Há duas semanas, em algumas cidades do norte de Portugal, cartazes apregoavam pelos postes: “Chamo Andréia Ferreirinha, tenho 26 anos e sou formada em educação infantil. Estou desempregada e aceito emprego de qualquer coisa. Meu e-mail é...”. Enquanto isso, em Atenas, o funcionário de uma creche encontrava este bilhete: “Não virei mais buscar a Anna porque já não tenho possibilidades de cuidar dela. Por favor, tomem conta da minha filha. Desculpem. A mãe dela”.
São apenas dois exemplos da crise que assola a Europa e que a tornam explicitamente dickensiana – termo derivado do escritor inglês Charles Dickens. Se kafkiano descreve um contexto existencialmente absurdo, dickensiano evoca circunstâncias socialmente dramáticas. Dickens nasceu em 7 de fevereiro de 1812 e, duros ou não, os britânicos comemorarão seu bicentenário como se a coisa não estivesse preta. Em plena recessão e com o euro grogue, o autor de Oliver Twist saúda e pede passagem.
Dickens entendia de crise. O pai dele trabalhava na administração da Marinha – ironicamente, no departamento que fazia a folha de pagamentos –, mas torrava mais do que ganhava, para manter uma fachada de respeitabilidade vitoriana. Resultado: quando Charles tinha 12 anos, seu pai foi preso por dívidas na penitenciária de Marshalsea, com toda a família, menos o futuro escritor. Ainda criança, Dickens teve de dar duro numa fábrica de graxa para sapatos. Com o dinheiro, sustentava os parentes atrás das grades. Mais tarde, a situação melhorou, pois o pai recebeu uma herança inesperada. Mas o menino continuou a bater o ponto na fábrica por mais alguns meses – nunca perdoou sua mãe por isso. O episódio marcou-o para o resto da vida. Contou-o apenas a sua mulher e a seu amigo e biógrafo autorizado, John Foster, que o revelou depois da morte do autor.
Para celebrar, neste ano, o bicentenário de Dickens, o Museu de Londres hospeda, até junho, a maior exposição já montada sobre um escritor. Para os britânicos, a estatura de Dickens só tem paralelo em Shakespeare, como avatar literário da alma nacional. Como o Bardo, o autor de Um conto em duas cidades povoou um verdadeiro parque temático, uma Dickenslândia de personagens memoráveis: Ms. Havisham, a solteirona de mal com o cosmos de Grandes esperanças; Uriah Heep, a reptiliana nêmesis de David Copperfield; o próprio David Copperfield, a decência espontânea e jovial; Oliver Twist, a inocência infantil inquebrantável e incorruptível. Essas e outras figuras indeléveis se entranharam no imaginário britânico e se transfiguraram em arquétipos – por meio do desenho animado, da TV, do teatro e do cinema, conquistaram pacificamente o mundo.
O melhor exemplo da dimensão de Dickens é Um conto de Natal, escrito em menos de seis semanas. De certo modo, essa narrativa criou o Natal moderno – se não exumando o significado de um cristianismo puro, humilde e comunitário, ao menos resgatando uma espiritualidade e convivialidade festivas, de concórdia entre os homens. Sem entronizar o consumismo: quando o ex-pão-duro Scrooge sai de casa regenerado, rumo à casa de seu sobrinho, leva de presente não uma Daslu inteira, porém um singelo peru assado. Quando Dickens morreu, aos 58 anos, conta-se que uma menina, ao ouvir sobre a morte dele, teria perguntado se o Papai Noel também ia morrer.
Estima-se que foram rodados 180 filmes baseados nos livros de Dickens – cada uma das obras foi filmada no mínimo duas vezes. Os intérpretes de suas personagens vão de sir Alec Guiness e Michael Caine ao Tio Patinhas de Walt Disney (diretamente decalcado do sovina Ebenezer Scrooge, de Um conto de Natal), passando pela Miss Piggy dos Muppets. O filme mais antigo ainda sobrevivente remonta a 1901 – outra adaptação de Um conto de Natal. Diretores como David Lean, Carol Reed e Roman Polanski rodaram fitas a partir de obras de Dickens. Mike Newell acaba de filmar mais uma versão de Grandes esperanças, com Ralph Fiennes no papel do imortal protagonista Pip (baseado em Dickens), sempre arrastando a asa pela esquiva e marmórea Stella. Como afirma o curador da exposição, Michael Eaton, “a sofreguidão por Dickens atesta que ele não está morto, que não se reduz a um fóssil entalado em prateleiras empoeiradas que ninguém procura. Pelo contrário, suas obras continuam ressoando através de nossa cultura”.
