sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Entrevista - Manoel Carlos

“NOVELA É O PÃO DE CADA DIA”
 
O autor da próxima atração das 9 da Rede Globo nega a intenção de se aposentar – e conta que o mergulho no trabalho tem sido sua forma de atenuar a dor da perda de um filho

Manoel Carlos não é só o decano dos noveleiros da Globo. A trajetória do autor de 80 anos – que voltará ao ar no dia 3, na próxima trama das 9, Em Família – confunde-se com a história da televisão, do teleteatro ao vivo aos musicais dos anos 60.
Mas foi com as novelas da Globo que Maneco – também colunista de VEJA RIO – alcançou a consagração. Com um registro realista e uma acurada crônica dos costumes cariocas, sucessos como Mulheres Apaixonadas, de 2003, lhe valeram o epíteto de “Tchekov das novelas”.
Entrevistado em um escritório da Globo no Leblon, Manoel Carlos falou de TV, do Brasil, de velhice – e de como escrever uma novela atenua a dor causada pela morte do mais velho de seus cinco filhos.
Em Família será seu passaporte rumo à aposentadoria?
De jeito nenhum. O que desejo é me dedicar a obras mais curtas após a novela. Além de mim, aliás, vários autores já pleitearam reduzir a duração das novelas das 9. Escrever 180 capítulos é exaustivo. Infelizmente, não podemos intervir nas estratégias da Globo.
Minha idade pede que eu trabalhe num ritmo mais ameno, mas não vou me aposentar. A despeito do que o destino me reserve, tenho contrato até 2017. E gosto do que faço. Se estou relativamente inteiro aos 80 anos, é porque não parei de trabalhar desde os 14.
Nem a perda de seu filho mais velho, em 2012, afetou a vontade de trabalhar?
Ao contrário. Tem sido muito duro lidar com a perda de meu filho, mas minha reação de defesa é um desejo intenso de mergulhar no trabalho. Algumas pessoas podem pensar que estou sendo forçado a fazer essa novela. Não.
Depois da morte do Maneco, meu filho mais velho, fui chamado pelo Manoel Martins (diretor de entretenimento da Globo). Ele disse que eu poderia fazer o que quisesse: trabalhar, viajar ou ficar em casa sem fazer nada. Respondi que queria fazer uma novela o mais rápido possível.
Só um trabalho tão pesado será capaz de afastar um pouco meus pensamentos dessa perda. Eu busco preencher meus dias e minhas noites. Você não procura trabalho se tem problemas? É uma terapia. Mas, a qualquer momento, eu posso abrir mão. Faço a novela sob esta condição: se não aguentar, passo a bola para meus colaboradores.
O fato de ter sido o segundo filho que o senhor perdeu tornou as coisas mais difíceis?
Foram situações diferentes. A morte do Ricardo, o primeiro filho que perdi, foi uma infelicidade para a qual eu pude me preparar, pois ele contraiu o vírus HIV nos anos 80, quando só havia um remédio para a aids, o AZT. Se fosse hoje, com os novos coquetéis de drogas, ele estaria vivo. Mas se tratava, enfim, de uma tragédia anunciada. Agora, não.
A morte de meu filho Maneco num ataque fulminante do coração foi algo absolutamente imprevisto. Foi como se eu abrisse a porta do quintal e, do nada, visse um disco voador aterrissado ali. Não era possível estar acontecendo.
Da perda desse filho, não me recuperei até hoje. O que poderia ser mais grave? A terceira guerra mundial não seria nada perto do que estou vivendo. É quando a morte dos pais, irmãos e amigos fica muito menor. Junto com ele, metade de mim foi arrancada.
O senhor vai tocar nesse assunto na novela?
Em princípio, não. Hoje, afinal, talvez nem tenha condições de fazer isso. Mas novela é uma obra aberta. Posso mudar de ideia. E a perda será um tema presente: a morte do pai terá grande repercussão na vida do protagonista. Mas não pretendo exagerar na dose.
Em novelas, a morte não é um tema fácil de abordar. Às vezes, as pessoas reclamam de estar vendo algo muito triste. Outras vezes, dizem que a história é fantasiosa por não mostrar a morte de ninguém. O autor nunca sabe que reação despertará no público.

