domingo, 18 de março de 2012

Te Contei, não ? - Contos Machadianos - O Enfermeiro



Um conto machadiano muito intrigante é esse O Enfermeiro, de Várias Histórias, 1896. Não é tão badalado quanto outros contos do autor, mas está no nível dos melhores. 
É a história de um enfermeiro, Procópio José Gomes Valongo, contratado para cuidar do coronel Felisberto, mediante um bom salário, tudo nos idos de 1860. Esse Felisberto é uma pessoa má e de má fama; antes de Procópio outros enfermeiros tentaram aguentar-se nesse cargo, mas foi impossível. O fim do conto é interessantíssimo, mas não vou revelá-lo aqui, tentando convencê-lo, leitor deste artigo, a ler essa joia machadiana na íntegra. 

 O livro, O Enfermeiro do autor Machado de Assis, ganhou no ano de 2010 pela editora Escala Educacional, uma roupagem totalmente nova. Uma versão HQ através da Coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos, que tem em suas fileiras outras publicações de peso como: A cartomante; A causa Secreta; Memórias Póstumas de Brás Cubas; O Alienista e O Triste Fim de Policarpo Quaresma entre outros. 
A publicação tem 48 páginas com desenho e adaptação de Francisco Vilachã, responsável por outras adaptações de outros títulos da coleção que também contam com Sebastião Seabra, Jô Fevereiro e Bira Dantas. A iniciativa é uma forma de levar cultura para a juventude de uma forma divertida, com obras extraordinárias da nossa literatura e os gibis. Não menos importantes para qualquer maneira de iniciação no mundo da leitura. 
Onde encontar: www.escala.com.br/


 O ENFERMEIRO E SEUS IRMÃOS INTERTEXTUAIS 

Quem for leitor atento dos contos e da obra machadiana perceberá que Felisberto, o coronel, tem um irmão intertextual em outro conto, e que o enfermeiro Procópio apresenta reação semelhante à vista em uma curiosa passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas. 
A trama é narrada pelo enfermeiro, deixando-a registrada para um inidentificável leitor, interessado em divulgar a história em forma de livro. Num dado momento, o narrador/enfermeiro, descrevendo o coronel, diz: 
"Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros." (p.81 do livro Contos Escolhidos, Ed. Martin Claret, 2006) 
Características semelhantes encontramos noutro personagem dum conto também de Várias Histórias, de 1896, A Causa Secreta, do qual futuramente falaremos nesta coluna. Um dos protagonistas desse conto apresenta personalidade muito parecida com a do coronel Felisberto. Trata-se de Fortunato Gomes da Silveira: 
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem." (p. 67, idem) 
Fortunato tinha perto de 40 anos quando sua característica foi finalmente desvendada pelo médico Garcia, e Felisberto tinha sessenta anos quando da convivência com seu enfermeiro. Ambos carregavam em si a mesma monstruosidade. Todavia, em Felisberto essa maldade foi logo declarada; em Fortunato, ela precisou ser descoberta, pois ele era um capitalista perfeitamente enquadrado na sociedade carioca, fora de qualquer suspeita. O enfoque de A Causa Secreta é a contenda entre aparência versus essência. Fortunato aparentava normalidade pessoal e social, e, contudo, era essencialmente monstruoso; o coronel Felisberto fazia questão de extravasar sua anormalidade social e pessoal. 

 O ENFERMEIRO E O ALMOCREVE 

O Almocreve é um dos instigantes capítulos do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. É o momento em que Brás Cubas é derrubado e atirado do jumento em que ia montado. Brás Cubas ficou com o pé preso no estribo, e o bicho começou a correr, mas foi contido por um almocreve que, por providência, ali estava naquele momento. Brás Cubas reconhece que o ato do almocreve não só foi corajoso como também lhe salvou a vida. 
Aí vem a decisão tomada no clamor do acontecimento, com a adrenalina nas alturas: das cinco moedas de ouro que ele trazia consigo daria três para o almocreve. E começou a se recompor e a se limpar. Durante esse ato, adrenalina baixando e tudo voltando ao normal, o cérebro cogita se a gratificação não seria demasiada. E o cérebro, dado o início à reconsideração, ganhou impulso e quando finalmente Brás Cubas se despede do almocreve dálhe de fato um cruzado de prata. E se arrepende: disse que devia mesmo era ter dado uns cobres que levava no bolso do colete. 
Decisão semelhante ocorre com o enfermeiro Procópio quando recebe a notícia de que era o único herdeiro da fortuna do coronel Felisberto. Ainda com dor de consciência pela incerteza de suas ações, decide que doará toda a fortuna: 
"Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazerme esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma coisa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas." (p. 85) 
O tempo, ah! o tempo!, sempre se encarrega de refrear e retroceder o outrora incontrolável impulso que produz um forte rasgo de benemerência. Meses depois, o narrador/enfermeiro confessa, após converter a fortuna em mais fortuna: 
"Eram então passados muitos meses, e a ideia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação." (p. 86) 
Nada de grandes rasgos, poucas esmolas e mínimos donativos pios: distribuiu alguma coisinha e guardou para si o grosso, aumentando a fortuna. O impulso inicial de doação foi uma reação irmã da de Brás Cubas em relação ao almocreve. 

