domingo, 18 de março de 2012

Te Contei, não ? - Vozes da dissidência - O negro no pensamento de Lima Barreto e Gilberto Freyre - Lima Barreto teve sua vida marcada pela tragédia e a negação social. Dele ainda se pode dizer que, em virtude disso, foi um ressentido. É bem provável situá-la no universo de humilhados de Dostoiévski




Não sem razão de ser, Lima Barreto (1881 a 1922) leu a literatura de Dostoiévski (1821 a 1881) e com ela muito se identificou. Francisco de Assis Barbosa nos dá conta desse aspecto de Lima na biografia que fez do autor brasileiro, A Vida de Lima Barreto, publicada em 1981. Entre outros fatos - muito nos ensina a leitura do livro de Barbosa -, os ressentimentos de Lima Barreto têm origem na rejeição social à qual, entre nós, negros e mestiços foram e são submetidos. Sua consciência intelectual deu-lhe a sempre negativa dimensão dos fatos, imposta a ele e a outros negros. 

Dostoiévski 

Fiodor Mikhailovich Dostoiévski é de origem russa. Seu universo literário dialoga com essências do Cristianismo, que muito tocou o autor. Sob influência francesa, tornou o fundador do Realismo em seu país. 

República 

A República à qual o pensamento e a obra de Lima Barreto nos remetem é a designada "República Velha". O universo pouco democrático desse episódio é estudado pelo historiador José Murilo de Carvalho, cujo livro Os Bestializados: o Rio de Janeiro e A República Que Não Foi, publicado pela Companhia das Letras em 1987, tornou-se obra de referência no assunto. 

PERAMBULANDO PELO RIO 

A política da Monarquia, mesmo com suas restrições, fora, na visão do autor, mais amistosa com afrodescendentes. Para Lima, nossa República é preconceituosa e pouco democrática e essas referências negativas se materializam para ele no Rio de Janeiro. 
É por isso que Lima Barreto (na vida real) e seus narradores (na ficção) perambulam pela capital. Entre nós, eles representam o andarilho da poesia de Baudelaire e Cesário Verde . Em suas andanças, os olhos constatam o social, tomam posição e o fotografam. 
O subúrbio do Rio, todavia, é o espaço de predileção. Esta geografia é a que acolhe os marginalizado; os proletários e lumpemproletários estão nela. Na extensão, é o espaço de moradia dos negros em seus muitos matizes. A realidade social confirma a imagem. 
Em paralelo, entre referências culturais do momento, encontrase o racismo biológico . A origem da teoria, entretanto, é anterior. Ela surge no século XIX e se fundamenta na defesa da inferioridade natural entre etnias. 
Negros e mestiços são, para o ideário, os menos elevados. Para designá-los, a Biologia usa termos como "degenerescência", "corrupção". Já inteligência, capacidade e outras qualidades positivas estão com o branco, são o seu repertório natural. 

 Baudelaire e Cesário Verde 

Charles Baudelaire (1821 a 1867). Entre outros aspectos, sua obra trata da vida nas grandes cidades. Por isso, há nela muitas referências à multidão anônima e sem rosto. Em meio aos que passam, há um observador que quer captar o instante, um pouco da vida dos que seguem apressadamente. O observador é também um andarilho ou "flaneur", termo francês. 

Cesário Verde (1855 a 1886). O andarilho de Cesário caminha a esmo por Lisboa. Num Bairro Moderno e Sentimento dum Ocidental são poemas seus que contam com esse personagem, que possui consciência crítica e mostra tom melancólico quanto às coisas do social. 

Como se vê, a superioridade é branca, caucasiana. Formato e tamanho de crânios a comprovam. No episódio, os cientistas medemna, calculam-na, provam-na. Seus laboratórios e instrumentos estão aptos para isso e não expressam neutralidade. 
Lima Barreto nega, no entanto, este determinismo. Seus pareceres opõem-se à voz da ciência que se quer respeitada e detentora da verdade. Nada o desgosta mais que esta falácia. Ela, todavia, permanece e toma força, referendará o Nazifascismo dos anos 1930. 
Antes, porém, dita valores do Naturalismo. Com isto, o que é científico passa ao literário. Negros e mestiços estão fadados à loucura, ao desequilíbrio provocado por sexualidade doentia. O romance O Mulato bem representa esta crença entre nós. 