Suas novelas costumam tratar das questões da velhice. A chegada aos 80 anos mudou sua visão sobre o tema?
Os amigos brincam que eu defendo os velhos em causa própria. Mas o que me levou a fazer uma campanha em Mulheres Apaixonadas, que acabou inspirando até a criação do Estatuto do Idoso, foi conhecer a realidade da velhice nos Estados Unidos.
Quando morei em Nova York, fiquei admirado de ver como os idosos são respeitados. Ao atravessar a rua ou entrar num restaurante, o tratamento é de uma civilidade fantástica. Eu comentava com minha mulher: “Imagina se fosse no Brasil”.
Aqui, ninguém liga: você vai ao banco e flagra um office-boy de 16 anos na fila dos idosos. Nos Estados Unidos, o sujeito que faz isso é preso, pô. A nossa tolerância com as pequenas contravenções deixa os americanos abismados. E é mesmo inaceitável.
 
Carmem Silva (dir.), ao lado de Oswaldo Louzada e Regiane Alves: em "MUlheres Apaixonadas", tema delicado inspirou a criação do Estatuto do Idoso  (Foto: TV Globo/Divulgação)
Carmem Silva (dir.), ao lado de Oswaldo Louzada e Regiane Alves: em “MUlheres Apaixonadas”, tema delicado inspirou a criação do Estatuto do Idoso (Foto: TV Globo/Divulgação)
O senhor é notório pelos atrasos na entrega dos roteiros. Essa fama o incomoda?
Vejo com naturalidade, pois sempre fui assim. Sou do tempo em que se fazia teledramaturgia ao vivo, e nunca gostei dos grandes prazos para escrever. Até me coloquei à disposição para não fazer novelas, se a Globo não aceitasse meu jeito.
Na verdade, a maior razão para o barulho é que tenho a mania de fazer muitos adendos ao roteiro. Como em tudo na vida, os atores que mais reclamam são os que têm os piores papéis. Quem tem um bom personagem não reclama. Mas isso não me desculpa.
Toda vez que começo uma novela, digo que vou mudar. Só não prometo milagres.
 
Viver a Vida, sua última novela, não foi bem de audiência. Como é lidar com o fracasso?
Embora seja desagradável, não adianta chorar: você tem de fazer o possível para consertar o estrago. Mas a gente nem precisa sentir a pressão do público ou da emissora: quem mais sofre quando a coisa desanda é o próprio autor. Nenhum autor quer ter o trabalho filho da mãe de escrever uma novela para ninguém gostar.
 
O gosto do público mudou?
Já me falaram isso, mas não sei se é verdade. No momento, todo mundo quer aquele ritmo instantâneo de Avenida Brasil. Mas quem fez aquilo foi o João Emanuel Carneiro, um autor jovem que buscava seu jeito de fazer novela. Isso não quer dizer que eu, aos 80 anos, deva sair por aí imitando um garoto. Não vou pagar o mico de macaqueá-lo. Vou fazer do jeito que sei. É no que acredito.
 
Por que o senhor gosta tanto de longas cenas durante o café da manhã?
Porque minhas novelas são sobre a família. Se há algo que marcou minha vida foram as refeições com todos os parentes reunidos. É quando afloram os problemas e as felicidades, as desavenças entre marido e mulher, as rusgas entre irmãos.
É também o lugar da casa em que o chefe de família caía morto. Antigamente, o sujeito queria morrer em casa e ser velado na mesa onde a família se reunia. Hoje, já não se morre assim, morre-se no hospital. Antes que todo mundo saiba, já cremaram o cara. Mas me lembro bem dos velórios familiares, nos quais se serviam café e bolos.
 
Até que ponto as pesquisas com donas de casa são úteis para avaliar as novelas?
Eu nunca dei importância a isso. A prática de reunir algumas mulheres para opinar sobre a novela alheia acaba dando importância excessiva à opinião delas.
Eu, como autor, sei se minha novela vai indo bem ou mal. Sinto isso falando com as pessoas nas ruas de meu bairro, o Leblon.
Já fiz mudanças nas tramas com base no que ouço da empregada, de taxistas e garçons. Mas talvez alguns autores encastelados tenham dificuldade em captar a voz das ruas e precisem das pesquisas.
 
Encastelar-se é um erro?
Como fazer novela é massacrante, algumas pessoas precisam se isolar para escrever. Eu não tenho essa dificuldade. Escrevo em meio a qualquer barulho, desde os 19 anos, enquanto meus filhos faziam bagunça. Mas há colegas que precisam se isolar. Eu os compreendo.
 
No seu Leblon ficcional, caberiam os manifestantes que tomaram o bairro real no ano passado?
É evidente que sim. Fiquei orgulhoso de os jovens escolherem o Leblon como palco de seus protestos. Eu sou vizinho do governador (Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro). Aquele vandalismo, claro que não aprovo. Mas é ótimo ver manifestações pacíficas contra aumento de preços e as bandalheiras políticas.
 