 Dando Bandeira Pernambucano nascido em 19 de abril de 1886, Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, escreveu seus primeiros versos livres no ano de 1912 e publicou seu primeiro livro em 1917, A Cinza das Horas em uma edição de 200 exemplares que foram custeadas com seus próprios recursos. Porém, foi com a publicação de sua segunda obra, Carnaval, que o autor despertou a curiosidade dos modernistas paulistas. 
Mesmo sendo de uma família de advogados, o escritor optou por fazer letras onde se bacharelou. Iniciou o curso de arquitetura, na Escola Politécnica de São Paulo. 
Entretanto, interrompeu o curso no ano de 1904 devido à tuberculose. A quebra de sua rotina de vida devido à manifestação da doença o faz dedicar-se a literatura. 
Considerado parte da geração da literatura moderna brasileira, teve o seu poema, Os Sapos, como abertura na Semana de Arte Moderna de 1922, e ao lado de escritores como João Cabral de Melo Neto e Paulo Freire é considerado um dos ícones literários de Pernambuco. 
Outros livros importantes de sua biografia: Libertinagem (1930), Estrela da Manhã (1936), Opus 10 (1952) e Estrela da Tarde (1963). Pertenceu à Academia Brasileira de Letras (eleito em 1940). Faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968.

 O QUE NÃO TEM REMÉDIO... 

Esclareça-se, todavia, que a aceitação dessa herança bendita ocorre depois de fluxos e fluxos de pensamento do personagem/ narrador, tentando convencer-se de que não cometera ato questionável. O fato é que, sabedor de que era o único herdeiro do coronel, o enfermeiro busca no seu consciente a afirmação de que fora merecedor e, ato contínuo, se vê até defendendo as ações doidivanas do coronel alegando que eram resultantes da doença que acometia esse Felisberto: "Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me coisas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...". 
Por fim, cede à herança e não se contém com a constatação do seu merecimento por ela, numa sequência metafórica inquestionável: "Os velhos lembravam-me das crueldades dele, em menino. E um prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia ficando". 
Pelas entrelinhas, percebe-se, no entanto, que ele a recebia e a recebeu de braços abertos. 

 MAIS INTERTEXTUALIDADE 

No pungente poema Momento num Café, Manuel Bandeira, já no século XX, diz o seguinte: 
Quando o enterro passou 
Os homens que se achavam no café 
Tiraram o chapéu maquinalmente 
Saudavam o morto distraídos 
Estavam todos voltados para a vida 
Absortos na vida 
Confiantes na vida. 
Numa aparentemente despretensiosa passagem, o narrador/enfermeiro relata: 
"A noite ia tranquila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa." (p. 83) 

 E AS FIGURAS? 

 Talvez seja impossível texto machadiano sem figuras, especialmente saborosas metáforas. Como se sabe, nossa intenção nessa parte é fornecer aos professores uma gama de exemplos de figuras, para que se possa fugir das tradicionais recolhidas dos manuais e gramáticas de língua portuguesa. 
Veja a beleza e a sutileza da comparação em "Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida". Sutil e forte, esclarecedora. 
Mas as metáforas não lhe ficam devendo nada: "Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dois olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras". Ou também essa outra metáfora, ao descrever sua perda de paciência com os achaques do coronel: "Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão". 
Também uma metáfora já mostrada acima: "Os velhos lembravam-me das crueldades dele, em menino. E um prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia ficando". 
Cremos que, com esses poucos exemplos, já apresentamos aos professores que nos deram a honra da leitura deste artigo alguns exemplos de saborosas figuras. 


 * Prof. Leo Rícino é Mestre em Comunicação e Letras.

Revista Conhecimento Prático 
- Literatura 

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