sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Crônica do Dia - Um judeu e um pato na macumba

Por Arnaldo Bloch

   Ler o romance “Mandingas da mulata velha  na cidade nova”, de Nei Lopes (Editora Língua Real), tem sido, ao mesmo tempo,  uma aula sobre o nascedouro do samba  aqui pertinho de onde hoje fica O GLOBO; sobre a cena carioca sob os sopros milenares da África através da baianada que plantava novas raízes na cultura da cidade que ainda tomava sua feição; sobre o ofício do (bom) jornalismo (o protagonista é um repórter que, em 1924, é encarregado de fazer um perfil da falecida Tia Amina, inspirada na lendária Tia Ciata, e se mete em terreiros, chácaras, círculos, mesas, ranchos...); e, acima de tudo, sobre como descobrir um texto que, nas mãos de um lexicógrafo, enciclopedista, pesquisador e guardião da herança africana, se revela, apesar disso tudo e pour cause, a expressão própria da fruição literária, do prazer e da alegria de ler, do suspense recheado de humor, da cultura temperada com magia, da linguagem reveladora de mundos submersos, massacrados por um certo senso comum. 

   O universo das religiões africanas, presente o tempo todo no livro de Nei, mete medo em muita gente, quando não é rejeitado por puro preconceito racial mesmo (nem menciono as tropas evangélicas), disfarçado em pudores frente às práticas nem sempre frugais relacionadas com as divindades do candomblé e da umbanda. A mais recente experiência que tive, contudo, revelou-me, mais uma vez, algo que, também na cultura indígena, me agrada profundamente: a relação dessas divindades com a natureza e suas forças. Foi em Salvador, em visita à casa da ortodoxa e internacional Mãe Stella de Oxóssi (recomendação da Cristina Zahar). Mãe Stella não estava, mas fui atendido por uma gentil ajudante sua que, depois de me deitar diante de um altar, me levou até uma árvore e pediu que eu a abraçasse, e ficasse uns minutos assim, atado, casado com ela (uma jaqueira, ou Apaoká, divindade milenar...). Senti-me bem com a mão na jaca, mas a moça não me deu orixá: terei que voltar lá para Mãe Stella jogar as conchas.
   Menos delicadas foram as experiências de infância, a cargo de minha mãe. Como se diz na comunidade, todo judeu é chegado a uma macumba. Um rabino ortodoxo garantiu-me certa vez que era o contrário: que judeu é da macumba antes da macumba. Claro que não é nada disso, mas lembro que minha bisavó Fanny gostava de sacudir uma galinha (viva) na cabeça de mamãe para tirar azar, ritual que tinha nome em iídiche (kapures) e que vinha lá das fronteiras da Romênia com a Bessarábia, e não da África.
   Seja como for, uma época, para os idos de 1971, eu, bem menino, sofria de terríveis dores de cabeça, que me faziam gritar, uivar de dor. Os médicos não davam jeito, e uns óculos que o oftalmologista me receitou (sem precisar) de nada adiantaram. Um dia, na memória, assim sem mais nem menos, vejo-me num ambiente escuro pontilhado de uns luzires de vela, atravessando cortinas de miçangas e sentindo cheiros de fumaça forte. Na ocasião não gostei, por não saber exatamente o que acontecia ali, ou talvez por estar sendo levado ali sem que mamãe nada me dissesse sobre o que era ou como era.
    Não me lembro do que se passou naquela casa de sei-lá-quem, se levei banho de sangue ou o quê, mamãe também não sabe dizer, mas me lembro bem do que não passou: a dor de cabeça, danada, só piorava nos dias que se seguiam.
Até que veio aquela temporada em Petrópolis, quando mamãe trouxe, num saco de papelão, uns patinhos (vivos), desses que se compravam em loja para criação ou para a criançada brincar. A um deles me afeiçoei e batizei: Patú. Fiz até uma coleirinha de barbante pra ele, coitado.
De noite, Patú assistia à novela das oito com a família e, lá fora, aparecia um sapo gigante, atraído, também, pela luz da televisão, ou, quem sabe, pela trama da Janete Clair.
   A amizade com Patú não foi suficiente para amenizar as dores de cabeça, que voltavam, agudas, de madrugada. Um dia, surgiu na casa alugada na serra um babalaô ou assemelhado, que era marido de uma cozinheira nossa, a Alcione, uma altona bonitona de Natal, de cabelos longos escorridos e cor de jambo.
   O homem me levou para um quarto e me chamou de mizifio umas dez vezes. Estalou os dedos e fez hum-hum. Depois, na sala de estar, observou Patú, que a essa altura, fim de férias de três meses, já era um patão quase adulto. E decidiu: era ele, ou o espírito que estava nele, o responsável pelo meu martírio.
   Não sei, até hoje, como me convenceram a deixar Patú partir, sozinho, pela ladeira do lado ao poente, sem grasnar. Sei que chorei muito.
Gosto de pensar que assim, talvez, ele escapasse de virar jantar de família. Que se casasse com sua pata e formasse, ele, sua própria casa e sua prole. Ou, se fosse devorado, que fosse por um gato, nas matas selvagens da serra de então. Ah, ia quase esquecendo de um detalhe, para o bem da verdade: a partir daquele dia, as dores se foram, junto com Patú, para nunca mais voltar.


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