sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Te Contei,não ? - Exame de consciência em relação à escravidão

 

O mais incômodo de todos os assuntos da história americana é revisitado em filmes como ‘12 Anos de Escravidão’ e livros como ‘A Invenção das Asas’

Isabela Boscov
UMA INFINITUDE DE PERVERSIDADES - Lupita Nyong’o e Chiwetel Ejiofor como os escravos do irascível Michael Fassbender: a escravidão não como abstração, mas nas suas feições medonhas do dia a dia
UMA INFINITUDE DE PERVERSIDADES - Lupita Nyong’o e Chiwetel Ejiofor como os escravos do irascível Michael Fassbender: a escravidão não como abstração, mas nas suas feições medonhas do dia a dia      (Divulgação)

 

Em 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, Estados Unidos, 2013), que estreia no país nesta sexta-feira, o negro nascido livre Solomon Northup é abordado por dois brancos no Estado de Nova York, onde mora com a mulher e os filhos: Solomon é violinista, e os sujeitos o querem em suas apresentações itinerantes. Nas semanas seguintes, Solomon faz um bom dinheiro nessa base. Mas, na chegada a Washington, é drogado pelos companheiros, raptado e vendido como escravo para o Sul. Desse dia de 1841 até 1853 passará por vários donos na Louisiana e sofrerá crueldades indescritíveis. Não pode revelar que é livre ou que sabe ler e escrever: seria morte certa. Finalmente, Solomon consegue fazer com que notícias suas cheguem a amigos no Norte. Recupera a liberdade e publica o relato verídico que é adaptado pelo diretor inglês Steve McQueen em seu filme e que chega às livrarias no dia 24 (tradução de Caroline Chang; Penguin/Companhia das Letras; 256 páginas; 22,50 reais). Pegando a questão pelo outro lado, a americana Sue Monk Kidd ficcionaliza, em A Invenção das Asas (tradução de Flávia Yacubian; Paralela; 328 páginas; 29,90 reais, ou 19,90 na versão digital), a história também ela real de Sarah Grimké. Nascida num clã de fazendeiros e donos de escravos de Charleston, na Carolina do Sul, Sarah (1792-1873) aos 11 anos ganhou para si uma escrava da mesma idade. E achou a ideia repulsiva. Tentou devolver a menina, alforriá-la, alfabetizá-la — e em todas as tentativas foi rechaçada pelos pais. Sabe-se que a escrava morreu logo depois. No livro, porém, a autora a deixa viver, alternando capítulos entre as duas mulheres. Hetty, a escrava, é o indivíduo de carne e osso, repleto de aspirações próprias, que move Sarah na sua dificílima vocação como abolicionista e feminista. Junto com sua irmã Angelina Grimké (1805-1879), Sarah foi a única mulher, a única sulista e sobretudo a única pessoa criada dentro do escravagismo a militar contra ele décadas antes da Guerra Civil (1861-1865) e da consequente abolição da escravidão nos Estados Unidos.
Um branco que despreza as regras dos outros brancos, um negro com licença para matar: em Django Livre, Tarantino ameaça a ordem sulista pelos seus dois flancos fundamentais
Um branco que despreza as regras dos outros brancos, um negro com licença para matar: em Django Livre, Tarantino ameaça a ordem sulista pelos seus dois flancos fundamentais
Filmes e livros sobre a segregação no Sul americano do século XX e/ou sobre o movimento pelos direitos civis há aos milhares. Sobre a escravidão? Talvez dezenas. Uma característica determinante da narrativa americana é que ela deve acenar com vitória ou sucesso, redenção ou superação. Os militantes dos direitos civis doaram sangue e dor à sua causa — mas prevaleceram. Já a história da escravidão não tem nota positiva. Abolida depois de 246 anos (o Brasil tem a desonra de ser o recordista. A partir dos primeiros índios escravizados até a Lei Áurea, somam-se quase 400 anos), instaurou-se em seu lugar, no Sul, aquele outro monstro, a segregação, que duraria mais 100 anos. É assunto que não anima ninguém.
Junto com outro romance histórico recente, The Good Lord Bird, de James McBride, vencedor do National Book Award de 2013, e com o Django Livre de Quentin Tarantino (este um caso bem à parte), A Invenção das Asas e 12 Anos de Escravidão compõem, então, um afloramento inesperado do tema. E um passo à frente. Conhecer e reconhecer as abominações de seu passado é indispensável a uma sociedade, como o demonstra a Alemanha pós-II Guerra com sua insistência na doutrina da culpa; se ela não o faz, os erros dos pais continuam a visitar os filhos em novas formas. Por exemplo, na cena tão brasileira da patroa forte e saudável que anda de mãos livres pela feira enquanto a empregada carrega a compra sozinha. Ou na forma da mentalidade que gera um Maranhão, um pedaço do século XVI que resiste no presente e onde os cidadãos são tratados como uma commodity por meio da qual um grupo suga influência, voto, imposto, riqueza.
