segunda-feira, 26 de março de 2012

Te Contei, não ? As dúvidas de Oswaldo Cruz



Na virada do século XIX para o XX, o Rio de Janeiro era visto como um verdadeiro inferno pelos estrangeiros. Quente, úmida, suja e assolada por epidemias, a então capital da República assustava os poucos visitantes, que levavam de volta para a Europa uma imagem tão negativa da cidade e do país que atrapalhava a política de atração de imigrantes europeus para substituir a mão de obra escrava no campo e nas cidades. Uma ciência nascente, porém, prometia encontrar a solução para algumas das doenças que tomavam o Rio, como a peste bubônica, a febre amarela e a varíola. Era a microbiologia, que tinha no médico Oswaldo Cruz um de seus principais defensores e divulgadores. 

Oswaldo Cruz assumiu a Diretoria Geral da Saúde Pública (DGSP) em 1903 tendo como principal objetivo livrar o Rio destes males. Mas, apesar de mostrar confiança absoluta na nova ciência publicamente, sua correspondência com outros cientistas da época demonstra muitas dúvidas sobre sua eficácia e segurança, como atesta Jorge Augusto Carreta, professor de História da Universidade de Campinas e autor de tese de doutorado que analisou as cartas trocadas por Oswaldo Cruz com pesquisadores como Miguel Pereira, Vital Brazil e Francisco Fajardo. 

— Havia muita incerteza e desconfiança em torno dos produtos gerados pelas pesquisas — conta Carreta. — A correspondência de Oswaldo Cruz revela que enquanto seu discurso público era de que os incidentes relacionados às vacinas eram isolados e desimportantes, entre os cientistas eles eram encarados com grande preocupação. 

 Fajardo morreu após tomar vacina 

 Um desses incidentes envolveu o próprio Farjado. Médico e cientista de prestígio, em 6 de novembro de 1906 ele atendia a mulher do jornalista Joaquim de Lacerda quando pediu licença para se auto-vacinar, pois iria atender um doente suspeito de estar com peste bubônica. O procedimento foi acompanhado por Lacerda. Logo após voltar à consulta, Fajardo começou a passar mal, vindo a falecer horas depois. O mal súbito de Fajardo disparou o sinal de alerta na comunidade científica, entre políticos e autoridades e na própria população, que dois anos antes havia se rebelado contra as primeiras medidas de Oswaldo Cruz à frente da DGSP (a vacinação compulsória contra a varíola), episódio que ficou conhecido como a “Revolta da vacina”. — 

A morte de Fajardo alimentou ainda mais a debate em torno da nova ciência — diz Carreta. — Em Manguinhos, foi grande o mal-estar entre os pesquisadores, com briga de vaidades entre eles e acusações de má preparação do soro antipestoso usado por Fajardo. 

 A morte do colaborador e amigo deu munição aos desafetos de Oswaldo Cruz. Um dos ataques mais duros veio de Benjamin da Rocha Faria, seu ex-professor e titular da cadeira de Higiene da Faculdade de Medicina, como registra o próprio sanitarista em carta a Henrique da Rocha Lima, que estava na Alemanha: “O Rocha Faria, que prestara socorros ao Fajardo, doutrinando, como é seu hábito, exclamou: 'Veja mais esta beleza de seu Oswaldo, que anda querendo iludir a todos nós!'. A maledicência vem logo arquitetando perversidades sobre a morte de Fajardo. Ainda hoje, fervilham as mais desencontradas versões e esqueceram-se completamente de nós. De que morreu o Fajardo? Não sei. De nefrite? De choque peritoneal? Falava-se em anafilaxia. Quero apurar isto, mas ainda não ousei abordar o (Miguel) Couto, que deu como causa mortis: toxemia, sideração (aniquilação) dos centros bulbares.” 

Segundo Carreta, a imagem pública de confiança que Oswaldo Cruz procurava passar era tanto uma estratégia de autopreservação quanto fruto de sua própria personalidade. 

— Na época, a ciência não era um conhecimento neutro que se impunha só pela eficácia. Havia a interferência de diversos fatores não científicos, como projetos políticos e ambições pessoais — lembra Carreta. — Neste ponto, Oswaldo Cruz precisava se mostrar seguro do que estava fazendo e tinha uma grande vantagem: além de ser um cientista extremamente competente, ele operava nos aspectos não científicos da questão e tinha o dom da ubiquidade humanizada, atuando em diferentes espaços com diferentes interlocutores. 

 Carreta destaca ainda que Oswaldo Cruz estava preocupado em consolidar uma nova forma de fazer ciência e promover a saúde pública no país, defendendo um projeto de ensino e pesquisa que se opunha à tradição da Faculdade de Medicina, que se preocupava apenas em formar médicos. 

