desfavor de tal conjuntura não se apela, não se opõem questionamentos, daí exsurge o primeiro aspecto temperado de tragicidade.
Sucede que desse contexto cruel e permeado de extremas adversidades o personagem sertanejo (ou melhor, trágico) tenta infrutiferamente fugir, caindo assim na ciranda de peripécias através das quais quanto mais tenta se desviar e driblar o caminho previamente traçado pelo destino, mais encontra o seu contrário, ou seja, se depara de frente com esse caminho do qual se tenta fugir, nas encruzilhadas e esquinas da vida, forçando o personagem trágico a incorrer, inequivocamente, em mais dois elementos da tragédia, a dizer, a hýbris (excesso) e a hamartía (erro).
As ações desmedidas materializadas pelo herói/personagem trágico redundam no seu próprio erro, condenando-o, por conseguinte, à culpa, sendo esta posteriormente acompanhada de um sacrifício que a faz expiar, engendrando, outrossim, a purgação de sentimentos que deságuam na catarse daqueles que acompanham todo esse processo, nomeadamente os leitores/expectadores. Eis a passagem entre o apolíneo - composto pela estabilidade e harmonia - e o dionisíaco, configurado pela errância e embriaguez (NIETZSCHE, 1999).
Justamente essa lógica pode ser percebida no bojo do romance O Quinze, mais precisamente na cena a seguir transcrita:
(...) De tarde, quando caminhavam com muita fome, tinham passado por uma roça abandonada, com um pau de maniva aqui, outro além, ainda enterrados no chão.
Josias, que vinha atrás, distanciou-se. Viu o pai descuidado dele, pensando em encontrar um rancho; a mãe, com o menino no quadril, marchava lá mais na frente.
Ele então foi ficando para trás, entrou na roça, escavacou com um pauzinho o chão, numa cova, onde um tronco de manipeba apontava; dificultosamente, ferindo-se, conseguiu topar com uma raiz, cortada ao meio pela enxada.
Batendo de encontro a uma pedra, trabalhosamente, arrancou-lhe mais ou menos a casca; e enterrou os dentes na polpa amarela, fibrosa, que já ia virando pau num dos extremos.
Avidamente roeu todo o pedaço amargo e seco, até os dentes rangeram na fibra dura.
Aí atirou no chão a ponta raiz, limpou a boca na barra da manga e passou ligeiramente pela altura da cerca.
(...)
Enquanto Cordulina ia raspando para um beiju um achado miserável, Josias, ao lado dela, calado, estirado no chão, fazia de vez em quando uma careta. Afinal, disse à mãe que estava com dor de barriga.
- De quê?
Ele contou a história da manipeba. Cordulina levantou assustada:
- Meu filho! Pelo amor de Deus! Você comeu mandioca crua?
Assombrado, e sentindo a dor mais forte, o pequeno começou a chorar. Cordulina, aturdida, topando no madeirame do chão, andou até o terreiro limpo, procurando na terra varrida umas folhas para um chá. (...) E enquanto fazia o chá, gritava, num pranto, para o marido, que mais longe trocava algumas palavras com um passante:
- Chico! Chico! Valha-me Nossa Senhora! O Josias se envenenou!.
(QUEIROZ, 2008, p. 58 – 59)
Percebe-se que esse trágico da Seca conduz o leitor, pela ótica dos personagens representados no cerne do romance, a refletir sobre a própria condição humana, pois na mesma medida em que a Seca impõe provações
desumanas ao ser humano, esta é capaz de elogiar seus atributos como resistência, persistência, sobrevivência, firmeza, solidariedade, virtudes estas que guiam à reconquista da dignidade e do próprio status de humanidade.
Entretanto, essa transmissão de experiências e de sentimentos humanos, demasiadamente humanos, não se dá de forma direta, mas poética,
transcendendo a mera doutrinação.
Através de seu aspecto flagrantemente trágico, a Seca proporciona diretamente ao personagem (e indiretamente ao leitor) a humanização através da desumanização, metamorfose essa engendrada pela opressão extraída de situações limite propriamente trágicas (como a morte de um filho faminto, por exemplo), a partir das quais o ser humano se depara com a condição de peso/leveza de seu Ser.
Nesses termos, Kundera (2008, p. 11):
O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.
O que escolher, então? O peso ou a leveza?.
Portanto, resta comprovado que, por intermédio de sua pujança trágica, a Seca faz os personagens se movimentarem por onde se quer e onde
não se quer estar, entre a aldeia e o mundo, na alternância entre o enraizamento e a aventura, e justamente nesse ínterim, promove reflexões acerca da própria condição humana para, ao final, atestar que a máxima euclidiana que diz “(...) o sertanejo é antes de tudo um forte (...)” se confirma.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante os argumentos expostos ao longo do presente artigo, conclui-se, por silogismo simples, que a Seca é a grande representação estética propiciada pelo romance, é o símbolo poético central da obra.
Nesse contexto, assume, concentra em si, no seio da obra, as condições de belo, sublime, grotesco, estranho, e ainda causa uma profusão ou mesmo confusão de sentidos, proporciona a catarse, influencia o imaginário, por isso é ao mesmo tempo personagem, narrador, narrativa, tempo e espaço do romance.
Por fim, pelo viés da Seca enquanto condutora do fio e da tessitura narrativa do romance O Quinze se evidencia uma particularidade do funcionamento poético, notadamente no que se refere aos sentidos complementares/suplementares que se infiltram na mensagem verbal, rasgando a cortina da mera descrição realista do texto e esgarçando sua textura opaca de “sentido-primeiro”, engendrando, outrossim, a reorganização de outra cena na qual proliferam outros sentidos mais ao texto literário.
Inspirado em tais conclusões, reitera-se aqui a pujança de uma premissa que alguns estudos vêm esquecendo, a dizer, a Literatura e a Obra Literária não podem ser pensados de outra forma senão enquanto território livre e aberto à interpretação, à plurissignificação, fato este contra o qual nem a relativizada figura do “autor” pode se opor.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W. A posição do narrador no romance contemporâneo. In:
_________. Notas de Literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2003, p. 55 – 63.
BARTHES, R. Aula. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
__________. A escrita do romance. In: ________. O grau zero da escrita. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 26 – 36.
__________. A morte do autor. In: ___________. O rumor da língua. Trad.
Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004a, p. 57 – 64.
__________. O prazer do texto. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004b.
BELLEMIN-NÖEL, J. Psicanálise e literatura. Trad. Álvaro Lorencini. São
Paulo: Editora Cultrix, 1978.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BLANCHOT, M. La literatura y el derecho a la muerte. In: __________. De
Kafka a Kafka. Trad. Jorge Ferreiro Santana. México: FCE, 1991, p. 9 – 78.
____________. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987.
FARIAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário