terça-feira, 20 de março de 2012

Te Contei, não ? - O mundo descobre Dom Pedro I




Uma nação se faz de heróis e vilões, fundadores e traidores. Dom Pedro I (1798-1834) encarna tudo isso ao mesmo tempo. Tanto historiadores como contadores de histórias brasileiros se encantam há gerações com suas façanhas, incoerências e deslizes. Agora um estrangeiro entrou na festa. O romance O império é você (Planeta, 494 páginas, R$ 49,90), do espanhol Javier Moro, conta mais uma vez a saga do imperador. Desta vez, para o mundo. A obra virou best-seller na Espanha desde que foi lançada, em novembro. Vendeu 400 mil exemplares em duas semanas, ganhou o Prêmio Planeta, um dos maiores de língua espanhola, e está sendo traduzida para 17 idiomas. O livro sai no Brasil numa edição de 50 mil exemplares. “Quis mostrar a humanidade de Pedro”, diz Moro. “Ele é romântico, comovente e revoltante.” Segundo o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro 1822, um dos sucessos de 2010, Dom Pedro se presta à narrativa romanesca. “É uma figura multiuso. A história dele dá a impressão de se contar sozinha”, diz. 
Dom Pedro de Orleans e Bragança foi um homem público contraditório. Declarou a independência do Brasil em 1822 para, em seguida, partir rumo à Europa para lutar e instaurar a monarquia constitucional em Portugal. Foi liberal e romântico quando príncipe, mas, como imperador do Brasil, rasgou a Constituição que ajudou a formular. Anos depois, foi coroado Dom Pedro IV, o primeiro monarca constitucional português. Morreu tal qual um poeta, de tuberculose, no Palácio de Queluz, no quarto Dom Quixote – decorado com afrescos que representam o personagem de Cervantes. Nesse cômodo, ele fora concebido e nascera. A vida privada de Dom Pedro foi tempestuosa. Casou-se com a princesa austríaca Leopoldina, com quem teve quatro filhos e a quem atribuiu funções executivas. Manteve também no palácio várias amantes, a mais célebre Domitila, a quem conferiu o título de Marquesa de Santos. Reconheceu mais de 50 filhos. Era carinhoso com as mulheres, mas agrediu Leopoldina, causando-lhe um aborto e a morte, em 1826, aos 29 anos. Tido como sensível, compunha missas e hinos, embora agisse com crueldade ao ser contrariado. O fato de sofrer de epilepsia pode explicar as mudanças de humor. Seus hábitos de higiene incluíam defecar em público, durante paradas militares, enquanto os soldados se mantinham em continência.
A interpretação de sua imagem e reputação acompanha as turbulências da história do Brasil. Cada período tratou Dom Pedro a seu modo e segundo suas necessidades (leia o quadro abaixo). Depois de ser sido ignorado durante o segundo reinado (1840-1889), de seu filho, Dom Pedro II, o primeiro imperador tornou-se o saco de pancadas dos ideólogos republicanos. “Para a construção simbólica da República, Dom Pedro I funcionava como o maior vilão monárquico”, diz Laurentino Gomes. “Os romancistas embarcaram na onda, e até hoje a gente assiste a resquícios da estigmatização do personagem.” 
Nos anos 1970, ápice do regime militar, o imperador foi promovido a soldado exemplar. Para comemorar o Sesquicentenário da Independência do Brasil, o presidente militar Emílio Garrastazu Médici adotou o imperador como santo de caserna. O ator Tarcísio Meira incorporou o Dom Pedro galante, que dava o Grito do Ipiranga montado num alazão – e não, como informam os historiadores, abotoando as calças, surpreendido por emissários quando se aliviava no Riacho Ipiranga. Com a democracia plena, a partir de 1989, ele voltou a ser alvo de sarcasmo, tanto da parte dos intelectuais marxistas como dos romancistas, dramaturgos e cineastas. Surgiu um Dom Pedro escrachado, luxurioso, que encarnava a desordem econômica e institucional que o país viveu na