A língua portuguesa está se transformando, muito por causa
do papel das nações emergentes lusófonas da África. Nesta entrevista exclusiva a
ÉPOCA, concedida em São Paulo, o escritor moçambicano Mia Couto, de 59 anos, diz
que, apesar da renovação de linguagem que a África apresenta
hoje, o Brasil
reúne condições para se tornar a nação dominante do ponto de vista cultural e
lingúsitca. Em relação aos países africanos, Couto diz que é preciso distinguir
entre independência e descolonização – e que a África ainda não enfrentou o
segundo termo. Para ele, o Brasil serviu como modelo para a formação da
identidade nacional das nascentes nacos lusófonas da África, mas pelo lado da
mistificação, o que se esgotou rapidamente. Ele afirma que o Brasil virou as
costas para a África.
ÉPOCA – O uso do português em várias nações gerou diferenças de
vocabulário e uso. O português está se transformando a ponto de se
desfigurar?
Mia Couto – O português é uma língua viva, não porque
ela seja especialmente diferente. Mas ela viveu essa coisa que se chama Brasil.
Vive a África que está se apropriando dela com cinco países africanos que o
fazem de modo diverso. É evidente que é preciso um cuidado para que a língua
continue com uma identidade e um fundamento. As diferenças do português em
vários países não são sentidas como um problema. Salvo alguns intelectuais
conservadores do Brasil e de Portugal, que têm um certo gosto de se apropriar da pureza da
língua. De resto, existe nos países lusófonos até um gosto de visitar essas
diferenças. O que está acontecendo de forma inelutável é que a variante
brasileira será dominante. O português do Brasil vai
dominar.
ÉPOCA – Por quê?
Couto –
Por causa do tamanho do Brasil e da capacidade que o país tem de exportar a si
próprio, por via da novela de televisão. Há coisas que estamos pegando de vocês
brasileiros que vocês nem notam. É o caso da expressão “todo mundo”. É uma
expressão típica brasileira. Nos outros países dizemos “toda gente”. Mas hoje
“todo mundo” é comum em Moçambique. Outra palavra é cambalacho... Deve ser uma
expressão africana.
ÉPOCA – “Cambalacho” é um
termo do lunfardo, da gíria portenha, que incorporamos... É como “bacana’, do
lunfardo argentino. Há uma troca. Eu lamento que não saibamos mais sobre as
formas de falar da África. O Brasil exporta, mas não sabe absorver o que vem de
fora.
Couto – O Brasil quis fazer uma batalha dentro da própria
língua para se tornar independente de Portugal. Houve a afirmação de uma
identidade própria que se expressa na língua. O Brasil sofre do peso de seu
próprio tamanho. Sofreu um processo autocêntrico, que agora está sendo repensado
e está mais propenso a escutar aquilo que vem de Moçambique, Angola e Timor
Leste. Ele tem muita coisa da África, mas é antigo. Agora o país importa o
vocabulário do Brasil. Nós africanos temos que ser mais ativos e mais criativos
nessa troca com o Brasil.
ÉPOCA – Na palestra
que o senhor fará no Brasil, o senhor chama atenção para o perigo de o
pensamento se fechar em si mesmo. Como mantê-lo aberto?
Couto – As
fronteiras são vitais, todo organismo cria seus próprios limites. As fronteiras
na natureza são feitas para intercambiar. Mas na civilização as fronteiras são
feitas para fechar, para enclausurar. A grande aprendizagem nossa é se mantiver
em uma fronteira que crie pontes. O grande problema hoje é que as fronteiras
criadas entre culturas, civilizações e povos nascem para fechar. As fronteiras
são construídas a partir do medo do outro, do desconhecido. O outro é
apresentado como uma ameaça, aquele que tem uma outra política, uma outra
religião.
ÉPOCA – O medo é também
um problema político? Erguer fronteiras – políticas, culturais, linguísticas e
espirituais – é uma necessidade humana?
Couto – É uma necessidade
humana, mas não da maneira como fazemos. Tivemos outras maneiras. Há culturas de
hoje que são abertas, feitas para o convívio, para a partilha. Na África, muitas
dessas fronteiras são vivas. As fronteiras se fecham às vezes. O fato de serem
países em que o Estado homogêneo e todo-poderoso não existe tornam as fronteiras
ávidas de deixarem de ser fronteiras. É uma condição diferente da dos países
europeus, árabes, asiáticos e nos Estados Unidos. O medo hoje é bem distribuído,
numa narrativa que contaminou tudo.
ÉPOCA – Por
que a Europa está caminhando na direção da exclusão do imigrante e de sua
transformação em mão de obra.
Couto – Isso acontece como uma maneira
de ocultar os problemas internos que essas sociedades têm. É uma forma de
escamotear os conflitos internos desses universos. Existem razões que tendem a
culpar o outro, sempre o estranho. É como as famílias que recomendam às
crianças que não falem com estranhos. Quando, na realidade, as grandes
violências são cometidas dentro da casa. Essa versão começa a ser inculcada
desde a infância.
