O suíço Joseph Blatter, presidente da Fifa, estava desconfiado desde o início. No dia 30 de outubro de 2007, ao anunciar o Brasil como sede da Copa de 2014, ele disse: “O Comitê Executivo decidiu, unanimamente, dar a responsabilidade, não apenas o direito, mas a responsabilidade de organizar a Copa de 2014 ao Brasil”. Responsabilidade. A palavra nunca aparecera em anúncios anteriores. “A Copa do Mundo de 2010 será organizada na África do Sul”, disse Blatter ao abrir o envelope em maio de 2004. “O vencedor é a Alemanha”, afirmou, em julho de 2000. Para 2014, não houve disputa. A Fifa criara um rodízio entre continentes, hoje abandonado, e era a vez da América do Sul. Como único candidato, o Brasil recebeu a Copa com pouco esforço – e Blatter quis dizer, para o mundo ouvir, que os brasileiros tinham obrigação de realizar um bom trabalho. Semanas atrás, ele afirmou: “O Brasil é o país com mais atrasos desde que estou na Fifa”.
A impaciência parece justificada. Blatter lembrou que o Brasil foi o único a ter sete anos para organizar a Copa do Mundo. A Alemanha e a África do Sul tiveram seis. A Fifa também não queria uma Copa tão complexa como a que o Brasil decidiu organizar. Preferia um torneio com dez cidades sedes, como fez a África do Sul. Em 1994, os Estados Unidos fizeram sua Copa em nove cidades. O governo brasileiro insistiu em realizar um Mundial com 12 sedes – mesmo número da Alemanha em 2006 –, com logística mais complexa e gastos mais vultosos. Nos últimos anos, o custo do Mundial subiu de forma escandalosa. A previsão inicial de gastos era de R$ 17 bilhões. Em junho último, o Grupo Executivo da Copa do Mundo (Gecopa) atualizou o total para R$ 28 bilhões e anteviu um acréscimo de ao menos R$ 5 bilhões até a bola rolar – um total de R$ 33 bilhões. Dessa quantia, a União será responsável por 85,5%, e o setor privado por 14,5% – cerca de R$ 4,7 bilhões. Em 2007, em Zurique, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmara: “Tudo será bancado pela iniciativa privada”.
A apenas quatro meses do início do Mundial, as cidades brasileiras deveriam estar coloridas com as cores do Mundial. Banners, bandeiras, Brazucas e Fulecos gigantes deveriam já alimentar um clima festivo no país. Em vez disso, o Brasil segue tomado pela dúvida sobre sua capacidade de organizar a Copa de forma satisfatória. Na semana passada, as inquietações foram estampadas na capa da tradicional revista francesa France Football, com a manchete “Medo sobre o Mundial”. Para a publicação, a Copa tornou-se uma “fonte de angústia”. A presidente Dilma Rousseff repete que o Brasil fará “a Copa das Copas”. Apesar das dificuldades, isso ainda é possível. Poucos países desejaram tanto receber o Mundial de futebol quanto o Brasil, e os ingredientes necessários para uma competição profissional, cativante e histórica continuam presentes. Para realizá-la, será preciso superar as várias ameaças e desafios que cresceram nos últimos anos. ÉPOCA relaciona na reportagem de capa desta semana os principais riscos.
Violência
Grau de risco: 3/5
Um coral de vozes dissonantes – ainda pouco numerosas, mas barulhentas – rejeita a Copa no Brasil. Movimentos de bairro, centrais sindicais, partidos radicais de esquerda, movimentos de defesa da saúde, das mulheres, hackers, o grupo Anonymous e black blocs foram às ruas no dia 25 de janeiro, sábado, na primeira grande onda de protestos contra o Mundial. Tomaram ruas de 13 capitais do país. Na cidade de São Paulo, que comemorava seu 460º aniversário, houve tanto caminhada pacífica como depredação de patrimônio e confronto com a Polícia Militar – 135 pessoas foram detidas e depois liberadas. Dezenas de manifestantes invadiram o hotel Linson, na Rua Augusta, região central, ocupado em seguida por PMs. O estudante da Unifesp Vinicius Duarte diz ter sido agredido por policiais, no saguão do hotel – acumulou uma fratura no nariz, três dentes quebrados e um coágulo na cabeça. O secretário paulista da Segurança Pública, Fernando Grella, defendeu a ação da PM e prometeu investigar possíveis excessos. “Qualquer pessoa que tenha registrado uma ocorrência, noticiando uma situação de abuso, esse fato será apurado”, disse Grella a ÉPOCA.
