sexta-feira, 2 de março de 2012

Te Contei, não ? - O olhar de Bentinho - Luiz Felipe




A obra machadiana, seja ela qual for, requer do leitor mais do que um simples passar de olhos: requer atenção, requer espírito crítico e, mais do que isso, um saber ler as entrelinhas do texto.
Relatar a construção do olhar sobre Capitu a partir do narrador implícito, das personagens e do narrador propriamente dito, que, na obra Dom Casmurro, nada mais é que a personagem Bento Santiago (ou Dom Casmurro) exige do leitor uma postura menos inocente e mais madura para o romance em questão.
Antes de se iniciar o olhar da personagem Dom Casmurro, é preciso, primeiramente, conhecer a origem de seu nome.
Bento vem de Benedito, que é a s forma portuguesa usual e significa abençoado, bendito, consagrado ao culto por meio de uma cerimônia religiosa, favorecido pela Fortuna, próspero, abastado, que recebe as bênçãos de Deus. E esses sentidos estão presentes na personagem Bento Santiago, abençoado por Deus, já que seu nascimento foi um “milagre”. Sua mãe o entregou a Deus como gratidão pela vida dele. Assim, ele é rico por sua herança e profissão.
O sobrenome Santiago, por sua vez, pode ser dividido em duas partes: Sant-, ou seja, um santo, perfeito, correto em suas atitudes e – iago, o criador da discórdia. Iago, na história de Otelo, de William Shakespeare, é o personagem antagonista, ou seja, Bento Santiago é, ao mesmo tempo, causador e vítima de seus atos. Assim, Bento pode ser colocado como vítima e causador de todo seu tormento, uma vez que é ele quem cria um ciúme comparável àquele despertado no mouro Otelo, na obra shakesperiana.
Já outra personagem importante da trama, Capitu, que é uma redução de Capitolina, tem em seu nome o epíteto da deusa Vênus, que teve uma estátua no Capitólio, uma das sete colinas de Roma, sendo ela a mais baixa, com dois picos separados por uma depressão. Remete também à Lupa Capitolina que alimenta os dois fundadores da cidade: Rômulo e Remo. Significa também triunfo, glória, eminência, esplendor, magnificência.
Dona Glória, mãe de Bentinho e sogra de Capitu, por sua vez, possui o nome da Virgem Maria, ou seja, Maria da Glória, e é considerada santa pelo filho e santíssima, pelo agregado José Dias que possui um nome comum para a época. Não à toa José, do hebraico Yoseph, significa aquele que acrescenta – o que acontece na história – e Dias, um sobrenome mais comum, entre os brasileiros.
Já outra personagem importante, Escobar, possui em seu nome a marca daquele que possui sorte em jogos de azar ou sorteio e troca muito de amante ou namorado. Ele se casa com Sancha, amiga de Capitu e que remete à beata Sancha, de Portugal, que viveu entre 1180 e 1229 e sempre foi devotada à vida religiosa – foi ela que fundou o mosteiro de Celas -, era filha de D. Sancho I e foi beatificada, em 1705, pelo papa Clemente XI.
O olhar de Dom Casmurro
Apresentadas as personagens, passa-se agora a relatar o olhar do narrador: Dom Casmurro, cuja alcunha lhe foi dada por um poeta, segundo relata no livro, em seu primeiro capítulo, em que ele propõe ao leitor que siga sua orientação, ao escrever: “Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo mesmo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo” ( ASSIS. 1978.p.23-24).
Porém, esse artifício por ele usado é enganoso, pois casmurro também significa obstinado, teimoso – o que também caracteriza esse narrador. Basta lembrar que Bento Santiago é um advogado, profissão essa que exige uma argumentação que persuada seu interlocutor.
Barros exemplifica bem essa atitude de Dom Casmurro, ao relatar que:
(…) Bento jamais admitiu que suas suspeitas com relação a Capitu pudessem estar  erradas, seus objetivos, ao escrever o livro, são de incriminar sua esposa e se   autojustificar. De fato, “(…) formado em Direito, Bentinho é um advogado e sua  narrativa uma longa peça judiciária, num processo crime, em que ele funciona como  advogado de acusação”[1].
Esse processo aberto por Bento Santiago contra a esposa, entretanto, não abre espaço para outras vozes, como as de Capitu, Ezequiel, Escobar. Apenas a sua prevalece, como demonstra novamente Barros.