ÉPOCA – Como o senhor analisa
a tribalização do mundo?
Couto – A tribalização da Europa acontece
ao contrário do que aconteceu na África. Noto isso em Moçambique, que se manteve
isolado por longo tempo. Mas era um país sentado à beira da praia, esperando
pelos navios. Tudo se deve à enfermidade dos mecanismos de pensamento, que
tendem a criar essências, como algo que está fora da história, que faz parte da
natureza. Assim, criam-se os estereótipos, como se dá no Brasil: os brasileiros
do Sul são trabalhadores por natureza, os do Nordeste são menos trabalhadores,
como se fosse uma coisa que está na massa do sangue. Como se tivéssemos que
arrumar o mundo em um monte de gavetas, em vez de compreender que cada pessoa é
uma pessoa e temos de procurar uma
identidade.
ÉPOCA – O senhor tem uma expressão
que pode soar politicamente incorreta: “Eu sou mulato não das raças, mas de
existências”.
Couto – É difícil de conviver com a complexidade que
cada um tem dentro de si e o que cada outro é. Apesar da tendência de
categorizar e simplificar, há qualquer coisa que escapa à categorização. É esta
coisa que escapa que é o mais bonito, é o que quero fixar.
ÉPOCA – O senhor afirma que a atitude politicamente correta é
prejudicial às sociedades pós-coloniais como Brasil e Moçambique. Por
quê?
Couto – Porque a mentalidade politicamente correta nasce de uma
atitude religiosa do norte da Europa, da procura daquilo que é puro do ponto de
vista moral, liberto de outras contaminações. Ela tenta resolver o mundo pela
palavra. Pode soar poética, mas é uma coisa da religião protestante, que apoiava
tudo na palavra divina, no poder do livro. É uma operação que obriga a pessoa a
pensar duas vezes antes de dizer “favela” ou “comunidade” – um eufemismo que
também tem origem religiosa. Tenho de policiar minha expressão de maneira que
ela pareça certa. No fundo, não se resolve aquilo que é mais importante: mudar a
realidade para que eu não tenha medo das palavras nem ter de pensar cinco vezes
se eu devo dizer “negro” ou “preto” ou “afrodescendente”. O engraçado é que isso
varia. Nosso foco tem que ser outro. É preciso deixar de pensar no vestuário
superficial da palavra e ir mais fundo, investigar o próprio pensamento.
ÉPOCA – O senhor não acha que, mesmo assim, em nome da ética e do
respeito, algumas palavras precisam ser substituídas?
Couto – Há
casos em que é preciso alterar o uso das palavras. A conotação que liga o negro
ao negativo, ao sinistro.
ÉPOCA – Como é a mentalidade politicamente correta na
África?
Couto – Na África, essas coisas quase não existem, e quando
ocorrem é por influência dos Estados Unidos. Essa coisa da afirmação positiva,
das costas, nunca existiu. Mas agora já começa a haver um movimento a favor de
introduzir um mecanismo de acerto por imposição de uma cota.
ÉPOCA – O senhor é a favor das cotas?
Couto – Não tenho
simpática nenhuma pelas cotas. A cota avilta quem recebe e não diz nada de quem
a dá. É preciso que não haja cotas, e sim que se resolvam os problemas
radicalmente.
ÉPOCA – Como seria resolver esses problemas em um mundo regido pelo
mercado?
Couto – Não sei se é tão inviável assim. Por que não
fazemos outra vez uma revolução? Não sei como. Para já o que é preciso não
aceitar as cotas. Parecem soluções, são panaceias. Na África, as elites
reproduziram o discurso do orgulho nacionalista e acabaram por reproduzir também
os mecanismos de repressão a seu próprio povo. Em relação à realidade anterior,
colonial, nada mudou. Processou-se apenas uma mudança de turno, as elites
substituíram o antigo poder colonial europeu. As elites africanas indigenizaram
o próprio colonialismo. É um sistema. É como se o oprimido se tornasse
rapidamente opressor.
ÉPOCA – Os países europeus experimentam hoje uma situação que África
e Brasil já lidam há séculos: a da identidade múltipla. Com tantas identidades,
a tendência não é a diluição? Ou o multiculturalismo é a solução para um mundo
em crescente diversidade?
Couto – Não gosto do conceito e da palavra
multiculturalismo. É preciso considerar o que cada um de nós tem por dentro.
Ninguém é feito de uma cultura só. Isso não existe hoje. Eu dei aulas como
biólogo e eu mostrava aos meus alunos que eles não são um indivíduo, mas uma
simbiose de indivíduos com identidades completamente diversas, como bactérias,
fungos e vírus que não estão vivendo com eles, mas são eles. A aceitação de que
somos tão diversos é difícil. Aí os alunos achavam estranho e diziam:
“Bactérias? Então eu sou bactéria?” Gosto de tudo o que a ciência propunha para
derrubar a ideia de que somos um produto divino e puro foi absorvida. Quanto aos
europeus, eles acreditam que defendem uma fortaleza, que é o centro histórico da
civilização. Isso foi manipulado para que eles pudessem conviver com outras
culturas, aí o multicultralismo. Mas a verdade é a convivência é pacífica, mas
cada um tem a sua cultura separadamente. Quando o ponto é que as culturas têm
que se misturar e se tornar uma simbiose. Um pouco como aquilo que o Brasil fez:
incorporar suas diferentes matrizes.