 DETERMINAÇÃO GENÉTICA 

Nem os olhos azuis do protagonista salvam-no do fim trágico. A mãe escrava é a determinação genética. Nela, todo o negativo já está anunciado. Não há como fugir. Educação elevada, modos finos e boas roupas não alteram os fatos. 
À altura, toda a negatividade que envolve o negro contamina nosso imaginário acerca da África. O continente é a incivilidade. Nele, não há cultura abaixo do Saara. 
Quanto mais próximo de sua geografia, mais selvagem. 
Para outros, "desértico" e "bárbaro" são, na mesma sintonia, os adjetivos que lhe cabem (adjetivos que estão no poema O Emparedado, de Cruz e Souza). Muito do que o lembra remete apenas ao calor, à canícula, às miragens, às caravanas de mercadores e de escravos que cortam o deserto. 
Os pareceres de Lima são, contudo e anos depois, posturas de rompimento. As crenças nos valores do determinismo biológico não existem em sua cosmovisão. Seu repertório também não se ajusta ao negativo e ao exotismo das imagens acerca da África. 

Racismo biológico 

Um dos teóricos do "racismo biológico" ou "teoria racista" foi o Conde Arthur de Gobineau (1816 a 1862). Tornou-se famosa sua visita ao Brasil, na condição de diplomata, representando o governo francês. É dele a célebre afirmação de que dom Pedro II é um imperador solitário por ser um monarca louro em um país de negros. 

Nazifascismo 

Movimento político e filosófico que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais. 

Seu Diário Íntimo dá forma e guarida aos seus pareceres contrários aos da cultura dominante. Também os pormenoriza. O período que ele compreende e consubstancia é o que vai de 1903 a 1921. 
Apoiando nossas afirmações, em páginas que cobrem o ano de 1904, encontramos menções diretas à positiva ligação dos negros com a formação do Brasil. Segundo Lima, eles seriam, com o seu trabalho e cultura, os responsáveis por nossa unidade. 
Na mesma linha das indicações de mérito, afirma outros fatos de importância. Em referência ao nosso período colonial, cremos, lembra que no episódio os que se preocupam com arte e a produzem são os negros. 
Na cronologia, os brancos estariam à parte deste processo. Suas preocupações se prendem à administração e ao enriquecimento. Usar as mãos é demérito. Artes, ofícios e trabalhos mecânicos são, em certas circunstâncias, fazeres que se confundem. 
Mais à frente, fala das exigências sociais que o cerceiam e a outros negros. Lembra, para isto, que "a capacidade mental dos negros é discutida a priori". Como contraponto, avisa que, com os brancos, a posteriori é o adjunto adverbial. 
Afirma também que feição, peso, forma do crânio "nada denotam quanto à inteligência e ao vigor mental" dos indivíduos. Não há fundamento seriamente científico na observação, para que o negro seja visto como inferior. Haveria, sim, interesses sociais. 

 O Mulato 

É o título do romance de Aloísio de Azevedo (1857-1913), publicado em 1881, que deu início ao nosso Naturalismo. 

 O Diário Íntimo 

O diário de Lima Barreto, em que ele conta, entre outras coisas, como pesquisava para escrever sobre o Rio de Janeiro, e revela seus métodos de trabalho como escritor. Esse diário foi encontrado em 1942, vinte anos após a morte do autor. Sua primeira publicação, entretanto, ocorreu somente em 1953. 

Um ano antes, sempre tocado por essas certezas, punha-se à disposição de todos os negros. No futuro, escreveria a história da escravidão negra no Brasil. No mesmo escrito, daria conta das influências positivas dos povos africanos em nossa nacionalidade. 
Essas intenções, entretanto e infelizmente, não se concretizaram. As condições materiais da existência de Lima não permitiram que ele atingisse esse fim. O social e o alcoolismo barraram-no antes. 

