Arnaldo Bloch
O colunista escreve aos sábados
O ilógico encontro entre a caçamba e a passarela poderia estar no teatro de Ionesco, a simbolizar que, no fazer humano, o pior tende, sempre, a acontecer
Estou amarradão num livrinho de bolso da série Penguin Plays, com uma seleção de quatro peças de Eugène Ionesco, Arthur Adamov, Fernando Arrabal e Edward Albee, que ganhei de presente por estes dias. Mas o bom mesmo é o ensaio introdutório, de Martin Esslin, ultramoderno para a época (1965). No texto, a ideia obstinada de que o grande choque provocado pelos autores de diferentes tendências que se associaram à noção de Teatro do Absurdo estava no fato de que sua lógica torta, e a poética de suas imagens exacerbadas, estavam mais próximas da realidade do que as narrativas convencionais. Por outro lado, no mundo pós-guerra, abalado por desatinos e na iminência de uma revolução de costumes, as histórias “bem construídas”, lineares, realistas, e as reflexões de gêneros tradicionais tomavam ares de contos da Carochinha.
Com o título de “Absurd drama”, o livrinho havia sido achado numa lata de lixo. Recuperado, limpo e malocado num armário, chegou às minhas mãos em estado combalido mas firme e higienizado. Lá dentro, as páginas amareladas, com manchas e anotações, luziam e ganhavam uma atualidade inesperada num 2014 que, às antevésperas do carnaval, exibe um samba de absurdos capaz de preencher a maior parte dos dias e das noites, como se não bastassem os mundos imaginários que produzimos nos sonhos.
Um caminhão que abre a caçamba metros antes de passar debaixo de uma passarela mal fixada numa via expressa é um cenário de absurdo que transcende a discussão do descaso público (que é a regra de Cabral, Pedro, a Cabral, Sérgio): o ilógico encontro entre a caçamba e a passarela poderia estar no teatro de Ionesco, a simbolizar que, no fazer humano, o pior tende, sempre, a acontecer.
Adereços do desajuste socioeconômico e da descrença no poder público, ônibus em chamas desfilam na passarela nacional. No contratempo, os rolezinhos se convertem numa espécie de instituição-coringa, uma pocket-passeata na qual cabe todo inconformismo domesticável, um vão no qual diferentes classes se revezam e ganham corpo, nos templos da in(convivência) contemporânea: os shoppings.
Enredo que abafa (e, paradoxalmente, cria uma desculpa para) a discriminação social e o racismo que os centros fechados de consumo vinham praticando, a ponto de desconfiar de babás sem uniforme. E ao mesmo tempo deixa patente o fracasso das metrópoles brasileiras no trato de seus espaços públicos e instala um enigma em torno da noção do privado.
No comando de um Brasil no qual as prisões emulam cenas de masmorras medievais, país em que o saneamento não chega a mais da metade da população e o modelo energético do futuro (e a propaganda totalitária que o acompanha) é todo calcado no petróleo, os discursos de Dilma em Davos, pintando o Brasil como Terra Prometida (na esteira da balela da “Copa das Copas” e das homenagens ao “Presidente Blatter”) soam como o absurdo dos absurdos. O que é reforçado pela oratória pobre, desinspirada e automática de nossa companheira, que, de resto, não poderia mesmo estar fazendo outra coisa senão chover no molhado do mau teatro em que se converteu o plantel de líderes mundiais. Nesta dinâmica, o OK formal de Obama à liberação da maconha em mais estados americanos dá um toque histriônico, um breque (ou um beque) no andar da bateria.
Enquanto isso, olhamos para o mundo através de sondas digitais filtradas pela euforia do conhecimento total, que é a própria utopia de nosso tempo. A incomunicabilidade iminente vista por Ionesco nos anos 1950 era um alerta, e diálogos emblemáticos como os dos casais de “A cantora careca” parecem hoje uma sátira frugal se comparados à corrente dialógica do mundo novo. Se Ionesco denunciava a falência da linguagem, transformada numa colagem de fórmulas e convenções para preencher o vazio existencial e a falta do que dizer, o que vivemos hoje é uma exacerbação deste status, por um caminho inverso: o vazio está superlotado de informações que pretendem tudo esclarecer e explicar simultaneamente por todos os caminhos possíveis. O absurdo saiu de uma dinâmica bidimensional, dualista, para um ambiente pseudoquântico, no qual todos os cenários de significados são passíveis de serem possíveis e lógicos, sem qualquer centralidade de valores, digamos, universais, aos quais se agregarem. Enquanto isso, a Ciência é vista como equívoco supersticioso e as crendices são tidas como verdades “científicas”.
Em “Esperando Godot”, de Beckett, os personagens tentam, várias vezes, sair da imobilidade. “Vamos?”, dizem, a cada bloco de diálogo. Mas não se movem. Como diz o autor da introdução do livrinho achado no lixo, este leitmotiv tão famoso foi criado para lembrar que nada, jamais, realmente acontece na vida humana, que permanece empacada na perplexidade do existir.
Ah, antes de cair o pano: a entrada de Renato aos 44 minutos do segundo tempo em Quito é uma obra-prima do nonsense.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/absurdo-do-absurdo-11468758#ixzz2sl6sfQyT
Nenhum comentário:
Postar um comentário