quinta-feira, 15 de março de 2012

Te Contei, não ? - Um caso emblemático




Há coisas essenciais sobre o racismo no episódio ocorrido no restaurante Nonno Paolo com um menino negro. Eu não estava lá, mas pela reação de indignação da mãe da criança e de seus amigos é lícito supor que a criança em questão seja amada e bem cuidada, portanto, não estava suja e maltrapilha como costumam estar as crianças de rua que encontramos cotidianamente na cidade de São Paulo. Então, a “confusão” de quem a tomou, a princípio, por mais uma criança pedinte se deveu ao único traço com o qual a define a mentalidade racista: a sua negritude. Presumivelmente, o menino negro era o único “ponto escuro” entre os clientes do restaurante e, para esse “ponto escuro”, há lugares socialmente predeterminados dos quais restaurantes de áreas consideradas “nobres” da cidade de São Paulo estão excluídos. Para o racista, a negritude chega sempre na frente dos signos de prestígio social.
Por isso, Januário Alves de Santana foi brutalmente espancado por não ser admissível para os seguranças do supermercado Carrefour que ele fosse proprietário de um Ecosport, dentro do qual se encontrava no estacionamento, à espera de sua mulher que realizava compras.
Por isso, a cantora Thalma de Freitas foi arbitrariamente revistada e levada em camburão para uma delegacia por ser considerada suspeita enquanto, como ela disse na ocasião, “porque a loura que estava sendo revistada antes de mim não veio para cá?”
Por isso, Seu Jorge, além de múltiplas humilhações sofridas na Itália, foi impedido, em dia de frio europeu, de entrar em uma loja com o carrinho no qual estava a sua filha, “confundida” como um monte de lixo.
São apenas alguns exemplos de uma lista interminável de situações em que são endereçadas para pessoas negras mensagens que têm um duplo sentido: reiterar o lugar social subalterno da negritude, bem como desencorajar os negros a ousarem sair dos lugares que, desde a abolição, lhes foi destinado: as sarjetas do país.
O episódio indica, portanto, que uma criança, sendo negra e, por consequência “natural”, pobre e pedinte, pode “legitimamente” ser atirada à rua, sem cerimônia. É, devolvê-la ao seu devido lugar. Indica, ademais, que essa criança não desperta o sentimento de proteção (que devemos a qualquer criança) em relação aos perigos das ruas, pois ela é, para eles, uma das representações do que torna as ruas um perigo!
Essa criança, por ser negra, também não é abrigada pela compaixão, pois há quem vê nelas a “semente do mal”, como o fez certa vez, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, defendendo a descriminalização do aborto para mulheres faveladas, pois seus úteros seriam “fábricas de marginais.” Há os que defendem a atitude do funcionário que expulsou a criança do restaurante sob o argumento de a que região em que ele está localizado costuma ser assediada por crianças pedintes que aborrecem a clientela dos estabelecimentos comerciais.
Na ausência do poder público para dar destino digno a essas crianças, cada um age de acordo com sua consciência, geralmente, expulsando-as. Outros dizem que a culpa pelo ocorrido é dos pais, que deixaram a criança sozinha na mesa. O subtexto desse discurso é revelador e “pedagógico”: pais de crianças negras deveriam saber que elas podem ser expulsas de restaurantes enquanto eles se servem, porque elas são consideradas pedintes, ou menor infrator! O erro não estaria no rótulo ou estigma e, sim, nos desavisados que não compreendem esse código social perverso!
Os que assim pensam pertencem à mesma tribo de indignados que consideram que espaços até então privativos de classes sociais mais abastadas começam a ser tomados de “assalto” por uma gente “diferenciada”, fazendo aeroportos parecerem rodoviárias ou praças de alimentação. Aqueles que não se sentem incomodados com a desigualdade e a injustiça social. Aqueles que reclamam que agora “tudo é racismo” porque, para eles, o politicamente correto é dizer que nada é racismo. Esses são, enfim, aqueles que condenam o Estatuto da Criança e do Adolescente, que advogam pela redução da maioridade penal, que revogariam, se pudessem, o inciso constitucional que define o racismo como crime inafiançável e imprescritível, ou a lei Caó, que tipifica e estabelece as penalidades por atos de discriminação; conquistas da cidadania brasileira engendradas por aqueles que recusam as falácias de igualdade de direitos e oportunidades em nosso país.
O aumento da inclusão social ocorrida nos últimos anos está produzindo deslocamentos numa ordem social naturalizada na qual cada um “sabia o seu lugar”, o fundamento de nossa “democracia racial”. O desconforto que esse deslocamento provoca faz com que os atos de racismo estejam se tornando cada vez mais frequentes e virulentos. Atenção, gente negra! Eles mudaram! O mito da democracia racial está revelando, sem pejo, a sua verdadeira face. Então, é hora de se conceber e empreender novas estratégias de luta!


RELEMBRE OS FATOS

CRIANÇA EM SP

Um casal de espanhóis em viagem pelo Brasil acusou um restaurante em São Paulo de racismo contra seu filho de seis anos. O menino negro, adotado há dois anos na Etiópia, foi expulso do estabelecimento após ser confundido com um garoto de rua. Os pais o deixaram na mesa enquanto se serviam no bufê. “Um senhor me botou para fora”, disse o garoto, que foi encontrado pelos pais a um quarteirão do restaurante, assustado e chorando. De acordo com o boletim de ocorrência registrado no 36º Distrito Policial, inicialmente, os funcionários negaram a expulsão. Depois, o gerente do restaurante explicou que, como era dia de feira, muitas crianças de rua vão ao loca pedir comida e, como o menino (único negro no local) não respondeu nada ao ser abordado, foi retirado do restaurante. Detalhe: o garoto, de origem etíope, não fala português! A notícia se espalhou rápido, gerando uma série de manifestações na internet e em frente ao local.

JANUÁRIO ALVES

O técnico em eletrônica, Januário Alves de Santana foi espancado com cabeçadas, esganaduras, coronhadas e socos por seguranças de um hipermercado em São Paulo, após ser confundido com um assaltante. Enquanto a família fazia compras, Januário aguardava em seu carro – um EcoSport – com a filha de dois anos. Ao lado, o alarme de uma moto disparou e Januário saiu de seu veículo quando percebeu dois homens correndo. O dono da moto chegou em seguida e logo vieram os seguranças do local. E o martírio começou. “Eles falaram que eu ia roubar a moto e o EcoSport. Quando disse que o carro era meu, batiam mais.” Três policiais militares chegaram ao local, e Januário explicou que seus documentos estavam no carro. “Eles riam e diziam: ‘impossível um neguinho ter um EcoSport, sua cara não nega. Você deve ter pelo menos três passagens pela polícia’”. De tanto insistir, foram até o automóvel. Após conferir a documentação, os policiais foram embora. Januário foi indenizado pelo hipermercado e afirmou já ter passado por outros constrangimentos por causa do carro.

Revista Raça Brasil

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