sexta-feira, 16 de março de 2012

Você já leu? Ainda não? - Imperador para gringo ver


Em outubro do ano passado, quando o livro “O império é você” deu ao espanhol Javier Moro os 600 mil do prêmio Planeta — que, no quesito financeiro, só perde mesmo para o Nobel de Literatura —, ninguém na Espanha (ou no mundo) parou para avaliar a qualidade das informações históricas que o autor madrilenho havia compilado durante três anos e publicado ao longo de quase 500 páginas sobre a figura de Dom Pedro I. Moro tinha no currículo um badalado perfil histórico da indiana Sonia Gandhi (“O sari vermelho”), além de um sobre o ambientalista brasileiro Chico Mendes (“Caminhos de liberdade”), e sabia que os espanhóis nada sabiam sobre as histórias portuguesa e brasileira. Assim, o relato sobre o sujeito epilético, hiperativo e ultranamorador que, com um grito, às margens de um rio, conseguiu separar o Brasil de Portugal, virou hit literário e vendeu, em menos de um ano, mais de 400 mil exemplares.

“O império é você”, da editora Planeta do Brasil, chega hoje às livrarias de todo o país e, ao contrário do que aconteceu em sua terra natal, já provoca alvoroço entre aqueles que se dedicam ao estudo da História. Com passagem marcada para o dia 18 e uma agenda de promoção que o levará a seis cidades, Moro deve se preparar para encontrar um clima não tão ameno por aqui.

— Ao que tudo indica, trata-se de um grande copidesque dos livros que já existem sobre Dom Pedro I — diz o jornalista Laurentino Gomes, autor de “1808” e “1822”, que, a convite do GLOBO, aceitou comentar algumas informações extraídas da obra em questão. — E ainda há um agravante: o autor adiciona à história estereótipos e lugares-comuns que nós, brasileiros, tanto nos empenhamos em evitar. Tudo me leva a crer que esse livro é um exemplo de neocolonialismo cultural da Espanha com o Brasil.

Em entrevista por telefone de Madri, Moro, que se diz fã de Gomes, conta que passou horas na Biblioteca Nacional, no Rio, vasculhando manuscritos, mas reconhece que a maior parte de sua pesquisa se baseia nos cerca de 40 livros sobre Dom Pedro I que comprou em livrarias e sebos de Brasil, Portugal e França. Entre eles, estão os três tomos de “A vida de Dom Pedro I”, de Otávio Tarquínio de Sousa, considerada a obra mais completa sobre o imperador, e “O coração do rei”, da jornalista Iza Salles, o último a ser publicado sobre o personagem.

— Há falhas seríssimas nesse livro — dispara Iza. — Quando escrevi meu romance, eu me permiti criar uma cena que nunca, nunca existiu: no dia em que Antônio, o primogênito de Dom João VI, morre, uma ama de leite de Dom Pedro I olha para ele fixamente e diz que ele será o próximo rei. Javier reconta isso como se fosse um fato histórico, sem alertar o leitor sobre a origem da informação.

Segundo a autora, outra falha perigosa está no retrato que Moro faz sobre o caso de amor entre Dom Pedro I e a bailarina francesa Noémie Thierry, o primeiro amor do então príncipe:

— Há pouquíssimos documentos sobre esse relacionamento, e Moro diz que Pedro e Noémie se casaram seguindo ritos africanos e que foram morar juntos num casebre no pé do Corcovado, algo totalmente impensável para um sucessor do trono, nascido em uma família de carolas.

Confrontado com as críticas, Moro rebate de forma instantânea:

— Eu não inventei personagens nem cenas. Não relatei nenhuma situação que não tenha existido realmente. É óbvio que os diálogos que incluí no livro são meus, porque era impossível reconstitui-los historicamente e eu queria contar por dentro a história que os historiadores contam por fora, mas a dose de ficção para por aí. Insisto: “O império é você” não é um romance histórico, é a história romanceada.

Mas, da lista de críticas, que ainda inclui o fato de o espanhol afirmar que Dom Pedro I tocava marimba e não instrumentos clássicos, como indicam os historiadores, Moro aceita uma que diz respeito à primeira frase de seu livro. Logo na introdução, ele crava: “O almirante português Pedro Álvares Cabral chegou à costa americana por acaso”.

Eduardo Bueno, autor de “A viagem do descobrimento”, diz não ter a menor dúvida de que os portugueses já sabiam da existência de terra na margem oeste do Atlântico.

— As constantes alterações nos tratados (Bula Inter Coetera e Tratado de Tordesilhas) e as muito prováveis expedições “secretas” indicam isso. O autor deveria, no mínimo, ter deixado essa dúvida no ar.

Sobre o assunto, Moro reconhece que não fez uma pesquisa vasta sobre a viagem de Cabral:

— Falo que ele chegou ao Brasil por conta de uma calmaria no mar, por acaso, porque é a versão mais comum na Europa. Deveria ter tirado essa introdução da versão brasileira. Vai dar polêmica…

Por e-mail, Laurentino Gomes pede a palavra mais uma vez para falar sobre o risco de livros como “O império é você” induzirem os leitores a erros de entendimento sobre acontecimentos do passado:

— Isso acontece especialmente num país como o Brasil, onde infelizmente se estuda e se sabe pouco a respeito de História. Cabe ao autor de um livro assim ser rigoroso na pesquisa da documentação. É preciso também que autores e editores tenham sempre uma atitude de transferência com os leitores, alertando-os, ao longo da obra, sobre o que é ficção e o que é pesquisa histórica comprovada. É um erro deixar que os leitores façam sozinhos o julgamento e cheguem às suas próprias conclusões a respeito do passado.

Na obra de Javier Moro, não há nenhuma nota de pé de página.

O historiador José Murilo de Carvalho lembra, ironicamente, que esse é o tipo de risco que se corre em tempos em que “basta acessar o Google para se encontrar a verdade”.

“ Eu não inventei personagens nem cenas. Não relatei nenhuma situação que não tenha existido realmente. É óbvio que os diálogos que incluí no livro são meus Javier Moro, autor de “O império é você”

“ Trata-se de um grande copidesque dos livros que já existem sobre Dom Pedro I. E ainda há um agravante: o autor adiciona à história estereótipos e lugares-comuns Laurentino Gomes, autor de “1808” e “1822”

Jornal O Globo

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