Dickens repudiou a mulher e a difamou publicamente para juntar-se a uma garota de 18 anos "
Dickens destoa da definição de clássico dada por Italo Calvino: “Um autor que ninguém gosta de ler, mas que todo mundo gostaria de ter lido”. Já é chover no molhado, mas a enésima prova da perenidade de Dickens são duas mastodônticas biografias lançadas agorinha mesmo na Inglaterra: Charles Dickens, a life, de Claire Tomalin, e Becoming Dickens, the invention of a novelist (Tornando-se Dickens, a invenção de um romancista), de Robert Douglas-Fairhurst.
Dickens pontificava sobre a idílica santidade do casamento e dos valores familiares, que, de acordo com a norma vitoriana, domesticavam as pulsões inconvenientes do homem. No entanto, na intimidade era um vulcão sexual, recordando a frase de Freud sobre a boa consciência na psique humana, que “em sua própria casa reina mas não governa”. Dickens casou-se jovem e teve dez filhos com a mulher, Catherine. Esta nem sequer era a rainha do lar. O marido determinava onde, como e com quem a família vivia. Catherine reduzia-se ao papel de poedeira eficaz, eternamente grávida. Como a maioria dos homens de sua época, Dickens nunca ligou para nenhum tipo de controle da natalidade.
Em 1858, já um divo planetário, ele separou-se da mulher – o divórcio era então um anátema, uma lepra social. Dickens continuou a sustentar Catherine enquanto esta viveu. Mas lançou contra ela uma sórdida campanha de difamação, a fim de melhorar sua saída de fininho. Publicou uma declaração alegando que Catherine sofria de “desordem mental” e “era alcoólatra” – tudo mentira. Foi mais longe, proclamando que “ela estava satisfeita por se ver livre dos filhos, e estes por se livrarem dela”. Ainda hoje, o verbete da Wikipédia sobre Dickens papagueia tal ignomínia. Anos depois, Katey, a mais inteligente da prole de Dickens, disse: “Era como se meu pai tivesse surtado”.
Consta que, pouco antes da separação, Dickens teve um caso com sua cunhada Georgina – esta, por sinal, não se fez de rogada e foi morar com ele, oficialmente para “cuidar da casa”. A essa altura, o escritor fez tratamento contra uma doença venérea. Aos 46 anos, Dickens tinha-se apaixonado por uma atriz de 18 anos, Ellen Ternan, que se tornou sua companheira até o fim da vida e deu à luz um filho dele, morto prematuramente. Daí a necessidade de demonizar Catherine, como se a pobre matrona vitoriana, insípida e rechonchuda, fosse uma espécie de Lady Macbeth. Ele pouco escreveu depois daquele episódio, preferindo se aventurar num torvelinho extenuante de leituras públicas de sua obra. Nem precisava: já era uma estrela pop desde a edição em folhetim de As aventuras de Mr. Pickwick, ainda assinado sob o pseudônimo de Boz.
O romance só deslanchou depois da aparição do inesquecível Sam Weller, o impagável (e mal pago) criado do protagonista, uma versão dickensiana de Sancho Pança. Aí, desembestou: em uma semana, pulou de 4 mil para 40 mil exemplares vendidos.
Claro, a obra de Dickens não passou incólume pela crítica. Virginia Woolf e Henry James torceram o nariz para o que condenavam como “excesso de coincidências” e “sentimentalismo”. Dickens apenas dava de ombros. Inverossímil? Mas o pai dele, que fazia folhas de pagamentos para o governo, não tinha sido preso por dívidas e depois solto graças a uma herança mirabolante? Como Shakespeare, Dickens nunca foi um intelectual, alguém para quem as ideias são mais importantes que as pessoas. Foi assim que engendrou peripécias e seres picarescos e justiceiros, cômicos e trágicos, grotescos e sublimes. Como diz a biógrafa Claire Tomalin, “ele viu o mundo com mais acuidade do que nós e reagiu ao que viu com gargalhadas, indignação, horror – e, por vezes, soluços”.
As duas avantajadas biografias simultâneas de Charles Dickens não são uma aberração editorial. Quando se trata do criador dos fantasmas dos Natais passado, presente e futuro – que assombram o personagem Scrooge –, nunca há escassez de mercado. De catedráticos a leitores comuns, passando pelos telespectadores mais alheados, somos todos macacas de auditório.
Revista Época
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