O trabalho escravo é uma realidade brasileira — e um constrangimento aos olhos do mundo. Desde 2003, quando o PT chegou ao poder, cerca de 40000 pessoas foram libertadas de situações análogas às da escravidão. Além disso, 579 empregadores entraram na chamada lista suja de escravagistas do século XXI, sujeitos a multas e outras sanções. Esses números são parte do arsenal usado pelo governo para comprovar o compromisso dos petistas com a massa proletária, a base social e as ideias humanistas que inspiraram a formação do partido. Um discurso que — como no caso de tantas outras bandeiras históricas — não resiste à teimosia dos fatos. Na semana passada, ficou claro que o PT, que já transigira com a falta de ética, também aceita a exploração do trabalhador. Basta que seja conveniente aos propósitos políticos do partido. Essa nova faceta começou a ser desvendada depois de a médica cubana Ramona Matos Rodriguez abandonar o programa Mais Médicos, uma das principais bandeiras eleitorais da presidente Dilma Rousseff e do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, candidato do PT ao governo de São Paulo.
Parte do grupo de 7378 médicos cubanos que estão no Brasil, Ramona experimentou no país uma situação parecida com a dos peões aprisionados em fazendas e carvoarias do interior. Segundo seu relato, ao começar a trabalhar, descobriu que receberia apenas 10% do salário pago aos médicos de outras nacionalidades que participam do programa. Além disso, passou a ter a vida monitorada permanentemente, para que não abandonasse o Mais Médicos nem adotasse uma postura política que pudesse afetar os interesses dos governos brasileiro e cubano. O cerco dos capatazes não foi capaz de impedir a fuga de Ramona, que, protegida pelo líder do DEM na Câmara, Ronaldo Caiado (GO), jogou luz sobre como foi de fato a negociação para a contratação dos médicos cubanos. Ramona revelou, por exemplo, que o governo brasileiro já recrutara médicos da ilha em 2012, ao contrário do que disseram Dilma e Padilha no ano passado. Ramona também deixou claro que o governo brasileiro recorreu a um atravessador para fechar a operação, justamente como fazem os escrava-gistas de agora. Houve até uma conveniente triangulação planejada para limpar a barra do Brasil numa ação que era claramente degradante.
Primeiro, o governo brasileiro firmou uma parceria com a Organização Panamericana de Saúde (Opas) destinada a garantir a importação da mão de obra. O texto definia que o Brasil pagaria apenas à Opas e não teria vínculo direto com Cuba. A organização, então, fechou negócio com a ditadura cubana. Um senhor negócio. O salário de um participante do Mais Médicos é de 10 000 reais, ou cerca de 4 200 dólares. De acordo com o contrato apresentado por Ramona, a ditadura dos irmãos Castro só repassaria 1000 dólares aos médicos. Do total, apenas 400 dólares (952 reais) são depositados numa conta bancária no Brasil. Os outros 600 dólares seriam depositados numa conta bancária em Cuba. Como o Mais Médicos conta com 7 378 médicos cubanos, a ilha lucra cerca de 56 milhões de reais por mês — ou 674 milhões de reais por ano, creditados na conta de uma tal Comercializadora de Serviços Médicos, uma S. A. controlada pelo governo. Como os fazendeiros do Pará, o estado com o maior número de empregadores inscritos na lista suja do trabalho escravo, os irmãos Castro retêm a maior parte do salário prometido. Foi justamente do Pará, e do município de Pacajá, que Ramona fugiu para denunciar a exploração dos cubanos no programa Mais Médicos.
A chuva caía na manhã do sábado retrasado quando a médica, depois de caminhar 1 quilômetro numa rua cheia de barro, embarcou numa caminhonete Hilux cabine dupla com destino a Marabá, a 280 quilômetros de distância. Ao volante da caminhonete estava o empresário Rivelino Vieira, dono de uma loja de materiais de construção que fica ao lado da casa alugada pela prefeitura de Pacajá para acomodar a equipe de médicos cubanos. A fuga foi planejada durante meses. Ramona temia ser descoberta e denunciada pelas colegas Magdalys Campo Pupo e Marlene Ramirez Gomez. "A Ramona era monitorada dia e noite pelos cubanos", conta Vieira. Foi a mulher do empresário, Elaine, que comprou a passagem de avião para Ramona de Marabá a Brasília. Tão logo perceberam a fuga, as duas colegas cubanas de Ramona foram à loja do casal pedir satisfações e tentar descobrir o paradeiro da médica. "A Magdalys chegou aqui e disse que a Polícia Federal e o consulado cubano iriam nos procurar descobrir tudo. Ficamos com medo. A partir daí, pedimos a Ramona que não nos telefonasse mais", conta o empresário. Diante do fracasso dos capatazes, foi a vez de os capitães do mato entrarem em campo.
