sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Crônica do Dia - O judeu da macumba

Arnaldo Bloch
O colunista escreve aos sábados

 

A estranha saga em busca de um orixá

Faz tempo que venho tentando descobrir qual é o meu orixá. Se acredito? Isso é o que menos importa. Como dizem os epicuristas, nada de errado com os ritos, desde que não se espere deles a salvação ou o castigo, e que sirvam para, através de uma tradição, de um tambor, de uma vela acesa sexta-feira, de uma canção, trazer bem-estar e aplacar o medo em vez de intensificá-lo.

Anos atrás, por indicação de uma amiga filha de santo, bati à porta do terreiro de Mãe Stella de Oxossi (maior autoridade brasileira do candomblé), em Salvador, mas um parente havia falecido e ela não estava. A ajudante que me recebeu não era habilitada a jogar búzios. Mandou eu abraçar uma jaqueira, o que fiz com emoção e desprendimento.
— Você tem jeito de ser filho de Apaoká — informou. E, antes de se despedir, me vendeu dois sabonetes pretos com cheiro de fumo.
Saí dali energizado e interpretei como bom sinal o fato de nenhuma jaca ter cismado de me rachar a moleira, o que seria uma forma radical de “fazer a cabeça” (um dos rituais que formam um filho de santo de fato).
De volta ao Rio de Janeiro, fui pesquisar e descobri que Apaoká é um orixá raro e remoto, de complexa mitologia, que tem seu corpo em forma de árvore e identifica-se com o mogno-da-guiné (e, na falta dele, com a jaqueira). Meses depois, tive outra experiência, desta vez com a umbanda. Tinha participado de uma roda de Daime ecumênica, com o grupo de Perfeito Fortuna. Lá estavam, além dos adeptos do Daime, um grupo de índios que recusou o hinário, por ser fiel ao uso do ayahuasca do modo original, de rito puramente indígena. Eu era o judeu da parada. E havia também uma figura impressionante, que atendia por Baixinha, muito conhecida no Rio e fundadora do “umbandaime”, termo que se autoexplica. No dia seguinte, Perfeito me levou à casa da Baixinha para um culto. A certa altura ela se aproximou de mim com os olhos revirados e, na voz de um caboclo, disse:
— Você é o cavaleiro louro do fundo do mar, mas não pode se esquecer, nunca, do guerreiro de olhos azuis lá da montanha.
Fiquei intrigado, pois, de fato, sofro de uma espécie de fobia sempre que estou numa cidade sem montanha e sem mar. É preciso haver um ou outro, do contrário, perco meu centro. Nos anos que vivi em Paris, apesar de toda a beleza e do êxtase de estar em tão querida cidade, precisava, a cada duas ou três semanas, procurar o mar, mesmo que fosse o mar cinzento e feio da Normandia, que fica mais perto da capital francesa. E chorava, cada vez que reencontrava o horizonte, tomado do tal sentimento oceânico, para usar literalmente o termo de Freud.
Nos três anos em São Paulo, sem o Sena para dar uma folga e com prédios e padarias por todo lado, contava as horas para chegar o fim de semana, pousar no Santos Dumont e, dali, reencontrar meu elemento: mar e morro.
Em 2012, caminhando por uma trilha em Teresópolis, topei com um osso grande. Inicialmente achei que pudesse ser um osso humano, pois a região da trilha fora uma das mais atingidas pelo desastre do ano anterior, que havia matado um batalhão na região serrana. Assim mesmo resolvi recolhê-lo. Na pousada em que estava me informaram que era um osso de cavalo. Levei o osso de volta ao Rio sem saber bem para que, se o envernizava e transformava em objeto de decoração, ou se pesquisava mais sobre sua anatomia. Depois, me fizeram enxergar que não era bom guardar aquilo: o osso precisava ser devolvido, o quanto antes, à natureza.
Levar de volta a Teresópolis estava fora de cogitação. Seria um passo atrás. Então, me lembrei da Baixinha: o cavaleiro louro do fundo do mar, o guerreiro da montanha. A equação estava resolvida: da montanha para o mar, esse era o percurso. Fui a Búzios e resolvi a coisa num fim de tarde na Azedinha, que estava deserta. Depois fiquei dividido: eu libertara o cavalo ou o condenara a um limbo grotesco, com duas patas na montanha e outras duas no fundo do mar?
Depois acalmei-me ao recordar os epicuristas: o que importava, ali, era o bom sentimento que inspirara aquelas ações.
Recentemente, estive num terreiro de Candomblé em Caxias, chefiado por uma francesa que conhecera Pierre Verger e virou mãe de santo. Assisti à longa e belíssima festa de Oxalá. E, semana passada, fui à festa de Yemanjá no Arpoador, que misturou candomblé, umbanda, funk, jazz e pôr do sol. Venci a água gelada, dispensei o barco de oferendas e joguei flores depois da arrebentação, quando perdi o contato do pé com o fundo.
No Facebook e no Instagram postei dezenas de fotos destes dois eventos. Muitos estranharam: um judeu na macumba? Mal sabem que judeus, frequentemente, vão à macumba. Minha bisavó, judia de origem romena, girava uma galinha na cabeça de minha mãe para espantar más energias. Mas este rito vem da Europa Oriental, não da África, e faz parte da liturgia judaica. Como nas religiões africanas o judaísmo não é proselitista, apega-se às tradições e tem raízes tribais. Daí a identificação. De resto, gosto das religiões africanas, sobretudo do candomblé, por seu caráter democrático e ligado à natureza.
Os índios entram nessa lógica: quando tomei ayahuasca com uma tribo no Acre, Aílton Krenak, que me guiou na experiência, lembrou recentes descobertas que indicam a possibilidade de os índios terem chegado à América pelo Estreito de Bhering, na Sibéria. Seriam os índios uns eslavos, como eu? De toda forma, índios, como negros e judeus, também não são proselitistas e se organizam em tribos. Naquela madrugada, em que vivi a experiência mais significativa de minha vida, fui rebatizado Grande Urso Branco, em cuja pele me senti protegido. Falta o orixá.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-judeu-da-macumba-11528563#ixzz2tKuMdaC3

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