Um caso mais grave envolveu o estoquista Fabrício Proteus Nunes Fonseca, de 22 anos, atingido por dois tiros de PMs, no bairro nobre de Higienópolis, após uma perseguição. Os policiais dizem ter agido em legítima defesa, e o caso é investigado. Imagens registradas por uma câmera da rua são inconclusivas sobre quem atacou primeiro. Segundo o secretário Grella, policiais devem evitar o uso de armas letais, mas elas não são proibidas em situações de legítima defesa. Em outro vídeo que originou uma investigação da PM, uma pessoa caída aparece ao ser atropelada por um policial numa moto.
Os confrontos em São Paulo geraram debates sobre a qualidade da ação policial diante de protestos de rua. O especialista em segurança pública George Felipe de Lima Dantas defende uma regulamentação nacional que esclareça à população o que a polícia pode fazer em cada tipo de situação. Segundo ele, em vários países do mundo os cidadãos têm mais consciência sobre como a polícia pode agir. “Os limites ainda são pouco claros na sociedade brasileira.” O secretário Grella afirma que, depois das manifestações de junho do ano passado, foram feitos investimentos para melhorar a atuação da polícia paulista, criticada na época pela violência. “Há uma licitação em andamento para comprar carros de jato d’água, que são modernos. É uma arma não letal, para dispersão. Esperamos ter esses veículos já para a Copa.” Além dos movimentos contra a Copa, a polícia de São Paulo se vê ocupada com a criminalidade comum e protestos de toda sorte. Apenas em janeiro, 30 ônibus foram incendiados na periferia da capital paulista.
Os manifestantes anti-Copa associam o evento a mazelas de vários tipos. Segundo Sérgio Lima, da Frente Popular de Saúde, as obras do Itaquerão, estádio da Zona Leste paulistana que será palco da abertura do Mundial, desapropriaram 400 famílias. Ele pede moradias, reformas nas Unidades Básicas de Saúde e mais vagas em creches no bairro. “Cansei de percorrer gabinetes públicos à procura de soluções. Vamos à rua contra a Copa.” Guilherme Camilo Fernandes, de 25 anos e estudante de psicologia, diz que os gastos com obras para o Mundial deveriam ter sido usados para melhorar a educação. Os ativistas trocam informações desde os protestos que tomaram o país em junho do ano passado – e repetem, em cartazes e nas redes sociais, o bordão “Não vai ter Copa”. “É um grito que sai das ruas, um deboche, uma provocação ao brasileiro. É um ‘não vai ter Copa’ se não tiver hospitais, se não tiver escolas”, afirma Renato Cosentino, de 30 anos, da entidade de direitos humanos Justiça Global e membro do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro. “Havia o discurso de que era possível ter os eventos e ainda investir em saúde, educação, como se os recursos fossem infinitos.”
O Comitê Organizador da Copa nega que o evento seja impopular. “As pesquisas de opinião mostram um nível de apoio alto, mesmo as realizadas durante as manifestações do ano passado”, afirma o CEO do Comitê, Ricardo Trade. Ele também rebate a ideia de que os recursos gastos não trarão retorno à sociedade brasilera. “Os estádios são financiados por empréstimos do BNDES que serão pagos com juros, não sai do orçamento da União. Esses estádios geram empregos, movimentam a economia local.” Nenhum ativista acredita ser capaz de impedir o Mundial. “Vai ter Copa, claro, mas a síntese é outra expressão: ‘Copa para quem?’”, pergunta Givanildo Santos, de 45 anos, do Comitê Popular de São Paulo. “Os ingressos têm preços absurdos, trabalhador não entra no estádio. Boa parte dos recursos é pública e deveria ser usada para outras necessidades.”
A possibilidade de incidentes violentos preocupa hoje o governo federal mais que carências em infraestrutura. Na semana passada, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse a colegas na Presidência da República que a polícia captara uma troca de mensagens ameaçadoras entre integrantes de uma grande torcida organizada de São Paulo. Em referência aos manifestantes que, no dia anterior, haviam vandalizado estabelecimentos no centro de São Paulo no protesto contra a Copa, os torcedores diziam que esses grupos não repetiriam isso em Itaquera, região do Itaquerão. Falavam em agressões caso os manifestantes se aproximassem do estádio. Cardozo já comunicara que o setor de Inteligência da Polícia Federal captara conversas telefônicas em que presos combinavam motins simultâneos em diversos presídios durante a Copa, especialmente em Estados do Nordeste. As duas ameaças foram discutidas numa reunião de rotina estabelecida no começo do ano pela presidente Dilma Rousseff. A cada sete ou dez dias, ela vinha conversando com os ministros Aldo Rebelo (Esporte), Celso Amorim (Defesa), Moreira Franco (Aviação Civil), Gleisi Hoffmann (Casa Civil), Agnaldo Ribeiro (Cidades) e Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral), além de Cardozo, sobre problemas na organização da Copa – desde segurança até problemas visíveis, como estádios atrasados e aeroportos com tapumes.