Procurado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que a Polícia Federal não investigou a médica cubana. Já petistas graúdos passaram a desqualificá-la, dizendo que Ramona, desde o início, queria se mudar para os Estados Unidos. A participação no Mais Médicos seria uma etapa desse plano. Na semana passada, a médica pediu concessão de refúgio no Brasil e visto na Embaixada dos Estados Unidos. Novo ministro da Saúde, Arthur Chioro disse que estava usando a médica para atingir politicamente o governo e tratou o episódio como um caso isolado. Nenhuma palavra foi proferida sobre as condições impostas aos médicos cubanos — entre elas a proibição de se casar com brasileiros e a obrigatoriedade de só viajar de férias para Cuba. Nos bastidores, o governo adota uma postura ainda mais cínica. Lava as mãos e diz que só firmou parceria com a Opas. Se a organização e o governo cubano negociaram para pagar uma mixaria aos médicos e impor uma série de restrições a eles, isso não diz respeito ao Brasil. O mesmo argumento foi usado recentemente no país por uma famosa marca de roupas flagrada explorando trabalho escravo. Em sua defesa, a empresa jogou a culpa nos intermediários responsáveis por arregimentar os empregados. Em entrevista a VEJA, Ramona disse se sentir como uma mercadoria. O prefeito de Pacajá, Antônio Mares Pereira, concorda com ela: "Os médicos brasileiros contratados pelo nosso município ganham 10 000 reais por mês, e ela ganhava pouco mais de 800 reais por mês. Isso é trabalho escravo".
"Eu me senti uma mercadoria"
Característica daqueles que tiveram de aprender desde cedo a viver no silêncio das ditaduras, a médica Ramona Rodriguez não fica à vontade quando perguntada sobre os detalhes do que viveu nos últimos dias para escapar da vigilância do regime cubano em pleno território brasileiro. Olha para os lados, checa o celular, como se alguém estivesse sempre ouvindo.
Quando a senhora começou a planejar a fuga?
Desde o momento em que cheguei, descobri quanto ganhavam os outros médicos e quanto os cubanos ganhavam.Eu me senti uma mercadoria. Penso que fui enganada por Cuba. Não disseram que o Brasil iria pagar 10000 reais peio serviço dos médicos estrangeiros. Foi aí que comecei a pensar nisso. A minha maior preocupação era evitar que as outras cubanas percebessem as minhas intenções. Em um momento, elas ficaram desconfiadas, porque notaram que eu estava estranha, e chegaram a chamar o supervisor.
Como a senhora conseguiu pedir a ajuda de outras pessoas?
Para não chamar a atenção delas, eu dizia que tinha de fazer caminhadas, me exercitar, que não estava bem de saúde. Era nesses momentos, os únicos longe dos olhos das outras cubanas, que eu aproveitava para fazer contatos, fazer os preparativos. Quinze dias antes de decidir fugir, comprei a passagem de avião. Eu disse que iria visitar uma fazenda e não voltei mais. Sei que tome uma decisão séria que poderá mudar a vida de muita gente que ficou em Cuba.
Outros cubanos estão insatisfeitos como a senhora?
Nós, cubanos, falamos pouco, mas pensamos muito. Quando cheguei a Brasília, num grupo de 400 cubanos, passei três semanas em treinamento. Nesse período, muitos cubanos reclamaram em particular ao saber quanto os outros médicos estrangeiros iriam ganhar. Eles também estão se sentindo usados e enganados. Acho que muitos cubanos estão esperando para ver no que vai dar essa história, o que vai acontecer comigo.
A senhora teme retaliações?
Desde que saí da casa em Pacajá, a única pessoa com quem falei foi minha filha, Beatriz. Quando a avisei de que eu havia fugido, ela chorou muito, mas me apoiou. Os cubanos que foram à Venezuela, ao Zimbábue, a Angola e resolveram fazer o que eu fiz estão até hoje tranquilos. Só que os parentes que ficaram em Cuba sofreram, tiveram a vigilância reforçada, passaram a levar uma vida mais controlada pelo governo cubano. Minha filha, que é médica, está em formação, é residente, pode perder o emprego e até ser perseguida agora.