Nos Estados Unidos, essa parte da herança da escravidão — a da lógica que ela deixa em seu rastro — foi em boa medida erradicada com as conquistas das últimas décadas. Mas resta um tabu: o das iniquidades de que era feito o dia a dia de um escravo — os usos sexuais, os castigos e torturas, o regime de trabalho, onde dormiam e o que comiam, a linguagem com que eram tratados, como morriam ou eram mortos. Há ainda um tabu dentro do tabu: o fato de que às vezes os próprios escravos eram cooptados para impingir essas humilhações aos companheiros, ou também eles mantinham escravos. A feição desse dia a dia é o que o politicamente correto, com sua obsessão cosmética, busca contornar. Mas apenas proscrever palavras ofensivas não suprime a história da qual elas nasceram. E esse é o tabu que este punhado de livros e filmes confronta.
O curioso é o viés que esse afloramento adquiriu. Tome-se A Invenção das Asas: Sarah e Angelina Grimké foram indivíduos excepcionais. Foram vilanizadas, atacadas, relegadas ao ostracismo e nunca esmoreceram. Lutaram contra a escravidão como entidade e também caso a caso, ajudando escravos a fugir e educando como cidadãos plenos os filhos feitos pelo irmão em suas escravas. E é essa a questão: elas são excepcionais já no sentido primeiro, o de não terem correspondente entre seus pares. Também Solomon Northup é excepcional: foi um dos pouquíssimos negros raptados a reaver a liberdade e fazer-se ouvir. Os escravos com que ele conviveu naqueles anos, porém, continuaram lá no seu martírio, como as gerações antes deles e as que viriam depois.
Brian Blanco/The New York Times - Getty Images - Corbis/Latinstock
Sue Monk Kidd, que cresceu no Sul durante a explosão do movimento pelos direitos civis, recupera em A Invenção das Asas a história das irmãs Sarah (acima) e Angelina Grimké: uma luta contra a escravidão empreendida a partir do próprio seio dela
Sue Monk Kidd, que cresceu no Sul durante a explosão do movimento pelos direitos civis, recupera em A Invenção das Asas a história das irmãs Sarah (acima) e Angelina Grimké: uma luta contra a escravidão empreendida a partir do próprio seio dela
​O impacto emocional de ambas as histórias, claro, é imenso. É maior no caso de 12 Anos de Escravidão, por causa das imagens, habilmente concebidas para chocar e no mesmo fôlego comover, caso da já célebre cena em que a personagem da atriz Lupita Nyong’o é violentamente açoitada minutos a fio. Em A Invenção das Asas, é um impacto que vem da sinceridade; Sue Monk Kidd cresceu no Sul da segregação e da explosão da luta pelos direitos civis. Sua escola foi uma das primeiras a ser integradas, recordou ela a VEJA, e ela tem vivo na memória o achaque que os pioneiros colegas negros sofreram. Mas, com seus personagens excepcionais, tanto o filme como o livro representam a infância da relação com o tema. É uma infância necessária; com esse mesmo estratagema, o de voltar o foco para alguns sobreviventes do genocídio que matou 6 milhões de pessoas, A Lista de Schindler apresentou a uma nova geração os horrores do Holocausto. Mas isso não altera o fato de que as depravações humanas necessitam em algum momento ser tratadas nos seus próprios termos — os termos de sua indecência e obscenidade. É aí que Django Livre avança sobre todos. A história do escravo que vira sócio de um branco no ofício de matar outros brancos (mediante mandado judicial, frise-se) é, na superfície, uma fantasia de vingança. Mas vai à raiz da questão: se o dono de escravos era mais cruel ou mais bondoso, não importa. O que importa é que a escravidão é um pacto de violência — física, e antes de mais nada moral. Para que ela exista, é preciso que um lado da questão leve o outro lado a acreditar — em geral, por meios brutais — que ele nada pode. Em Django Livre, o branco e o negro decidem quebrar juntos esse pacto, e o Sul de fantasia de Tarantino pega fogo: não existe nada mais subversivo, enfim, do que gente que já não quer saber de se pôr no seu lugar.

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