O narrador perde o espaço do domínio e só o reconquista ao escrever o livro, onde sua    voz é   a única que se faz imprimir; ele fala por si e pelos outros personagens; domina o espaço, as pessoas e, consequentemente, sua fala. Na obra, ele pode manter a arrogância de sua classe[2].
Bento Santiago, que só enxergava e ouvia pelos olhos e ouvidos de outros, como aponta Olmi (1999, p.138) era nobre de nascimento e se casou com Capitu, de classe inferior. Sempre vivendo em espaços de dominação, como era sua casa de Matacavalos, onde a figura de D. Gloŕia, sua mãe, prevalecia. Sem voz neste espaço, ele tenta tê-la ao mudar-se para o Alto da Tijuca, outro espaço alto em que poderia demonstrar sua superioridade. Porém, ele já não era mais Bentinho e sim, Bento Santiago e quem narra o romance já é outro: Dom Casmurro, um alguém que perde sua identidade, conforme relata o próprio narrador: “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (ASSIS, 1966, p. 25). Além disso, perde seu espaço de outrora (a casa de Matacavalos) e tenta resgatá-los,seja através do livro ou da reconstituição do lar da infância. É esse narrador que tenta convencer o leitor de sua inocência em relação à morte da mulher que, segundo sua ótica, era uma adúltera.
Assim sendo, um livro se tornará um processo de acusação de Capitu – o que já se inicia de forma sutil, no capítulo 10, em que Bento afirma “Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor…” (ASSIS, 1978, p.36). Por essa afimação torna-se árdua tarefa definir quem seria a quarta pessoa: Sancha ou Ezequiel? As três são bem claras: Capitu, Bento e Escobar.
Mais à frente, no capítulo 73, o ciúme de Bentinho é atiçado pelo aparecimento de um cavaleiro, um dandy, que chama a atenção de Capitu.
Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a passagem de um cavaleiro, um                         dandy,como então dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, rédea na mão esquerda, a                         direita à cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara não me era desconhecida. (…)
Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era a trombeta do juízo final e soou a tempo;      assim faz o Destino, que é seu próprio contrarregra. O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas   voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo  andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo ciúme de que me  mordeu[3].
A visão do dandy pode ser a de Escobar, já que este não lhe era desconhecido, porém o que aqui importa é o que o ciúme de Bento vai se manifestando já na sua adolescência. A troca de olhares entre o cavaleiro e Capitu é suficiente para nele despertar mais uma ponta de ciúme.
Já no capítulo 114, ele se vale de outro argumento para incriminar sua “amiga”: o esquecimento por parte dela do pregão de Matacavalos, quando passou um vendedor de cocadas (cap. 18). Assim diz Bentinho: “Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas  a alguém que tenha temor a Deus que aos homens não lhe importará mentir, uma outra, desde que não meta a alma no purgatório” (ASSIS, 1978, p.180).
E seu processo de acusação vai tomando forma e os fatos se lhe fazem cada vez mais reais: a referência de José Dias a Ezequiel, como o Filho do Homem (cap.116),  os olhos de Capitu fitando Escobar, seu amigo morto no caixão (cap.123),  a fotografia de Escobar e a semelhança de Ezequiel a este (cap. 139), mesmo quando a separação já estava decidida até o apartar-se definitivo (cap.141).
O olhar de Bento sobre Capitu sempre será marcado pela convicção deste em relação à suposta traição. Toda a narrativa de Dom Casmurro terá a marca da tentativa de persuasão do leitor quanto a seu ponto de vista – que parece ser único, uma vez que as demais personagens só serão conhecidas por sua voz.
Portanto, acreditar piamente em Bentinho seria ingenuidade, uma vez que ele é um narrador distanciado temporalmente dos fatos e que, por isso mesmo, pode ter lembranças falhas – o que já leva a uma desconfiança – e que não dá voz a outras personagens, por motivos já mencionados. Narrando de forma parcial, Dom Casmurro deixa o leitor suspenso quanto à credibilidade de suas informações, ainda que queira convencê-lo de sua verdade.
Instância Autoral
O autor implícito nos dá dicas de quem era a Capitu que não está na narração de Bentinho. A suspensão da narrativa para a interferência do narrador implícito pondera entre o que é verdade e o que é criação da imaginação de Bentinho ou Bento Santiago. A instância autoral tem uma visão mais neutra, imparcial e realista.
