Laís Azevedo
Findei hoje a leitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Como boa fã da literatura naturalista, digo-lhes que relutei em ler o escritor fluminense, posto que ele não poupava críticas aos discípulos de Émile Zola.
Minha atitude foi simplesmente: estúpida. Dom Casmurro, com certeza, merece estar na lista dos melhores romances do século XIX, quiçá na lista dos melhores romances de todos os tempos.
Não me deterei a Machado de Assis, especificamente; prefiro, lado outro, concentrar-me, mormente, na história de Bento. Porém, aconselho aos visitantes, como um complemento, se acharem necessário, os outros textos, postados aqui no site site, que trabalham melhor as escolhas estéticas do autor, bem como às influências literárias e não-literárias do mesmo.
Dito isso, vamos a Dom Casmurro.
O enredo
A história de Dom Casmurro, contada através das memórias de Bento, que além de ser um dos protagonistas do livro, é também o narrador, traz a lume seus amores, ciúmes e sua desconfiança de ter sido traído por Capitu — seu grande amor.
Desse modo, a maior parte do livro centra-se na adolescência do narrador. Ele nos conta como conheceu a sua única paixão na Rua de Matacavalos. Capitu, vizinha de Bento, impressiona o jovem rapaz com sua faceirice e seus traços belos.
Porém, para o desespero de Bento, a mãe que, outrora, havia perdido um filho, prometeu que se ele vingasse, ela lho faria abraçar a carreira do sacerdócio.
A promessa era, num primeiro momento, inquebrável. Muito devota, D. Glória não pensa em mudar os rumos profissionais do filho. Entrementes a isso, Capitu e Bento armam estratégias para tentar mudar a situação. Pensam em várias maneiras, recorrem a um dos agregados da família de Bento, José Dias.
Esse um personagem, pedante, que chegara à fazenda do pai de Bento dizendo-se médico e, devido a cura d’alguns escravos, acabou por alojar-se na residência, mesmo depois da morte do marido de D. Glória e da mudança da família para o Rio de Janeiro.
O sonho de Dias é o de viajar para Europa; assim, acha uma boa maneira de tentar a viagem, uma vez que se Bento desistisse do seminário, o rapaz poderia estudar no velho-continente. A ajuda do agregado é, no mínimo, inusitada, posto que ele era um dos que avisavam à D. Glória a queda de Bento pela filha do vizinho, o Pádua.
Apesar de todas as tentativas, Bento acaba prosseguindo para o Seminário. Contudo, a ideia era de ficar apena por lá pouco tempo. E, isso de facto, ocorre, visto que graças a ideia de Escobar, o seu melhor amigo no seminário, D. Glória escolhe outro rapaz, um órfão, para realizar a promessa.
Liberado da castradora batina, Bento torna-se advogado e, depois, casa-se com Capitu.
Escobar, que também não tinha vocação para os misteres clericais, torna-se um negociante e amigo íntimo de Bento, chegando a casar com Sancha, uma das melhores amigas de Capitu, conhecida durante os anos de colégio da moça.
A proximidade entre o casal aumenta, fortemente. Escobar e a esposa são agraciados com uma filha. E, Capitu e Bento, após dois anos de matrimônio, não conseguiam um fruto. Porém, um dado dia, a esposa de Bento fica grávida, e um varão nasce, o nome? Ezequiel, o mesmo de Escobar.
A relação entre os casais continua, após o nascimento do menino, frequentes.
Entretanto, a medida em que Ezequiel cresce, Bento começa a achar que a aparência do filho assemelha-se, sobremaneira, à fisionomia no amigo Escobar. A ciúme, que ja podia ser observado dantes em Bento, aumenta consideravelmente.
Um dado dia, Escobar, que se gabava ser um grande nadador, morre afogado. Entretanto, a imagem do suposto amante de Capitu, jamais sairia da mente de Bento. A figura de Ezequiel, que cada vez mais ia ganhando as características físicas e os modos de agir do falecido amigo, fazem que Dom Casmurro desespere-se.
Num findar da narrativa, ele não consegue esconder a insatisfação com a situação. Por isso, manda o Ezequiel para um colégio interno, para evitar a presença do menino durante a semana. Bento, corroído pelo ciúme, elabora, até mesmo, o suicídio e chega a flertar com uma tentativa de ceifar a vida do filho.
As relações entre ele e Capitu deterioram-se. Ela muda para Europa e para o Brasil, não volta mais, morre na Suíça. Bento, no final da narrativa, encontra o filho novamente, porém uma febre tifoide ceifa a vida do rapaz, que, segundo o narrador, assemelhava-se, ainda mais, ao falecido Escobar.
A genialidade de Machado
Dom Casmurro, à mesma maneira de Memórias Póstumas de Brás Cubas, conta com uma linguagem rápida, sem adornos desnecessários à Coelho Neto.
Machado parece ter escolhido a dedo o vocabulário que empregou no romance. Não há frases desperdiçadas, todas, incrivelmente bem pensadas, levam o leitor a desfrutar uma leitura que, em momento algum, caia na monotonia. Somando-se à essa línguagem ligeira, o escritor fluminense apresenta capítulos curtos; sendo uns, por exemplo, compostos por apenas um parágrafo.
Falando nessa estruturação de capítulos, acho os iniciais magistrais.
O narrador, após comentar o porquê de ter recebido a alcunha de Dom Casmurro, dedica às personagens mais próximas breves capítulos, para depois situá-las no palco do mundo, que é descrito com uma teoria.
Um músico, amigo de Bento, descreve a terra como uma Ópera criado por Deus, o poeta, e pelo Diabo, o músico. A concepção do mundo, assaz pessimista, assemelha-se aos pensamentos do filósofo Arthur Schopenhauer e a visão dalgumas das personagens shakesperianas.
