Conversava com o roteirista e diretor
Rafael Dragaud, de “Conexões urbanas”,
sobre sua mudança de residência,
de um pequeno apartamento no
Leblon, entre a Cruzada São Sebastião e o Jardim
de Alah, para uma casa em São Conrado,
nos altos das Canoas, na fronteira também
com uma pequena comunidade. Rafael me
contava, horrorizado, as cenas que tem presenciado
no Fashion Mall — shopping que
passou a frequentar mais desde que se mudou
— e que o fazem refletir sobre o quanto
somos, ainda, escravocratas.
A primeira cena foi de uma moça com biótipo
nordestino que passeava com três crianças
de pele bem clara, como seus cabelos e
seus olhos. Um segurança negro e alto a abordou,
com educação. Numa localização estratégica,
Rafael, que tem o hábito de observar,
na moita, esses enclaves comportamentais,
viu tudo, como um antropólogo.
Percebeu, inclusive, o constrangimento do
segurança, de origem humilde, e seu esforço
para encontrar um modo de falar que não ofendesse
a moça, ao lhe perguntar qual o grau de
relação que tinha com aquelas crianças.
Ao confirmar suas suspeitas – a mulher era
babá da prole de algum casal que, naquele
momento, fazia compras ou trabalhava – o segurança
pediu que se encaminhasse para algum
misterioso destino, esperou que ela desaparecesse
e passou um rádio para assegurar
o procedimento. O fato: ela não podia ficar
ali sem o uniforme de serviçal.
O Fashion Mall, não é novidade, tornou-se,
em certos dias e horários, o shopping das babás
uniformizadas conduzindo crianças de
classe AAA, acompanhadas ou não dos pais, e
carregando também as compras. Há momentos
em que poderíamos jurar que estamos no
set de “Histórias cruzadas”, o filme da Disney
que mostra como eram tratadas as domésticas
e babás (normalmente, elas faziam todas
as funções) no Sul racista, na transição para a
conquista dos direitos civis dos negros.
A diferença é que aqui, como nos ensinara
Caetano em “Haiti”, o preto é sinônimo de pobre:
pode ser branco, nordestino, caboclo, índio,
é tudo preto, tudo preso, e o nosso apartheid
hoje é mais social do que racial, embora
sua herança seja escravocrata. O Rio de Janeiro,
que na Abolição votou 100% contra, é até hoje
craque em preconceito social e segregação,
como se pode exemplificar na outra cena que
Rafael presenciou, ao entrar, com sua mulher,
numa sessão de “O espião que sabia demais”.
Numa das fileiras de trás, estava um desses
yuppies de cabelinho penteado pro lado, que Rafael
reconhecera, na entrada, de uma outra ocasião,
quando o mesmo mandara demitir alguém
pelo celular, aos gritos, enquanto comprava vinhos
numa dessas adegas, e depois pegara a
chave com o guardador sem olhá-lo na face.
Pois, o yuppie, com sua turma, tacava a maior
zona, falando alto, consultando celular, aquela
falta de educação característica de quem tem
berço mas não tem caráter. Uma mulher, próxima
a eles, em companhia do marido, reclamou.
— Por favor, silêncio! A gente pagou pra assistir
ao filme!
O Sr. Riquinho soltou um ganido de gazela:
— Ihhhhh... olha só.... olha a audácia... Pelo
jeito, não tem dinheiro pra vir ao cinema, não
vem nunca, daí dar tanta importância pra essa
merda.
— Que absurdo! Eu ralo o mês inteiro pra
ganhar meu dinheiro honesto e ainda tenho
que ouvir isso!
O yuppie se dirigiu à mulher como a um
cão.
— Psssssst.... ca-la-da! Ca-la-da!
Foi quando o marido da cidadã resolveu se
pronunciar. Levantou-se e se posicionou na
direção do ofensor.
— Escuta, você está mesmo mandando a
minha mulher calar a boca? Você está mesmo
com disposição de resolver isso comigo fora
da sala?
Como qualquer covarde pusilânime, o rico
mimado sem classe pôs o rabo entre as pernas
e desistiu de confrontar o casal trabalhador
(o clichê é consciente e proposital).
O que está por trás da orientação, decerto
ilegal, que proíbe babás não uniformizadas de
caminhar por um shopping com os filhos de
seus patrões?
O que está na cabeça de quem administra o
Fashion Mall, que andou perseguindo o filho de
criação de Caetano, expulso do local por seguranças,
acusado de “atitude suspeita”, talvez
pela cor da pele e o trato rasta do cabelo?
Não estaria na hora de se cobrar, na Justiça,
de acordo com o código penal, a impropriedade
desses procedimentos? Ou seriam apenas
“atitudes isoladas”?
Os shoppings, para muitos, se tornaram
bairros, cidadelas, “comunidades”, e já há
grandes estabelecimentos do gênero em todas
as regiões da cidade e do estado.
Há, inclusive, shoppings na Zona Sul onde se
nota que a pluralidade é não apenas tolerada,
mas desejada, como o Shopping Leblon, que,
mesmo tirando onda de chique, tem suas galerias
e lojas percorridas por madames e moradores
da Cruzada, babás de jeans e empresários,
Hells Angels e motoboys, sem que pareçam,
uns, se incomodarem com os outros.
Ao contrário, a impressão que se tem é de se
estar, do ponto de vista do cosmopolitismo, numa
Avenida Copacabana, com todo o respeito e
no melhor sentido do endereço. No Rio Sul e no
Botafogo Praia Shopping também se respiram
esses ares de boa mistura igualitária, mesmo
que as carteiras, as contas bancárias e o poder
de compra tenham diferenças consideráveis.
Vitrines são para todos e, para os menos abastados,
sempre sobra algum fruto do suor para
se fazer um agrado, a si ou ao próximo.
O que há com o Fashion Mall para investir nessa
abominável vertente de clube segregacionista?
Um bom tema para reflexão (e para providências)
na semana em que a cidade faz aniversário.
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