— Ele não podia revelar que o conhecimento em que se baseava ainda era precário e qualquer tipo de vacilo ou indecisão atrairia a ira de seus inimigos — comenta. — Oswaldo Cruz queria formar discípulos na medicina experimental, baseada em resultados empíricos, somando esse conhecimento à atuação essencialmente clínica de então, baseada na observação do doente ao pé do leito, seus sintomas e diagnóstico, um estilo que considerava infrutífero e ultrapassado. Não é que ele rejeitasse a medicina clínica, mas havia todo um projeto de prevenção e profilaxia que se chocava com a atuação do médico só após uma doença se estabelecer. Aos poucos suas ideias começaram a ser aceitas. 

 Embora o episódio da Revolta da vacina não seja citado explicitamente na correspondência entre os cientistas, ela assombrou Oswaldo Cruz e seus colegas durante muito tempo, conta Carreta. 

— A ideia da vacinação enfrentava resistência mesmo dentro da Faculdade de Medicina — diz. — No caso da revolta, porém, o momento estava relacionado não só à desconfiança quanto à microbiologia como também à maneira como se comportou a DGSP nos anos anteriores. As equipes de Oswaldo Cruzeram temidas, havia a invasão de lares e a obrigatoriedade da vacinação era vista como um atentado contra a liberdade individual. 

 Para Carreta, no entanto, é difícil que algo do tipo se repita atualmente, mesmo com o Rio enfrentando outra grande epidemia, desta vez de dengue. 

— Em um século, a consciência sobre nossos direitos mudou muito — avalia. — Hoje, se o agente de saúde tem sua entrada recusada em uma casa, ele tem que ir embora e só pode voltar com autorização judicial. Não há como forçar a entrada. A diminuição no número de incidentes e a melhoria da qualidade dos soros fez com que a nova ciência paulatinamente começasse a ser aceita. 

De simples desenho à palco da ciência 

Imagens inéditas mostram atuação de pesquisadores brasileiros no início do século XX 

 Cláudio Motta claudio.motta@oglobo.com.br 

 Onde hoje passa a Avenida Brasil, havia a Baía de Guanabara. E, antes de ser um imponente castelo — palco de produção fundamental da pesquisa brasileira —, a Fiocruz não passava de um desenho de Oswaldo Cruz, que mais lembrava os rabiscos de uma criança. As imagens que documentam a história da ciência brasileira, além da memória da cidade, estão gravadas em oito mil negativos de vidro, produzidos nas duas primeiras décadas do século XX. Este acervo, sob os cuidados da Casa de Oswaldo Cruz (COC), deverá estar disponível na internet até junho de 2013. 

 O próprio Oswaldo Cruz instalou um laboratório fotográfico, conta Paulo Elian, vice-diretor de Pesquisa, Educação e Divulgação da COC. A técnica que grava a imagem em negativos de vidro, era popular na segunda metade do século XIX, mas continuou sendo empregada mesmo depois da invenção dos negativos de base plástica. 

— O Instituto Oswaldo Cruz foi criado em 1900 e teve amplo registro fotográfico. Joaquim Pinto da Silva, o J. Pinto, foi quem produziu parte considerável deste acervo, que permaneceu em Manguinhos — lembra Elian. — Certamente houve alguma perda, mas, quando a COC, que é de 1986, começou o trabalho de identificação do material, localizou o conjunto de negativos de vidros, guardados com zelo pelos funcionários. 

Parte destes negativos de vidro já foi transformada em positivo. Mas há registros que sequer foram identificados. O conteúdo, inédito, mostra importantes cientistas em trabalho de campo e em laboratório, produzindo vacinas e soros. As fotos também detalham o crescimento da cidade. 

— Tem o registro da visita do Einstein, fotos de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolpho Lutz e outros tantos pesquisadores importantes. Há imagens das expedições científicas feitas ao interior do país. Talvez seja, no Brasil, o conteúdo mais expressivo relacionado à atividade biomédica e da saúde — exalta Elian. 

 O acesso a este material pode gerar novas pesquisas, sobretudo no campo histórico — seja do país, da fotografia ou da própria divulgação científica. É possível obter informações sobre como os sanitaristas atuavam, por exemplo, no combate à peste e à malária. 

 Mais do que imagens soltas, há informações complementares, que enriquecem a importância histórica das fotografias, ressalta Maria da Conceição Castro, chefe do departamento de arquivo e documentação da COC: 

 O desenho original do castelo, com dois pavimentos e duas torres, foi feito de próprio punho por Oswaldo Cruz e, posteriormente, adaptado por um arquiteto. O desenho é uma das preciosidades do arquivo. 

 De um conjunto de 80 mil imagens, 13 mil negativos serão digitalizados e estarão disponíveis no site www.coc.fiocruz.br.

Jornal O Globo

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