Infraestrutura
Grau de risco: 4/5
No dia 4 de janeiro, a menina argentina Camila Palacios, de 3 anos, caiu de uma altura de 7 metros por um buraco de 18,5 centímetros, ao lado de uma escada rolante, no aeroporto do Galeão, ou Antônio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro. Sofreu traumatismo craniano e de face. O acidente expôs mais uma vez as condições precárias e improvisadas de uma das maiores portas de entrada de turistas durante a Copa. O Galeão, em intermináveis reformas de ampliação e modernização desde 2008 – para aumentar sua capacidade de 13 milhões de passageiros para 47,2 milhões por ano –, continuará um canteiro de obras durante o Mundial. O presidente da Infraero, Gustavo Vale, já reconheceu que será impossível terminar tudo a tempo. As reformas, de R$ 440 milhões, estão entre as mais atrasadas para a Copa. O terminal 1 do Rio deveria ter sido entregue há quase um ano e meio. O terminal 2 está cinco meses fora do prazo. O Galeão também oferece extremo desconforto aos passageiros neste verão. A pretexto das reformas, o sistema de ar condicionado não é suficiente. Usuários protestam nas redes sociais contra a “sauna sem eucalipto”. No fim de janeiro, foi finalmente inaugurada a nova área de embarque do terminal 2, com 11.000 metros quadrados. A previsão é que, até abril, sejam entregues os pavimentos comercial e de desembarque. No fim de novembro, o consórcio Aeroportos do Futuro venceu o leilão de privatização, com proposta de R$ 19 bilhões. O grupo, porém, só assumirá o controle integral, por 25 anos, após a Copa do Mundo.
Segundo a Embratur, ao menos 600 mil turistas estrangeiros deverão desembarcar em junho e julho no Brasil para a Copa. Tamanha invasão, já prevista em 2007, deveria ter provocado o início imediato da modernização dos aeroportos. Não foi o que aconteceu. As obras do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, começariam em abril de 2010, segundo a Infraero. Foram postergadas para julho de 2011. Começaram a sair do papel apenas em agosto passado – com 36 meses de atraso. Hoje, 12 intervenções da Infraero em terminais de passageiros apresentam índice de execução inferior a 50%. Aeroportos de Belo Horizonte (Confins), Campinas (Viracopos), Curitiba (Afonso Pena), Porto Alegre (Salgado Filho) e Rio de Janeiro (Galeão) estão ameaçados por atrasos.
Se pelo ar está ruim, por terra é ainda pior. Tidas como maior legado da Copa do Mundo, as melhorias nos sistemas de transporte urbano, usado por 84% da população do país, receberam a promessa de altos investimentos públicos. Ao todo, R$ 12 bilhões foram prometidos para a reestruturação do transporte. Grande parte ficou no papel. “Ficaremos devendo, e muito, aos turistas no quesito transporte”, afirma Otávio Cunha, presidente da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU). “Os municípios são a favor de transformar em feriados os dias de jogo, porém isso não será o suficiente. Teremos muitos gargalos.” Dados dos comitês locais da Copa do Mundo revelam que 75,6% das obras previstas nos transportes estão atrasadas ou não estarão prontas a tempo da competição. Entre as justificativas para o atraso ou cancelamento das obras estão burocracia, chuvas, imprevistos e disputas judiciais. Os Veículos Leves Sobre Trilhos de Fortaleza, do Distrito Federal e de Cuiabá só serão entregues depois do Mundial. Obras de duplicação e prolongamento de rodovias e avenidas em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre estão descartadas. O custo também aumentou. O valor do Corredor Aeroporto-Rodoferroviária, em Curitiba, saltou de R$ 104,8 milhões, em 2010, para R$ 143,19 milhões. O VLT de Cuiabá passou de R$ 1,26 bilhão para R$ 1,57 bilhão. Em 2010, segundo a Matriz de Responsabilidades, o total de investimentos na rubrica “mobilidade urbana” era de R$ 11,9 bilhões. Após atrasos e cancelamentos, caiu para R$ 7,02 bilhões – menos que os R$ 8 bilhões gastos nos estádios.