RESGATE POSITIVO 

O resgate positivo do negro ficará, então, a cargo de Gilberto Freyre. Por meio do seu Casa Grande e Senzala, promove-se a grande e merecida reabilitação. Os povos negros que vieram da África são nossos principais formadores. 
A obra, de 1933, torna-se marco. Mesmo sendo ensaio de natureza antropológica e sociológica, destaca-se pelo inusitado de seus assuntos. Também por sua linguagem que veicula densa plasticidade ao que trata. No livro, o escravo é o grande agente social.  
O argumento inicial do ensaio, entretanto, é o de que somos mestiçagem. Gilberto Freyre concorda com a tese da união das três raças. De fato, aqui, brancos, negros e índios se uniram. Sua extensão é o brasileiro híbrido. 
Em sequência, faz a apologia do mestiço. Diz do lugar de excelência que, no futuro, está reservado para ele e para a nacionalidade que o contém. Invertendo proposições culturais anteriores, afirma ainda que a eugenia está na mestiçagem.  
Dirá, também, que o brasileiro é fruto de uma vida sexual muito intensa e bem mais liberada do que se imagina. O mundo das "casas grandes" foi de intenso hibridismo e sexualidade, não havendo demérito nisto. 

 Franz Boas 

Considerado o pai da antropologia contemporânea, Franz Boas nasceu na Alemanha em 1858 e faleceu em Nova York em 1942. Ao contrário dos evolucionistas que dominavam a Antropologia em seu princípio, Boas argumentava que, em contraste com o senso comum, raças distintas da caucasiana, "raças como os índios do Peru e da América Central haviam desenvolvido civilizações similares àquelas nas quais as civilizações europeias tinham sua origem". Boas foi orientador de antropólogos notáveis, como Margaret Mead, Melville Herkovits e Ruth Benedict, além de Gilberto Freyre. 

A densidade do que afirma Freyre, entretanto, não brota do nada. Seu respaldo é a crença no "relativismo cultural". A estadia nos Estados Unidos faculta-lhe o contato com a teoria, à época de sua formação, nos anos 1920. 
O autor convive com ela no período em que está na Universidade de Chicago. Os anos de formação universitária adensam-lhe o gosto pela nova proposta interpretativa. Ter sido aluno de Franz Boas também contribuiu. 
A proposição de Freyre é a de que não há culturas superiores. O que existe são culturas de valor equivalente. O novo posicionamento desestabiliza posturas sacralizadas. As determinações biológicas do século XIX são, assim, abaladas em sua autoridade. Pena que não sepultadas. 
Na extensão, brancos e negros são seres idênticos. Cultura é o resultado das atividades humanas e não apenas o das atividades do homem europeu ou caucasiano. São grandes e profundas as dimensões culturais de toda e qualquer etnia. 
Em sua obra, Freyre traduz os pareceres do "relativismo" de diversas formas. Em primeiro plano, chama o negro de colonizador e o escravo de personagem histórico. Em sua escrita, confere-lhes os estatutos. Depois, vai além: quem colonizou o Brasil foi o negro. 
Na sintonia, afirma ainda que o trabalho do escravo concorre em importância com o do português. Na África, suas origens são diversas e os seus níveis de cultura complexos. De lá, vem para o Brasil, por isto, mão de obra com graus diversos de especialização. Cultura e o resultado das atividades humanas e não apenas o das atividades do homem europeu ou caucasiano. São grandes e profundas as dimensões culturais de toda e qualquer etnia. 
Virão ainda escravos de procedência aristocrática, como também lideranças religiosas. Na África, a situação de cativo pode se estender a desafetos políticos, a representações destituídas do poder. A travessia do Atlântico está ligada a diversos fatores. 
Virão também tecelões, construtores, especialistas na fundição do ferro, entalhadores, ourives, contadores de história, pastores, escribas, agricultores diversos, caçadores e outros. Não haveria por que nos envergonharmos desta ascendência. 

 Formação de Portugal 

 O território que hoje é Portugal foi ocupado por povos celtas (galaicos e lusitanos), romanos, germânicos e árabes. Antes da era cristã, era habitado por diferentes povos; mais tarde, o Império Romano integraria a região como Província da Lusitânia, o que traria a língua portuguesa ao uso comum do local. Após a queda do Império, chegariam os povos germânicos, principalmente visigodos e suevos. Mais tarde, no século VIII, povos árabes participariam da ocupação da área. Houve então uma reconquista cristã e a formação do Condado Portucalense, que, por fim, deu origem a Portugal. 

