sábado, 15 de fevereiro de 2014

Te Contei, não ? - A ponte da Ditadura

A construção de concreto e aço que liga o Rio a Niterói há quatro décadas personificou a imagem de milagre desenvolvimentista que o regime militar queria passar ao país

REVISÃO HISTÓRICA Batizada de ‘Presidente Costa e Silva', a via agora pode deixar para trás este último vestígio do período da repressão, a partir de uma ação do MPF que pretende renomeá-la

A Ponte Rio-Niterói nasceu verde-oliva.  Ao inaugurá-la em 1974, décimo aniversário do golpe militar, o presidente Emílio Garrastazu Médici orgulhou-se de estar escrevendo em concreto e aço os compromissos do regime com a pátria.  Quarenta anos depois, a Ponte continua firme sobre as águas da Baía de Guanabara.  Porém, do passado cívico que a ergueu como uma das obras-símbolo do Brasil Grande, pouco restou além da placa com o nome de batismo, "Ponte Presidente Costa e Silva".  E este último vestígio, o Ministério Público Federal também quer remover.  Uma ação judicial vai propor a mudança do nome, num movimento de cidadania que tem se repetido pelo Brasil afora — retrato do momento do país, que instalou uma Comissão da Verdade para investigar os crimes da ditadura.  Ao mesmo tempo, escolas, praças e ruas que homenageiam generais do regime começaram a ser rebatizadas.

BARCAÇAS LEVAVAM ATÉ 54 VEÍCULOS

Cruzaram pela Ponte, só no ano passado, 56 milhões de veículos.  Fenômeno que parece estar a anos-luz do início dos anos 1970, quando a ligação era por barcaças que levavam até 54 veículos.  Mas a história que segue é de outra travessia: a da própria Rio-Niterói, que se despojou da patente e ingressou na vida civil sem perder a imponência e a vocação para a polêmica.  Nasceu sob críticas de gigantismo e hoje se revela menor do que as necessidades.

A Rio-Niterói atravessou estes 40 anos carregando o nome do marechal Artur da Costa e Silva, segundo presidente do ciclo militar (1967-1969) e autor tanto do Ato Institucional 5 (AI-5) quanto da montagem do aparelho de repressão que responderia pelo desaparecimento ou morte de cerca de 500 pessoas até o fim do regime.  Por considerá-lo responsável por um "legado de autoritarismo e truculência", o grupo Justiça de Transição, montado pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar os crimes da ditadura, aproveita os 50 anos do golpe para tentar apagá-lo da História da Ponte.  No entendimento dos procuradores, dar à Ponte o nome "de um dos maiores violadores de direitos do povo brasileiro" é por si uma violação da memória de quem morreu, desapareceu ou foi torturado no governo Costa e Silva.  Para o MPF, é preciso devolver à sociedade o direito de escolher quem a Ponte deve homenagear.  A família de Mario Andreazza, ministro dos Transportes de Médici e idealizador da Ponte, reage à iniciativa:

— A esses revisores da História, tapados pela mistificação, obstruídos pela doutrina do justiçamento da memória, cegos aos fatos, não ocorre examinar que, sem Costa e Silva, não haveria a Ponte.  Ali, não se homenageia a ditadura, o arbítrio, a tortura, mas um indivíduo que, apesar de tantos erros, acertou, não fossem várias vezes, ao menos uma — lamentou o jornalista Carlos Andreazza, neto do ex-ministro.  A Ponte começou a ser construída em dezembro de 1968, nove dias antes do AI-5, e deveria ficar pronta em março de 1971.  Porém, só foi concluída em 4 de março de 1974, com um atraso de três anos.  E apenas 11 dias antes de o general Emílio Garrastazu Médici passar a faixa presidencial a Ernesto Geisel.  As obras, cujo avanço revelou os traços do arbítrio militar, aconteceram nos anos mais sangrentos do regime.

— Foi um dos principais símbolos do regime, ao lado de Itaipu e da Transamazônica.  O Brasil potência.  Mas foi vista também como uma obra faraônica, que enfrentou suspeitas de superfaturamento — diz o professor de História Carlos Fico, da UFRJ.  No começo, a Ponte era uma via de 13,2 quilômetros construída pelos militares para ligar dois pedaços da BR-101 (Rio Grande do Norte-Rio Grande do Sul) e consolidar o Plano Nacional de Rodovias.  No primeiro ano, atingiu a marca de 20 mil veículos por dia.  Hoje, quando o movimento já ultrapassa os 150 mil veículos por dia, seus operadores preferem vê-la como uma grande rua unindo duas cidades.  Talvez seja esta a mesma impressão dos usuários, que padecem diariamente, nos horários de pico, levando para atravessá-la quase o mesmo tempo gasto pelos antepassados do tempo das barcaças.  Para os generais do regime, a Rio-Niterói personificou o milagre desenvolvimentista.  Para os engenheiros, o desafio vencido mar adentro.  Mas, desde o começo, a euforia sempre conviveu com o drama, a começar pelos marítimos da Viação Atlântica Ltda.  (Valda) e do Serviço de Transportes Baía da Guanabara, antiga Cantareira, que perderam seus empregos com a desativação das sete embarcações que faziam a travessia.  Até então, a viagem de barcaça demorava até duas horas.