Assim, a função da instância autoral não é de condenar o narrador, mas de nos mostrar sutilmente que em momentos da narrativa ele pode estar exagerando para dar ênfase a determinados fatos, e assim, persuadir o leitor. Quando há essas inferências são apresentados motivos que talvez o narrador possa ter ou não razão, afinal os personagens não têm voz, a voz é a que o narrador relata. Por este motivo, não conseguimos encontrar uma definição explicita da visão da instância autoral sobre Capitu.
Já no início da narrativa (segundo capítulo), o narrador implícito deixa uma primeira pista sobre esse comportamento talvez pouco confiável, ao colocar no centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero, todos traídos por suas mulheres e Massinisa, quer era uma aliado dos romanos, casado com Sofonisba, uma cartaginesa irmã de Aníbal, educada para odiar Roma. Levado por Cipião a entregar a mulher para ser submetida à vergonha pública em Roma, Massinisa, para poupá-la de tal ultraje, manda-lhe uma taça de veneno, que ela bebe de bom grado.
Senna chama a atenção para tal passagem, ao relatar:
Pergunta-se o leitor avisado, ao ler pela décima vez esse romance inesgotável: como a Desdêmona recorrentemente referida no texto, teria Sofonisba morrido inocente? Desdêmnoa morre vítima de uma mal-entendido e do caráter impetuoso do mouro Otelo, vítima por sua vez de sua própria vulnerabilidade e da maldade gratuita do veneziano Iago. O narrador Dom Casmurro sabe disse e o afirma no capítulo 135. Mas ao inserir aí essa desconhecida Sofonisba, presenteada pelo marido com uma taça de veneno não por tê-lo traído, mas para na trair seus princípios, para preservar a sua integridade, não estaria o autor Machado (a instância autoral) nos prevenindo contra seu narrador?[4]
A citação por parte da instância autoral, não do próprio autor Machado, como foi grifado neste trecho, do caso de Massinisa, deixa, no leitor, uma dúvida: seria o narrador totalmente confiável? Se esse advogado, que é Bento Santiago, tenta persuadir seu narratário com argumentos que incriminem Capitu por seu fracasso, o autor implícito dará mostras de que nem sempre se pode acreditar no que seu narrador diz.
Em outra passagem, no capítulo 33, intitulado “O Penteado”, há outra vez a presença desta instância autoral, que comenta:
“Se isto vos parece enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa… Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs.”[5]
Neste trecho o narrador cita Tétis, a mais bela ninfa da mitologia grega, que encanta Zeus e Poseidon, mas por eles é refutada, uma vez que o filho que dela nascesse seria mais poderoso que  o pai. Essa menção à ninfa serve para enfatizar a beleza e a magia que envolve os cabelos e a cabeça de Capitu.
No mesmo capítulo, a instância autoral cita Des Grieux, protagonista de Manon-Lescaut, cuja personagem-título, Manon, é encantadora e vaidosa e, como sugere Senna, “até certo ponto devassa e totalmente comprometida com o prazer, acabando por levar à perdição o pobre inocente Des Grieux” (SENNA, 2000, p.171). É importante aqui ressaltar que Capitu não é comparado a Manon e, sim, Bento a Des Grieux. Seria essa uma forma de dar veracidade aos argumentos de Dom Casmurro? Eis novamente presente a ambigüidade no romance machadiano.
Outra referência bastante importante é Otelo, o mouro, de Shakespaere, que é enganado por Iago e mata sua mulher, levado pelo ciúme. Dom Casmurro, durante sua narração, tende a colocar-se no lugar do mouro. Porém, como Iago, tenta induzir o leitor a acreditar em sua versão dos fatos. Senna, entretanto, equipara Bentinho a Hamlet, “epítome da hesitação, poço de dúvidas, como Bentinho será ‘então um poço delas’” (SENNA, 2000,p.171). Se é este narrador cheio de dúvidas, como nele confiar?
Um último exemplo que ilustra como a instância autoral deixa essa ambigüidade para o leitor está no capítulo 61, ao citar a vaca de Homero em que o guerreiro Menelau rodeia Pátroclo, companheiro ferido, decidido a matar quem se aproximasse do amigo, assim como faria uma vaca inexperiente ao ver alguém se aproximando. Porém, ao citar a visita que José Dias faz a Bentinho no seminário, o narrador distorce o episódio, ao relatar: “Podia compará-lo aqui à vaca DE Homero; andava e gemia em volta da cria que acabava de parir” (ASSIS, 1966,p.111).