virada dos anos 1980 para os 1990. “Só neste século ele passou a ser compreendido como ser humano e precursor do liberalismo”, diz Iza Salles, autora do romance O coração do rei, de 2008. A historiadora Mary Del Priore afirma que o público exige informações reais em vez de mitos. “Dom Pedro I sofreu uma derrota simbólica, foi um monarca à deriva e não fundou o Brasil sozinho”, diz Mary. Ela publicará no fim de abril o livro Carne e sangue (Rocco), com documentos inéditos sobre o triângulo Pedro-Leopoldina-Domitila. “Não podemos é continuar a acreditar em panteões de mitos, que não passam de construções da elite de um período histórico.”
Mitos são espelhos no qual uma nação se mira e se reconhece. Dom Pedro começa a ficar visível também para o mundo todo com o romance O império é você. Houve tentativas anteriores de internacionalizá-lo. Em 1941, o filme argentino Embrujo (Enfeitiçado) mostrava os casos amorosos do soberano brasileiro. No filme, o músico cubano Bola de Nieve (morto em 1971) fazia papel de escravo. Só agora, com o best-seller, o personagem ganhou o grande público. “Talvez os brasileiros estejam próximos demais do personagem para lhe dar a devida dimensão – e tenham perdido tempo retratando-o como pícaro”, diz Javier Moro, de 56 anos, antropólogo de formação e autor de outros sucessos, como Paixão Índia, 2006, e O sari vermelho, de 2009. Ele teve a ideia do livro nas viagens que fez à Amazônia nos anos 1990, para escrever um roteiro para o cineasta Ridley Scott sobre o Brasil. O filme não foi adiante, mas ficou a paixão pelo país e por seu fundador. “Dom Pedro é único porque foi fundamental no velho e no novo mundo”, afirma. “É o responsável por o Brasil ser hoje uma nação unida e poderosa e serviu de exemplo a outras monarquias europeias, pelos avanços liberais que fez em Portugal.”
Moro levou três anos pesquisando no Brasil e em Portugal para finalizar seu livro. Concluiu que Dom Pedro é um personagem incômodo tanto para os portugueses como para os brasileiros. “Os portugueses o odeiam porque jogou fora a colônia mais importante do império. Os brasileiros não o perdoam por tê-los abandonado”, diz. Mesmo com uma pesquisa extensa, ele tem desagradado a alguns estudiosos pelas liberdades que tomou no trato com a figura histórica famosa. “Só criei alguns diálogos e cenas”, diz. “Mas todos os personagens são reais.” Moro se fascinou tanto pelo exotismo do cenário que, no romance, o jovem Pedro se junta a escravos para tocar maraca – chocalho de origem maia – e foge para morar num barraco no morro com a bailarina francesa Noémie. É um pequeno delírio que dá ao capítulo um tom de enredo de escola de samba. O imperador se casa com Noémie numa cerimônia de candomblé à beira-mar, organizada pelo amigo Chalaça. “São episódios absurdos”, diz Iza Salles. “Dom Pedro vivia numa sociedade católica. Jamais se submeteria a um ritual afro.”
Passagens como essa podem provocar risadas. Além disso, a tradução prejudica a leitura, com espanholismos e imprecisões, como grafar o Largo do Rocio com “Rócio” ou chamar de “San Carlos” o teatro São Carlos de Lisboa. 
Nesta semana, Moro chega ao Brasil para uma turnê, que começa em São Paulo. “Vou enfurecer muita gente, mas quero dialogar”, afirma. Mesmo com suas invencionices, ele apresenta uma versão empolgante de Dom Pedro. O fundador da breve (e um tanto absurda) monarquia escravocrata brasileira ressurge como um herói trágico, capaz de pecados hediondos e gestos de martírio. “Dom Pedro é uma mistura de Don Juan e Dom Quixote”, diz Moro. “Ele foi escravo do sexo, mas isso não não fez dele menos idealista. Nasceu e morreu sob a imagem do Cavaleiro da Triste Figura.”

Luis Antonio Giron
Revista Época

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