ATRASOS E GASTOS ADICIONAIS

O contrato de construção foi assinado em 4 de dezembro de 1968 entre o governo e o Consórcio Construtor Rio-Niterói S.A. (Ferraz Cavalcanti, Companhia Construtora Brasileira de Estradas, Servix de Engenharia e Empresa de Melhoramentos e Construção), que levou a concorrência por oferecer o menor preço no menor prazo — Cr$ 238 milhões em 28 meses, hoje cerca de R$ 366 milhões, segundo o IPC-SP (FIPE).

Dois anos depois, o consórcio já havia consumido 70% do preço cobrado, embora tivesse concluído só 20% do projeto.  Em 1970, Médici, percebendo o enorme atraso, adiou a entrega e retirou parte dela das mãos do consórcio vencedor, entregando- a ao 2º colocado, o Construtor Guanabara Ltda.  (CCGL), formado por Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Construtora Rabello e Sérgio Marques de Souza.

O fatiamento não foi suficiente.  Por não ter informações adequadas sobre o fundo da baía, o Consórcio Rio-Niterói constatou que teria de gastar bem mais do que o cobrado na compra de perfuratrizes sofisticadas que garantissem fundações seguras no mar. Não aceitava o fatiamento e se recusava a desembolsar sem o aporte de novos recursos públicos, razão pela qual entrou em conflito com o projetista, o engenheiro Antônio Alves Noronha, que insistia em apontar falhas técnicas na obra.

Contribuiu para a crise o grave acidente de 24 de março de 1970, quando engenheiros e operários faziam um teste de carga em plataforma flutuante.  Depois que 34 tubulões foram enchidos com água, a plataforma não resistiu e afundou, matando oito pessoas, três delas engenheiros.


Na pressa, muitos ficaram pelo caminho
SEPULTURA DE CONCRETO Mortos durante a obra teriam chegado a 400

Bruno Góes e Chico Otavio

Entre a assinatura do primeiro contrato de construção da Ponte Rio-Niterói, em dezembro de 1968 (governo Costa e Silva), e a inauguração, em março de 1974, passaram-se 1.890 dias.  Porém, 80% das obras foram executados nos 720 dias finais, depois que o primeiro consórcio foi destituído e o novo assumiu, encerrando seis meses de batalha judicial.  A pressa ditou o ritmo neste esforço final e deixou pelo caminho um número até hoje impreciso de operários mortos em acidentes de trabalho.

Oficialmente, o regime militar contabilizou 33 mortes durante a obra.  Mas há quem faça uma conta de 400 baixas, tornando os pilares uma sepultura de concreto quando não havia tempo a perder com resgates.  Pelos registros jornalísticos da época, é possível concluir que, de dezembro de 1968 a novembro de 1972, foram registrados oito acidentes fatais, com um total de 18 mortos e mais de 30 feridos.  A lista começa em 5 de novembro de 1969, quando uma explosão em uma das instalações de ar comprimido matou o operário Domício Barbosa Lima.

— A ideia de que os operários eram concretados é um mito.  No acidente mais sério, ainda no primeiro consórcio, quando uma base virou no teste de carga e morreram oito pessoas, não havia nem concreto.  Se alguns corpos não foram resgatados, é porque desapareceram na baía, mas não concretados — afirma o engenheiro Bruno Contarini, responsável técnico da obra.  Os perigos não eram poucos.  Trabalho nas alturas e sobre águas com 20 metros de profundidade, canteiros de obra em ritmo frenético, onde os cuidados com a segurança do trabalho eram detalhe dispensável, e operários sem qualquer instrução faziam parte da rotina do canteiro de obras.  Fotos da construção exibem trabalhadores com sandálias de borracha, bermudas, sem camisa, fumando enquanto martelavam ou carregavam objetos.  Capacetes e botas eram raridade.

Terceira maior ponte do planeta quando inaugurada, com quase 14 quilômetros, a Rio-Niterói enfrentou desafios de engenharia — o maior deles, assegurar 300 metros de canal navegável no vão central (canal principal) — e de gestão de dez mil funcionários, mais de oito vezes o número de trabalhadores mobilizados na reconstrução do Maracanã.

Para fazer a Ponte, foi erguida uma verdadeira cidade no Fundão, administrada por uma prefeitura com plenos poderes.  Oferecia-se alojamento para 2.500 pessoas, cem casas destinadas a feitores, mestres de obra, encarregados.  Todas com dois ou três quartos.  Na vila, havia ainda 25 casas destinadas a engenheiros.

Os trabalhadores contavam ainda com ambulatório, pronto-socorro, supermercado, agência bancária, dentista, barbeiro, guarnição do Corpo de Bombeiros, posto de assistência social, restaurante, destacamento policial, áreas de recreação, uma escola com cinco salas e 13 linhas de ônibus gratuitas, com destinos de Copacabana a São João de Meriti.

— Se alguém morria, a gente esquecia logo e continuava a obra.  O pessoal vinha rápido para retirar (os corpos).  Aí, a gente seguia em frente — relata o aposentado Raimundo Miranda.  Raimundo foi um dos operários que ajudaram a fazer a Ponte.  Homem de confiança dos engenheiros, ele conta que passava quase 15 horas por dia no trabalho.  Os operários não podiam ficar parados.  A pressa e os incentivos para a rápida conclusão da obra eram o cotidiano.

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