terça-feira, 20 de março de 2012

Crônica do Dia - Cartão amarelo para os manos




Nada como um carrinho por trás para criar confusão dentro e fora de campo. A julgar pelo desfecho, a falta aconteceu em boa hora. A jogada desleal foi aplicada pelo francês Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, conhecido pelo estilo traiçoeiro. Em inglês, ele disse que o Brasil precisaria de “um pontapé no traseiro” se quisesse sediar direito a Copa do Mundo em 2014. Contundido moralmente, o Brasil peitou a Fifa e exigiu a expulsão de Valcke do gramado.
A turma do deixa-disso entrou na área. Valcke chamou o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, de “infantil”, depois amarelou e pediu desculpas à torcida verde-amarela. O Brasil aceitou e resolveu mexer – se não no time, pelo menos na velocidade e na precisão dos passes. Os manos aparentemente se reconciliaram, mas... vamos mesmo cumprir a tempo todas as obras na infraestrutura e fazer uma boa exibição em 2014?
Valcke expressou em linhas tortas o que temos falado na rua, no botequim, na praia, no trabalho: está difícil acreditar. Nem digo mais na Seleção, mas na agilidade (!!!) do Congresso, que vive adiando a votação da Lei Geral da Copa. Está difícil acreditar nos prazos e excelência dos estádios, nos serviços de hotelaria, transporte, aeroportos. Está difícil acreditar na honestidade no Brasil. Ou somos injustos?
Ao rolar e espernear, o Brasil exagerou. Simulou. A falta de Valcke não foi tão grave assim – embora tenha sido mal-educado e inconveniente. Deveria ser parceiro, e não adversário. Sua chinelada verbal pode ter um mérito: virar o jogo a favor da Copa brasileira, ao mexer com os brios de uma equipe burocrática, comandada pelo sonolento Rebelo.
É importante saber exatamente o que Valcke disse. O francês culpou os tradutores. Alegou que queria apenas sugerir ao Brasil: “Acelere o ritmo”. Sua declaração, literal, foi: “Lamento, mas as coisas não estão funcionando no Brasil. A gente espera mais apoio – há essas discussões infindáveis sobre a Lei Geral da Copa. Deveríamos ter recebido esses documentos assinados em 2007 e estamos em 2012. A gente tem de acelerar, dar um chute no traseiro e realizar esta Copa do Mundo, e é isso o que nós faremos”. O secretário-geral da Fifa deu um carrinho por trás – mas... vamos mesmo conseguir sediar a Copa?
Cinco dias após o chute no bumbum sugerido pelo secretário-geral da Fifa, a comissão especial da Câmara aprovou o projeto de lei da Copa, assegurando a venda de bebida alcoólica nos jogos do Mundial em 2014. O texto ainda precisa ser votado no plenário da Câmara, depois no Senado. Alguém, sóbrio ou bêbado, acha o Congresso brasileiro ágil nas votações que interessam à população e não ao bolso dos congressistas?
Fora o trecho polêmico, o restante da declaração de Valcke me pareceu um alerta bem mais importante. Ele confirmou que não há “plano B” para o país anfitrião da Copa e que o torneio se realizará no Brasil. Mas advertiu que “os torcedores vão sofrer”. Bem, nós temos medo de sofrer também, não?
“Não há hotéis suficientes em todos os Estados. Há, sim, mais que o suficiente em São Paulo e no Rio de Janeiro (ele foi gentil), mas, se pensarmos em Manaus, é preciso mais. Digamos que, em Salvador, a Inglaterra jogue com a Holanda e que haja no estádio 12% de torcedores ingleses e 12% de holandeses. Isso representa cerca de 15 mil torcedores. A cidade é bonita, mas é preciso melhorar o transporte para o estádio e a organização.” Não é verdade? Nosso Ronaldo, do Comitê Organizador Local da Copa, concordou com Valcke: “Ainda tem muita coisa atrasada”.
Como a decisão brasileira foi espalhar os jogos pelo país e não concentrá-los numa região, ao contrário do desejo inicial da Fifa, isso significa, disse Valcke, que, “se um torcedor quiser seguir seu time, terá de voar 8.000 quilômetros”. A Fifa apoiou a decisão, mas “é preciso assegurar que torcedores e jornalistas possam acompanhar sua seleção nacional”. Alguém discorda? Eu não. Na verdade, eu me preocupo muito, e não só com isso.
Eu me preocupo também com o “Grande Irmão”, o Mano, e sua capacidade de treinar uma Seleção que faça jus a nossa tradição e a nossos craques. Na semana passada, vimos o show do Messi. Também vimos o show do Neymar, 20 aninhos de muito talento, em busca de um técnico seguro e competente que saiba armar e inspirar um time campeão. Porque não podemos depender apenas de rompantes individuais de genialidade.
Como carioca, cresci indo ao Maracanã com meus pais aos domingos. É um descalabro imaginar que a Seleção possa nem chegar a jogar no estádio mais mítico do mundo na Copa de 2014 – caso não dispute a final. Vamos chutar, não no traseiro da Fifa, mas no gol, com brilho e decisão. Estamos na torcida. Temos futebol para isso. Acelera, Brasil.


Ruth Aquino
Revista Época  

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