Como bem recorda Senna a respeito de Dom Casmurro, narrador: “Se tem a audácia de usar em sua narrativa uma referência à narrativa matricial do Ocidente para desqualificá-la, num tratamento paródico que beira o sacrilégio intertextual, o que não poderá esse narrador para fazer mais para manipular a recepção de seu leitor?” (SENNA, 2000, p.172)
Assim sendo, o narrador implícito novamente coloca o leitor em dúvida sobre a veracidade dos fatos narrados por Bentinho que, desde o começo, não se assume como responsável pelo seu fracasso pessoal, pois o atribui à traição das duas pessoas por quem mais prezava: Capitu e Escobar. Como relata Saraiva,
(…) a narrativa explicita a ambígua concepção epistemológica que a anima, visto que o olhar é, simultaneamente, engano e revelação. É engano por sua submissão aos efeitos do sensível; é revelação porque através do olhar crítico e arguto, o espectador se conscientiza da inadequação entre verdade e aparência. Entretanto, ao registrar a impossibilidade de traçar limites entre a realidade do mundo diegético e as alucinações do protagonista; a articulação entre observador e objeto observado; a recorrência ao olhar para concretizar objetivos encobertos, a narrativa confirma que todo conhecimento é precário[6].
Se o olhar do protagonista não é totalmente confiável, como parece demonstrar o narrador implícito são justamente a ambiguidade e a dubiedade a marca da narrativa, pois não se pode delimitar, em Dom Casmurro, de forma precisa, quem são observador e objeto observado, o que é real e o que são alucinações do protagonista – o que torna a obra ainda mais fascinante.

Um comentário:

  1. O olhar de Bentinho - Luiz Felipe


    O texto diz que que a obra machadiana requer do leitor mais do que um simples passar de olhos, porque a história de Dom Casmurro pode ser interpretada de diversas maneiras pelos leitores, devido a incerteza do que realmente pode ter acontecido, afinal, a obra se baseia no ponto de vista de um único homem, o póprio Bentinho.
    Ao meu ponto de vista, ao escrever o livro, Bento Santiago teve somente um propósito, o de transmitir ao leitor sua imagem de vítima. Primeiro de sua mãe que lhe arrancava a juventude fazendo-o estudar num seminário para ser padre, algo com o que ele não concordava muito. E depois veio a ser vítima da traição de sua esposa e de seu melhor amigo, repito que este era apenas o ponto de vista dele, nada que pudesse ser provado em algum momento.
    Quando sua mãe morreu nos braços de Capitu, finalmente Bentinho se sentia livre para tomar suas decisões, sendo assim não precisava mais virar padre, e podia levar sua vida da maneira que achasse melhor, e assim fez.
    Logo depois se casou com sua amada com quem teve um filho, ao qual deram o nome de Ezequiel. Mas ainda antes do nascimento de seu filho, Escobar e Bento ainda mantinham um grande laço de amizade, visitavam um ao outro sempre que podiam, até que Bentinho chegou a suspeitar da traição de Capitu e Escobar, que a visitava mesmo em sua ausência. Apos a morte de Escobar, Bentinho sentia que Capitu chorava demais diante do corpo no caixão para quem estava no velório do amigo do mariodo apenas. Depois vieram as comparações de seu filho com Escobar, e mais suspeitas, e com elas vinha raiva do próprio filho, por pensar ser na verdade o filho de outro. Chegou a pensar em envenenar Ezequiel.
    Por fim Bento Santiago exilou a esposa e o filho para fora so país, e disse a todos que Capitu havia acompanhado Ezequias até a Europa por meio dos estudos do filho.
    Capitu ficou por lá até a morte e Ezequias continuou vendo o pai uma vez ao ano quando Bentinho o visitava.
    Por isso o que entendi da obra é que Bentinho era um homem perturbado, devido ao ciume fora de controle que tinha de sua amada Capitu, e sua insegurança, devido a isso ele usava seu talendo de advogado para passar ao leitor sua imagem de inocente da história ao decorrer do livro, e se o leitor não tiver uma certa maturidade, talvez não perceba o quão doentio era Bento Santiago.
    Júlia Mora - 902

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