terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Te Contei, não ? - A delicada riqueza das fachadas do Centro - O Rio que o Rio não vê

Simone Candida e Paula Autran granderio@oglobo.com.br

 

Ao admirar um monograma com as iniciais MC no alto da fachada de um sobrado na Rua Vinte de Abril, no Centro, o fotógrafo e pesquisador carioca Luiz Eugênio Teixeira Leite decidiu fotografá-lo. Não só pela beleza da peça, mas pela curiosidade sobre o significado das letrinhas de argamassa que aparecem embaixo de uma concha. Após pesquisar e cruzar dados de arquivos públicos com o endereço do imóvel, ele acabou descobrindo, numa multa publicada no Diário Oficial da União, que o prédio pertenceu a Maria Carqueija.


O sobrado com símbolos do Antigo Egito é uma das surpresas da Rua Pedro Alves, na Zona Portuária Foto: Agência O Globo
O sobrado com símbolos do Antigo Egito é uma das surpresas da Rua Pedro Alves, na Zona Portuária Agência O Globo
Provavelmente uma comerciante que não era lá muito cumpridora dos regulamentos sanitários da cidade, já que, no dia 18 de maio de 1910, ela foi multada em 53 réis depois de fiscais terem flagrado irregularidades no seu estabelecimento, situado no número 21 da então chamada Travessa do Senado. Este caso foi um dos cerca de dois mil coletados por Teixeira Leite durante as muitas andanças que vem fazendo pelas ruas do Rio desde 2000, sempre de olho nos detalhes arquitetônicos que a maioria não enxerga na correria do dia a dia. O resultado dessa pesquisa iconográfica, que consiste em observar, fotografar e investigar a história de cada ornamento visto nas fachadas, já virou livro (“O Rio que o Rio não vê”), blog (www.orioqueorionaove.com), além de roteiro de visita guiada. E acaba de inspirar uma exposição que promete, mais uma vez, desafiar o visitante a ver o Rio com outros olhos.

Ao circular pela exposição, em cartaz até 16 de março no Centro Cultural dos Correios, o espectador pode ter uma amostra do que Teixeira Leite descobriu nas ruas do Centro, bairro a que se restringiu a pesquisa. Além das 36 imagens e ornamentos simbólicos das fachadas de construções civis que integram o livro, na exposição o autor exibe uma série de 400 imagens, numa projeção multimídia. Para completar o clima de familiarização do carioca com sua cidade, o pesquisador vai realizar três visitas guiadas gratuitas pelos endereços fotografados, nos dias 8, 15 e 22 de fevereiro. Inscrições pelo e-mail: leugenio@centroin.com.br.
— Além das imagens, coloquei uma legenda com fotos da fachada inteira, para a pessoa poder identificar o prédio. Em cada legenda, há também um QR Code que direciona o espectador para o meu blog, onde ele pode ler mais detalhes — diz o designer.
Um detalhe arquitetônico que não entrou no livro, mas está na exposição multimídia, é o baixo-relevo na fachada principal de uma edificação na Rua Pedro Alves, que mostra um burro puxando um bonde onde estão o condutor, o cobrador e três passageiros. No alto do bonde lê-se “Bonds da Villa Guarany”. Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico (Inepac), o chalé avarandado de 1883 é o que restou da estação que serviu à linha de carris de tração animal que ligava a Praia Formosa a São Cristóvão.
— Queria ter colocado no livro, mas só o encontrei quando já tinha fechado a edição — explica ele, que está registrando imagens em outros bairros a fim de lançar uma nova edição.
Uma das constatações do pesquisador, depois de bater perna e observar fachadas, é que os baixos-relevos sempre são relacionados ao uso do imóvel. Daí, explica ele, a presença de tantas representações de Mercúrio, deus do comércio, em sobrados do Centro.
— Era comum os comerciantes homenagearem o padroeiro da atividade. Isso me ajudou na hora de identificar o uso original dos prédios: se tem Mercúrio na fachada, em algum momento o lugar foi comércio — conta Teixeira Leite.
Enfeites
Nas duas primeiras décadas do século XX, esclarece o fotógrafo e pesquisador carioca Luiz Eugênio Teixeira Leite, o uso de ornamentos na fachada era quase obrigatório na arquitetura.
— Na hora de desenhar a fachada, eles tinham que usar algum elemento que remetesse ao uso do prédio — completa.
Um exemplo dessas pistas deixadas na fachada, cita o autor, é o baixo-revelo em argamassa no edifício do Largo de São Francisco de Paula número 4, onde, no final do século XIX, foi instalado o depósito da fábrica de luvas de pelica Boaventura da Silva & Ferreira. Ali, hoje, funciona uma lanchonete.
— Vemos ali o símbolo da cornucópia, atributo de fertilidade, fecundidade e abundância, que normalmente expele moedas e frutos. Naquele caso, de um lado saem leques, e de outro, luvas, numa referência ao depósito — explica, sem identificar o autor do projeto.
No antigo prédio do Ministério da Fazenda, na Avenida Presidente Antonio Carlos 375, os 33 ornamentos em mármore, de Humberto Cozzo, representam as principais atividades produtivas do Brasil.
— Como o prédio é gigante, pouca gente vê os detalhes. Ele tem lindíssimas métopas, com figuras representando a mineração, a pesca, o comércio marítimo e outras fontes de renda do país — descreve o autor, que garante não ter feito nenhum malabarismo para clicar as fotos. — Não me vali de ângulos privilegiados, apenas usei uma lente boa. Mas qualquer pessoa pode ver o ornamento do mesmo lugar de onde fotografei.
Ornamentos de igrejas não fazem parte do acervo, mas os trabalhos delicados dos prédios das irmandades ou de moradias de pessoas muito religiosas foram documentados.
— A irmandades colocavam ornamentos com motivos de tendência religiosa, e vimos muitas representações do Cordeiro de Deus. Só que, num prédio da Rua Teófilo Otoni 152, que foi de uma irmandade, a imagem de um cordeiro, talvez em função da restauração malfeita, virou a de um burro. Já um exemplo de cordeiro bem executado aparece na Rua Bueno Aires 189 — diz.


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