Estádios
Grau de risco: 3/5
O drama da Copa de 2014 também atinge a mais básica atividade do evento – as partidas de futebol. Com apenas 6% do tempo total disponível de preparação, cinco dos 12 estádios ainda não estão prontos: Curitiba, Cuiabá, Manaus, Porto Alegre e São Paulo. Foram concluídos apenas os seis estádios usados na Copa das Confederações, em junho do ano passado, e a Arena das Dunas, em Natal, inaugurada há duas semanas. A Fifa exigia que todos as arenas fossem entregues até o fim de 2013, mas o último estádio deverá ficar pronto apenas em maio. No início de janeiro, em visita ao Brasil, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, ameaçou retirar da Copa a Arena da Baixada, em Curitiba. Trade, o CEO do comitê organizador da Copa, admite as dificuldades: “Até o dia 18 de fevereiro decidiremos todos juntos se o nível de preparação de cada estádio nessa data nos dá a confiança para realizar os jogos da Copa do Mundo e não coloca em risco a organização do evento. Teremos pessoas da Fifa e do comitê monitorando diariamente a evolução do estádio e trabalharemos muito e em parceira com os governos e o Atlético Paranaense para que Curitiba esteja na Copa”.
O resultado do planejamento pífio foi, como no caso da infraestrutura, o aumento dos custos. Ao todo, em comparação com a Matriz de Responsabilidades, assinada em 2010, que delineava prazos e custos das obras para a Copa, os estádios encareceram 66% – de R$ 5,3 bilhões para R$ 8 bilhões. Somados, os 22 palcos dos Mundiais de 2006, na Alemanha, e de 2010, na África do Sul, custaram menos: R$ 6,8 bilhões. Dos R$ 8 bilhões gastos no Brasil, apenas R$ 133,2 milhões não têm a mãozinha do Estado. O cálculo engloba incentivos fiscais, empréstimos e os R$ 3,9 bilhões atrelados a financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O custo humano também aumentou. Cinco operários morreram em acidentes nos estádios em 2013, incluindo dois na queda de um guindaste no Itaquerão.
Os preços
Grau de risco: 4/5
A Copa do Mundo tornou-se desculpa para uma explosão de preços em quase todo tipo de serviços, com destaque para hospedagem. O número de leitos em quartos de hotel no país não é suficiente, e a maioria não tem mão de obra capacitada para atender todo o público esperado. O resultado é a disparada dos valores cobrados. No Rio, estima-se que mais de 300 mil visitantes cheguem à cidade, para apenas 55.400 leitos. Segundo a Embratur, os preços em hotéis dobraram se comparados a valores regulares. Há hotéis cujas diárias de R$ 100 saltaram para R$ 2 mil na Copa. Algumas redes já foram notificadas pela Justiça por superfaturar as tarifas. Com isso, empresas passaram a repensar o plano de trazer convidados – no Rio de Janeiro, o custo chega a R$ 28 mil por pessoa. Emissoras de TV estrangeiras decidiram rever planos de cobertura da Copa, devido aos orçamentos exorbitantes. “Sem dúvida, a maior preocupação hoje é com os preços cobrados no Brasil”, afirma Alessandro de Caló, redator-chefe do jornal italiano La Gazzetta dello Sport. Para fugir do preço cobrado por hotéis no Brasil, a Associação de Torcedores da Bélgica montou pacotes em que os turistas ficarão acampados em barracas e se deslocarão de ônibus entre cidades sedes. A Federação de Torcedores da Inglaterra, com mais de 180 mil integrantes, assustou-se com os valores. “Os preços são exorbitantes, os mais altos que já vimos”, afirma Kevin Miles, um dos representantes da Federação.
O que fazer? É impossível voltar a 2007 para corrigir os inúmeros erros e desmandos da Copa de 2014. Nem existe a possibilidade de adiar a competição. A única saída de governos e do comitê organizador é otimizar esforços para garantir segurança, conforto e facilidade nos deslocamentos para todos. O Brasil ainda pode realizar um Mundial digno de sua paixão pelo futebol e que apague, ao menos em parte, a triste lembrança de sete anos desperdiçados. É o que merecem brasileiros e estrangeiros que torcerão, não apenas por suas seleções, mas por um Mundial alegre, pacífico e repleto de belos gols.
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