A ironia, marca de Machado de Assis, aparece em Dom Casmurro, constantemente. Em alguns capítulos, o narrador, para faltar ao seminário, resolve ir ao enterro de Manduca, um vizinho com que ele travou relações durante três meses.
Os dois discutiam, fortemente, sobre a guerra da Crimeia através de cartas. Bento toma conhecimento da morte de Manduca, quando esta voltando da casa de Sancha, local em que Capitu prestava à amiga doente os misteres de enfermeira. Indignado por ter sido perturbado com uma morte tão feliz, ele é obrigado, moralmente, a entrar na casa do defunto, que estava sendo velado.
A morte do “amigo” lhe cai bem, dado que ele, com a desculpa de ir ao enterro poderia faltar ao seminário e, assim, ver Capitu. No entanto, a mão não deixa que Bento se ausente das aulas, uma vez que ele mal conhecia o falecido que morrera devido à lepra. Num trecho memorável, o narrador, com uma ironia sem igual, ao rebater um dos argumentos do finado, que dizia que os russos não invadiriam Constantinopla, aduz que:
“Os russos não hão de entrar em Constantinopla”.
Não entraram, efetivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas a predição será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema difícil. O próprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou três anos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a história, não se faz brincando.”
Mas Capitu traiu?
Apesar de boa parte dos críticos evitarem esse assunto que, até hoje, mexe com a cabeça dos leitores de Dom Casmurro, penso que ela não pode ser ignorada. A possível infidelidade da esposa de Bento, realmente, prende a atenção do leitor. Entretanto, um leitor não-ingênuo notará que Machado trabalhou, a todo momento, com a ambiguidade.
Em outras palavras, por mais que tentem provar que Capitu foi adúltera ou não, uma resposta definitiva sobre isso é impossível. Mostro-lhes a razão:
- Um narrador em primeira pessoa: Sendo a obra narrada em primeira pessoa, Bento elimina quaisquer possibilidade duma possível defesa de Capitu, posto que ele não lhe dá a voz.
Assim, o que o leitor tem em mãos é, unicamente, a visão dum homem velho que narra suas histórias e chega a comentar, em certa parte do livro, que sua memória, devido ao tempo que os fatos ocorreram, é falha. O discurso de Dom Casmurro é contraditório, pois ao mesmo tempo que ele alega essa deficiência mnemônica, ele diz para o leitor que está falando a verdade.
- Os olhos de Capitu: Bento, para convencer o leitor que, de facto, fora vítima duma traição, descreve e insiste, desde o início da narrativa, o olhar dissimulado e oblíquo de Capitu, que segundo José Dias assemelham-se a duma cigana.
Ora, sabemos, que os ciganos, no imaginário popular, são vistos como pessoas ardilosas, traiçoeiras. A todo momento, Bento repete isso para o leitor e narra fatos que a jovem, ao encontrar-se em situações embaraçosas, recorre à dissimulação.
- A mania de Ezequiel de imitar as pessoas: Em alguns capítulos, Bento narra que Ezequiel adquire a mania de imitar todos na casa. Esse argumento de Bento é um dos quais ele lança mão para provar que o rapaz não era seu filho. Entretanto, os outros familiares não compartilham da mesma opinião, posto que o menino imita todos e não-somente Escobar.
- Escobar, à noite, em casa de Bento: Alegando dores de cabeça, numa certa noite, Capitu não acompanha o marido e a sogra ao teatro.
Por obra do destino, Dom Casmurro retorna mais cedo para casa e surpreende Escobar em sua casa. Segundo Bento, a esposa não age naturalmente ao ser vista com o amigo, e esse desculpa-se dizendo que precisava tratar duns negócios.
Dirá o leitor que acredita na traição de Capitu, que esta é uma boa prova. Porém, amigos, lembrai da mente ciumenta e doentia de Bento que poderia estar muito bem vendo “chifres em cabeça de cavalos”.
O agregado muda de opinião: O olhar dissimulado de Capitu, depois dum tempo, é esquecido por José Dias, que não repete mais esses adjetivos dados a moça.
A atitude de Dias demonstra bem a ambiguidade, o próprio Bento sente-se também em dúvida devido a essa mudança de opinião, em certas partes da narrativa. Porém, o narrador não deixa de acentuar o os olhos de ressaca da esposa, que figurativamente, pode ser lido, como inconstantes, tais como as águas do mar.
Poder-se-ia dizer também que: as dúvidas de Bento são como a ressaca que ora avançam, ora recuam; em outras palavras, imitam o movimento das ondas.
A aparência de Ezequiel: Será mesmo que ele era tão parecido com Escobar?
Bento diz que sua mãe não gostava do Neto. Porém, no final da narrativa, ele não tem coragem de levar, o filho, que havia regressado da Europa, à casa de Justina, a prima viúva. Dom Casmurro temia que a mulher, que estava prestes a morrer, confirmasse suas impressões.
Eis aí, de novo, Dom Casmurro não cedendo voz a uma personagem, que apesar de fofoqueira e faladeira, poderia muito bom não coadunar com a ideia do primo.
Eu poderia, debruçando-me mais sobre o texto, trazer à tona essa ambiguidade do pensamento de Dom Casmurro, que é constante na narração de suas memórias.
Por isso, volto a frisar: a graça do romance está, justamente, nesse fator ambiguo. O leitor, devido as técnicas narrativas que Machado de Assis, sabiamente empregou na construção da narrativa, jamais poderá afirmar com exatidão o adultério de Capitu.
Dom Casmurro é leitura crucial para os amantes das letras!
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