Que orientações a senhora recebeu do governo cubano sobre como se comportar no Brasil?
Quando cheguei a Brasília, disseram-me que havia um regramento disciplinar. Fomos informados de que essas regras seriam passadas verbalmente, nada por escrito, nada documentado. Fomos também advertidos de que estávamos proibidos de falar com a imprensa, dar entrevistas, e tínhamos de pedir autorização a um supervisor cubano para ir a qualquer lugar. Se eu quisesse visitar alguém, ou conhecer alguma coisa, teria de informar. Até nos dias de folga, para sair de casa, por qualquer motivo, era preciso informar.
Até conversar era proibido?
Eu podia falar, atender, mas eles não aprovavam que eu falasse muito com os brasileiros ou fizesse amizades com vizinhos, ficavam sempre me vigiando.
O que poderia acontecer se a senhora desrespeitasse essas regras?
Seria presa.
A senhora já participou de missões em outros países. Qual a diferença?
Na Bolívia, era mais tranqüilo, não tinha essa vigilância que tem aqui no Brasil. O dinheiro era remetido pelo governo boliviano diretamente para Cuba, que nos repassava 200 dólares como ajuda de custo, porque era uma missão humanitária, não tinha salário, era uma ajuda para cumprirmos a missão. Mas no Brasil, não, a gente tinha um contrato, com salário definido para o Mais Médicos.
Como a senhora foi convidada em Cuba para vir participar do Mais Médicos?
Em Cuba, disseram-me que a proposta era de uma missão humanitária como a que eu havia participado na Bolívia, só que com contrato, com salário. Mas não nos falaram nada sobre salário. Quando nos deram o contrato para assinar foi que fiquei sabendo que seriam 400 dólares. Como na Bolívia eu ganhava 200 dólares e dava para viver, concluí que seria bom ganhar 400 dólares. Mas nunca me disseram que o Brasil era um país tão caro e que esse dinheiro não daria para nada.
O que falaram sobre o contrato com essa empresa cubana?
Esse contrato nos foi apresentado dois dias antes de viajar para o Brasil. Eu nunca tinha ouvido falar nessa Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. Não sei onde fica nem o que faz em Cuba. Não nos explicaram nada, apenas mandaram preencher. Eu não conhecia essa empresa.
Como é o trabalho no Mais Médicos?
As enfermeiras e as auxiliares são pessoas muito boas, mas não havia equipamentos e medicamentos para fazer muita coisa. Eu pensei que o posto de saúde fosse mais bem equipado e com mais medicamentos. Mas muita gente trabalha, indica medicação e não há remédio para distribuir. As pessoas reclamam muito da falta de estrutura nos hospitais.
Desde outubro a senhora está no Brasil. Em algum momento sentiu a diferença de viver em um país livre?
Eu me senti mais reprimida do que em Cuba, mas não por causa do Brasil, por culpa de Cuba. Eu não podia fazer nada aqui. Eu era vigiada 24 horas por dia. Nem na Bolívia era tão rigoroso o controle como aqui no Brasil.
A presidente Dihna Rousseff é uma mulher, como a senhora. Se tivesse a oportunidade, o que diria a ela?
Eu diria que penso que a presidente é uma mulher muito inteligente. Sei que em algum momento da vida ela também foi presa e oprimida por outras pessoas. ei que ela foi torturada e teve de defender suas posições e lutar por sua liberdade. Então, eu espero que ela tenha compaixão e ajude a resolver o meu problema.
Eu acho que manter pessoas desse jeito é o mesmo que escravidão como já está no 1º parágrafo , mas pelo que eu entendi o governo está tentando esconder algo muito grande pois pra que tanto regimento ? Porque os cubanos tem que ser tratados como bicho ? eu entendo que o país que eles vieram há várias regras e tal , mas porque isso ? Por que mante-los em "Cativeiro" e sempre que quando quiserem fazer alguma coisa deviam perguntar a algum Supervisor cubano , alem do salário , porque um salário tão baixo ? Eu pensei que eles iriam ganhar quantias de 5 dígitos igual aos outros médicos mas essa miséria de um salário minimo até por que os médicos exercem uma influência muito grande na nossa sociedade que está cada vez mais reduzindo o índice de saúde , até porque esse é o mesmo fato que ocorre com nossos professores que ganham um salário miserável para uma função tão importante para um país que tem uma das maiores taxas de analfabetismo !
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