sábado, 3 de março de 2012

Crônica do Dia - Um tempo sem nome



Essa Pequena 

Chico Buarque 

Meu tempo é curto,
o tempo dela sobra 
Meu cabelo é cinza, 
o dela é cor de abóbora 
Temo que não dure muito a nossa novela, mas 
Eu sou tão feliz com ela 
Meu dia voa e ela não acorda 
Vou até a esquina, 
ela quer ir para a Flórida 
Acho que nem sei direito 
o que é que ela fala, mas 
Não canso de contemplá-la 
Feito avarento, conto os meus minutos 
Cada segundo que se esvai 
Cuidando dela, que anda noutro mundo 
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai 
Às vezes ela pinta a boca e sai 
Fique à vontade, eu digo, 
take your time 
Sinto que ainda vou penar 
com essa pequena, mas 
O blues já valeu a pena 



Um tempo sem nome 

Rosiska Darcy de Oliveira, 
O Globo, 21/01/12 


Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. 
Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”. 
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. 
O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida . 
Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. 
Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? 
Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos. A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. 
O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. 
E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. 
É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira. Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. 
O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca. 
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. 
Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de pasanunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade.sagem que a Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. 
A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar. 
A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. 
Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho. 
”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar. 
Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição. 
Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. 
Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida. 

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora.

Um comentário:

  1. Olha os Chicos se encontrando na curva do tempo
    Essa Moça Tá Diferente
    Chico Buarque
    Essa moça tá diferente
    Já não me conhece mais
    Está pra lá de pra frente
    Está me passando pra trás
    Essa moça tá decidida
    A se supermodernizar
    Ela só samba escondida
    Que é pra ninguém reparar
    Eu cultivo rosas e rimas
    Achando que é muito bom
    Ela me olha de cima
    E vai desinventar o som
    Faço-lhe um concerto de flauta
    E não lhe desperto emoção
    Ela quer ver o astronauta
    Descer na televisão
    Mas o tempo vai
    Mas o tempo vem
    Ela me desfaz
    Mas o que é que tem
    Que ela só me guarda despeito
    Que ela só me guarda desdém
    Mas o tempo vai
    Mas o tempo vem
    Ela me desfaz
    Mas o que é que tem
    Se do lado esquerdo do peito
    No fundo, ela ainda me quer bem

    Essa moça tá diferente
    Já não me conhece mais
    Está pra lá de pra frente
    Está me passando pra trás

    Essa moça é a tal da janela
    Que eu me cansei de cantar
    E agora está só na dela
    Botando só pra quebrar

    Mas o tempo vai
    Mas o tempo vem
    Ela me desfaz
    Mas o que é que tem
    Que ela só me guarda despeito
    Que ela só me guarda desdém
    Mas o tempo vai
    Mas o tempo vem
    Ela me desfaz
    Mas o que é que tem
    Se do lado esquerdo do peito
    No fundo, ela ainda me quer bem

    Essa moça...


    Luiz Cláudio dos Reis Campos
    e mail:lucrc@terra.com.br
    Uberaba-MG

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