Adriana Calcanhoto
A colunista escreve quinzenalmente aos domingos
Manco como um Ricardo III, lá vai o mês, fritando tudo o que pode
O poeta desce do táxi, os cabelos longos, brancos, esvoaçam revoltos. Ele bate a porta do carro e olha para cima, na direção das escadarias, que terá de subir para chegar até a capela 3. Está sendo velado o corpo do amigo, morto a facadas pelo filho, que, parece, sofre de esquizofrenia. O filho esfaqueou também um dos seios e o fígado da mãe, que conseguiu sobreviver. O pai está, ou não está mais, logo ali acima, entre pétalas, perplexidade, calor, suor, lágrimas, canções, “personagens”, flashes, óculos escuros, lenços de papel e sobrancelhas descontroladas.
O poeta parece ainda mais poeta com seus cabelos rodando para cima, encobrindo-lhe os olhos de vez em quando, de vez em quando deixando-lhe revelar o olhar. O ritmo de suas passadas é lento, parecendo que levou um choque elétrico e que aquilo tudo está acontecendo pela primeira vez. Ao mesmo tempo, na maneira de mexer o corpo, deixa transparecer certa intimidade com aquele caminho, o da perda. Está zonzo, mas é com cálculo que se esgueira por trás das colunas da entrada principal do cemitério, por trás dos homens que levam as câmeras de TV nos ombros e as hastes com as luzes. Para não precisar parar, para não precisar ser solicitado a dizer o indizível. Esgueira-se porque é da sua natureza a atração pelo contrafluxo, um dos seus lugares prediletos. Esgueira-se porque mantém um moleque maranhense dentro dele, tão livre quanto um gato, tão vivo quanto uma banana no pé. Esgueira-se andando meio de banda, como quem cuja camiseta diz “meu lance é outro”. Sem pressa alguma ele sobe, degrau por degrau, com semblante sisífico, as velhas escadas.
A inclemência do maçarico de um dos verões mais quentes dos últimos tempos no Rio de Janeiro parece endurecer ainda mais aquilo que o poeta não finge, e que não escancara. Mês de fevereiro, quando as flores não aguentam de calor e as coroas sempre chegam murchas aos velórios, cheirando um pouco demais, constrangendo a todos, fazendo-nos sempre lembrar que sim, são flores, mas estão mortas. As sombras no chão e a floração em torno não deixam dúvidas, é fevereiro quando o poeta surge sozinho de dentro do táxi. Fevereiro, mês que tem o mesmo destino das cigarras. Fevereiro sobre o qual o poeta que tem agora os cabelos ao vento escreveu o poema definitivo, “Verão”.
Em fevereiro de 1965, mais exatamente no dia 13, Maria Bethânia estreou no “Opinião” dividindo o palco com Zé Kéti e João do Vale, no lugar de Susana Moraes, pois Nara Leão já havia se afastado algumas semanas antes. Tempos depois, em 1989, no mesmo 13 de fevereiro, chegou ao Rio de Janeiro uma compositora nascida em 1965, vinda de Porto Alegre para fazer um primeiro, único, show na cidade, e daqui nunca mais quis voltar. Chegou à Zona Sul no 13 de fevereiro, que enfrentava uma frente frita, em um táxi, com uma mala azul e um violão. Já havia estado no Rio duas vezes antes, em férias com a família e uns anos depois em um carnaval onde as pessoas se locomoviam de caiaque pela cidade alagada, de modo que ficou trancafiada em um apartamento a temporada toda, escapando apenas uma noite para singrar as ruas de São Conrado até o Humaitá, onde Fernanda Montenegro se apresentava com um monólogo. A chegada mesmo, para (mesmo sem saber) ficar, no 13 de fevereiro de 1989, no táxi, no calor escaldante que faz com que as flores murchem combalidas e que as peras e as bananas estejam podres muito mais rápido, a compositora nunca conseguiu esquecer. À medida que ia naquele táxi, adentrando a cidade, pelo trânsito, de ônibus ferozes, em um tempo em que ninguém parava no sinal nem usava cinto de segurança, maior era o estranhamento com tantos contrastes, de todos os tipos.
Estranhamento e fascínio e susto e comoção e coragem e medo. Seu endereço de chegada era a Rua São João Batista, em Botafogo, em frente ao cemitério onde chega agora o poeta, saltando atônito de um carro amarelo com seus cabelos dançantes, enquanto resiste fevereiro, “mordendo o chão”. Provavelmente não vai conseguir escapar de ter que dizer algo, de “falar” da tragédia, de “falar” de seus sentimentos, sendo ele próprio pai de dois filhos com esquizofrenia. Os cabelos em desalinho são a única pista do que ele possa estar sentindo enquanto lança o olhar para a escada e segue em frente. As cigarras ao fundo entregam-se em seu canto a fevereiro, para a perpetuação desse mesmo canto. Gritam que é fevereiro “que vai morrer/ não quer morrer”. Manco como um Ricardo III, lá vai fevereiro, fritando tudo o que pode, enquanto é tempo, seu curto tempo, para enferrujar, para corroer, para queimar em memórias filmes que não desbotam jamais, tórrido, ávido, marcado para morrer. O poeta depara-se por trás de uma das colunas da entrada com a compositora, que também prefere os itinerários a contrapelo. Eles se abraçam. Ele vai em direção às escadas. Ela entra em um táxi com as narinas impregnadas da sua cheirosa camisa. Inebriada, diz ao motorista: “Fevereiro, por favor.” O motorista diz “senhora, oi?”. O motorista liga o ar-condicionado no talo. A compositora pensa: será que tendo o carro assim gelado ilude-se o motorista de que fevereiro está apavorando só lá fora? Ou só no presente? O poeta passa a mão pela cabeça em gesto característico e ajeita os cabelos antes de chegar à capela 3. O motorista liga o taxímetro.
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