O tema será retratado na nova novela?
É pena, mas não posso tocar nisso em ano de eleição. Sabe como eu ia começar a história? Quando se dava o salto entre a primeira e a segunda fase da novela, as manifestações de junho passado no Leblon marcariam a passagem do tempo. Mas aí a Globo me pediu para mudar. Eles não deixam, e ponto.
E por uma razão defensável: ao falar de política numa novela, você cria áreas de atrito que afetam o andamento da história. Fica uma coisa chocha, pois o autor não tem liberdade de dizer o que pensa de verdade dos políticos.
 
Como observador da sociedade, qual sua impressão sobre o Brasil governado pelo PT?
Quando o Lula foi eleito pela primeira vez, eu disse que estava feliz de ver um ex-operário chegar à Presidência. Inclusive votei nele. Mas não fiquei feliz, sinceramente, com a chegada do PT ao poder.
Não gosto de ver aquela turma que lembra um bando religioso no entorno do governo. Não acho aquelas pessoas confiáveis.
 
A patrulha politicamente correta é uma ameaça?
Não vejo um puritanismo tão forte como alguns colegas denunciam. Mas há certas noções que são um atraso. Como colocar um personagem dizendo que contratou um empregado afrodescendente? Contratou um negro, pô. Os negros inteligentes que conheço jamais concordariam com uma hipocrisia dessas.
Numa novela minha, uma personagem jogava um cigarro pela janela do carro durante uma briga. No outro dia, estava em todo lugar: mas que exemplo, hein? Nessa toada, logo não poderemos mostrar ninguém bebendo ou fumando. Alguém crê que isso fará o vício diminuir?
 
Amor à Vida tem um gay querido do público e Em Família terá duas lésbicas. A homossexualidade não é mais tabu?
O espectador já não se escandaliza com o casamento ou com a adoção de crianças pelos gays. Lógico que algum preconceito sempre haverá, já que a unanimidade nesse tema é impossível. Mas estamos numa democracia, cada um pensa o que quiser.
 
E a cobrança por um beijo gay em Amor à Vida?
É engraçado: não vejo importância nisso. Nada contra o beijo público entre gays. Mas talvez esperem um beijo muito sexualizado no horário nobre. Não sei se é preciso. Para dizer a verdade, não sou nem a favor de exageros do beijo público entre homem e mulher.
Não é bom ver um casal aos amassos no restaurante. É exibicionismo. Já me perguntaram se haverá beijo entre as lésbicas da minha novela. Estou escrevendo uma história de muito amor para elas. Se achar que a coisa pede, talvez faça uma cena de beijo. Se a Globo deixará ir ao ar, eu não sei.
 
Em "Família", nova novela das 9, Clara (Giovanna Antonelli) trocará o marido bonitão, Cadu (Reynaldo Gianecchini) pela fotógrafa Marina (Tainá Müller) (Foto: Divulgação)
Em “Família”, nova novela das 9, Clara (Giovanna Antonelli) trocará o marido bonitão, Cadu (Reynaldo Gianecchini) pela fotógrafa Marina (Tainá Müller) (Foto: Divulgação)
Por que os vilões são mais populares que as mocinhas?
Hoje os vilões estão na moda. Tanto que o negócio perdeu a seriedade: eles viraram os queridinhos da audiência. Mas a impressão que eu tenho, ao ver as novelas dos meus colegas, é que a acentuada força que os vilões passaram a ter enfraqueceu demais o lado bom da novela.
O herói é um banana e a mocinha é uma tonta. Dá para entender por que os autores dão tanta força aos vilões: eles se sentem livres para botar o que quiserem na boca deles.
É claro que a onipresença dos vilões reflete o estado moral da sociedade. Mas as coisas se sucedem por ciclos. Daqui a pouco, as pessoas vão se cansar dos vilões. O efeito disso será fazer ressuscitar as mocinhas.
 
As novelas têm futuro?
Têm um belo passado, presente e futuro. Já se decretou que o cinema e os romances água com açúcar desapareceriam, mas eles estão aí.
Nos anos 60, também ouvi que a novela ia acabar. Mas sempre haverá lugar para o melodrama. Veja o sucesso da série inglesa Downton Abbey. Adoraria ter escrito aquilo. A novela nunca vai morrer. No Brasil, então, ela é o pão nosso de cada dia.

Revista Veja

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