A lista de infrações só não é maior do que a tolerância com as repetidas violações às regras básicas do trânsito
Rio - Longe de ser uma exceção, Luiz Fernando Costa, o condutor do caminhão
que derrubou a passarela da Linha Amarela, é quase um exemplo do motorista
carioca. Não o motorista que deveria servir de exemplo, mas o que representa
nosso jeitão de circular pela cidade. Atire o primeiro celular quem nunca falou
ao telefone enquanto estava ao volante ou que jamais fechou cruzamento ou
avançou sinal ou parou na calçada.
A lista de infrações cotidianas só não é maior do que tolerância
social com as repetidas violações às regras básicas do trânsito, aquelas que
deveriam garantir um mínimo de civilidade nas ruas. Ninguém — nem eu — gosta de
respeitar limite de velocidade, de ser obrigado a deixar o carro na garagem
depois de tomar uns três chopes ou de dividir uma garrafa de vinho no jantar.
Nenhum limite — no trânsito ou na vida em geral — é agradável. Como Manuel
Bandeira, sonhamos com a liberdade absoluta, com prazeres infinitos, com uma
existência que seja uma eterna e impune aventura inconsequente. O problema, como
disse o sábio Garrincha, é combinar isso com os russos, ou seja, com as milhões
de outras pessoas que também se sentem no direito de fazer o que lhes dá na
telha.
O direito do outro é que joga de volta para a estante dos desejos
irrealizáveis a Pasárgada de cada um de nós. É desolador admitir, chato mesmo,
mas não seria possível que todos andássemos por aí desrespeitando todos os
sinais, circulando pelos acostamentos das estradas, parando em todas a calçadas
e jogando todas as nossas frustrações e expectativas no pé que pressiona o
acelerador. Até porque, se todos fizéssemos isso, ninguém sairia do lugar,
haveria uma espécie de engarrafamento final, com todos os cruzamentos ocupados,
colisões em cada esquina e atropelamentos em série. Ninguém tem direito de, com
sua irresponsabilidade, colocar em risco a vida de outras pessoas.
A cada dia ensaiamos no trânsito a interminável disputa entre o agradável
impulso da vida e a terrível e castradora civilização, entre o Carnaval e a
Quaresma, entre a descompromissada farra noturna e os deveres do casamento. Mas
a maioria dos motoristas cariocas se acha capaz de encontrar a quadratura do
círculo, um jeito de conciliar o inconciliável, de torcer pelo Flamengo na
arquibancada do Botafogo. A caçamba levantada do caminhão assassino é quase um
carro alegórico que, todos os dias, desfila pelas ruas e revela o egoísmo e a
bestialidade de quem acredita que sinais fechados foram feitos apenas para os
outros.
E-mail: fernando.molica@odia.com.br
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