 Devido a essa perspectiva, dois são os capítulos do livro dedicados ao negro. O que se tem a dizer acerca dele autoriza o destaque. O próprio português está aquém. Nada desqualifica o negro aos olhos de Freyre. 
As supostas negatividades de "primitivo" não se ajustam a este nosso antepassado. Segundo Freyre, na África está a civilidade. O transporte forçado de gente, apesar dos seus traumas, é benéfico para o Brasil e o seu futuro. 
Por isto, nos conceitos mais internos da obra, há o parecer de que o negro é o grande fator de nossa nacionalidade. Com sua presença e trabalho entre nós, ele nos dá estrutura, formação e unidade. 

 MESTIÇAGEM LUSA, SEGUNDO FREYRE 

Em meio a essas significações, a visão acerca do português na obra também é outra. Freyre fala de um colonizador que não é o branco das tradições europeias. O luso da aventura marítima é o mestiço e Portugal foi o celeiro desta experiência. 
Nesse aspecto, o Portugal do continente é único. Em suas terras, encontraram-se brancos de procedências diversas, mouros retirados ao Islão e, a partir do século XV, os negros da África. 
Para a América Portuguesa transporta-se, assim, um modelo já apurado. Entre nós, contudo, essa vivência se amplia. Nós nos tornaríamos, com isto, a maior experiência de mestiçagem que o globo viria a conhecer. A ação portuguesa para tanto foi decisiva. 
Assim, devido a esses aspectos, a obra de Freyre promove uma inversão. A partir dela, o lugar do negro é outro em nossa história. Sua contribuição para o complexo brasileiro é mais que positiva. Vasta e profunda pesquisa, promovia o reconhecimento. 
Os ataques à obra de Freyre, entretanto, também foram muitos. Vários o acusaram de um saudosista do tempo da escravidão. Outros disseram que suas origens familiares faziam-no louvar a vida nas "casas grandes". 

 "Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro" Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala 

 "Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ou outro" Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala 

Muitos alegaram ainda que ele seriamente se equivocara, ao falar em relacionamentos harmoniosos em nossa formação. Não haveria simpatias verdadeiras entre senhores e serviçais, em um sistema pautado na escravidão. 
Também houve os que o acusaram de detrator do índio, de que o texto de Freyre amesquinhou esta expressão humana. Leram em suas considerações que o aborígene foi o menos expressivo de nossos formadores, que a ele pouco se deveria. 
Muitos, na sua vez, acusaram o tom apologético que Freyre teve para com o português. Negativamente o criticaram, devido à imagem positiva do luso construtor de mundos, disseminador dos princípios da democracia racial. 

Paralelamente, o Brasil se apresenta como a mais positiva expressão da África em diáspora e recriação. Por isto, conhecê-la implica saber-nos muito e seriamente negros e africanos.

Na mesma linha de correlações, nos anos 1960 e 1970, indicaramno como artífice a favor da política colonial salazarista. Rotularam-no de "homem da direita". Taxaram-no como um dos pais do "pensamento conservador brasileiro". 
Nenhuma destas colocações, entretanto, tira o mérito das colocações de Freyre acerca da África que fez o Brasil. Nenhuma delas afeta, na extensão, a veracidade do que ele afirma acerca dos negros que vieram para cá. 
Depois de Casa Grande e Senzala, os negros são formadores. Paralelamente, o Brasil se apresenta como a mais positiva expressão da África em diáspora e recriação. Por isto, conhecêla implica saber-nos muito e seriamente negros e africanos. 

Lima Barreto já acreditava nesses mesmos sentidos. Em nossa leitura, foi um antecedente de vigor e tenacidade. Freyre, na sua vez, acabou por dar forma a vários de seus anseios. Unidos, tornam-se vozes da dissidência, às quais vale a pena dar ouvidos. 

 * Prof. Dr. Juarez Donizete Ambires é mestre no Centro Universitário Fundação Santo André

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