ÉPOCA – No Brasil isso acontece em um plano mais ideal que
real.
Couto – Sim, é mais o que o Brasil gostaria que acontecesse do
que acontece. Os brasileiros conseguiram ir mais longe que quaisquer outros
povos em fundir as religiões, fazer sincretismos, absorver as coisas que vieram
da África e da Europa. Mas a sociedade brasileira é muito estratificada, é muito
hierarquizada. E hoje acontece no Brasil um discurso de afirmação que dita que
se sentir superior é se sentir europeu. O processo de imposição da língua, por
exemplo, se deu pela violência. No Brasil ou em Moçambique, a língua portuguesa
foi imposta. Há mais de 20 línguas diferentes em Moçambique. Todo mundo pode
hoje falar sua língua, mas não é uma língua de prestígio, que pode chegar ao
livro, como o português. O português é uma violência sutil hoje, mas continua
presente.
ÉPOCA – O poder do pensamento sistemático ocidental é arrasador. O
antropólogo francês Claude Lévi-Strauss veio ao Brasil e descreveu a
complexidade do pensamento selvagem. Mas esse pensamento é reduzido a um objeto
de estudo antropológico. O que seria uma redução.
Couto – O problema
é que as pessoas que vivem esse pensamento aprendem rapidamente a se envergonhar
do que elas pensam e praticam o suicídio epistemológico. Eles se encarregam eles
próprios de matar os fundamentos de seu pensamento. Quando é objeto de uma coisa
exótica, com sua graça, que serve a uma disciplina de etnografia e antropologia,
mas não de alguma coisa que pode ser incorporada na modernidade. E aí o
pensamento selvagem não tem lugar. Só tem lugar como objeto de museu.
ÉPOCA – Os artistas tentaram alterar a imagem da África, não? É o
caso de Picasso e sua tela Les Demoiselles d’Avignon...
Couto – A
arte vai à frente, tentando abrir um caminho, de uma maneira muito modesta. Mas
isso depois tem consequências. A arte e a literatura podem criar um desejo de
que o mundo pode ser diverso. É um trabalho quase psiquiátrico o do artista, o
de fazer as pessoas perderem o medo do outro e do desconhecido. Não só isso,
mostrar que aqueles que a gente tema podem manter conosco uma relação de solução
e de enriquecimento. A arte pode propor uma relação de namoro.
ÉPOCA – Como enfrentar os problemas culturais e educacionais nos
países africanos?
Couto – Hoje há muito mais gente em escola. Não
são escolas que pensem seu próprio perfil e no sentido da utilidade. Estamos
defasados em relação às grandes demandas do mundo. Falta qualificação em áreas
no domínio técnico. Portanto, estamos criando uma situação em que há muita gente
escolarizada e pouca preparada para enfrentar o mundo. A apreciação da África
tem que mudar, e ler literatura contemporânea da África ajuda nisso. A África
não exporta só jogador de futebol e dançarino. Exporta pensamento, a capacidade
de produzir beleza.
ÉPOCA – O Brasil hoje voltou a ser modelo para a África?
Couto
– O presidente Lula torou o Brasil mais próximo. Até então o Brasil
estava de costas viradas para a África. Na relação entre o Brasil e África,
pode-se dizer que há um pré-Lula e um pós-Lula. Com Dilma, existe uma
continuação. As empresas brasileiras foram levadas para a África e nossa relação
se libertou do laço político. A Odebrecht, a Vale e Andrade Gutierrez estão
presentes na África e estabeleceram uma relação que não depende mais da
política. São empresas que criam relações. A Vale tem milhares de funcionários
brasileiros que vivem em Moçambique, nas mais diferentes cidades. E isso cria
qualquer coisa próxima. Eu lembro que anos atrás eu cheguei a um hotel, os
moçambicanos se cumprimentavam à maneira indiana, com “Nemastê”. Eu não via
televisão e achei tudo estranho. Só depois que soube que era por causa de uma
novela, O caminho das Índias, que os brasileiros estavam vendo no hotel, e que
contaminaram todos. Ali eu vi a globalização: os africanos se cumprimentando à
maneira indiano por causa de uma novela brasileira.
ÉPOCA – Como está a literatura moçambicana hoje?
Couto –
Há uns cinco escritores interessantes e que se projetam mundialmente. O fato é
que vivemos uma estagnação durante a guerra civil, de 1977 a 1992. A escola que
ainda cultivava a literatura morreu. Hoje assistimos aos meninos que estão
abraçando a poesia e o conto, e estou muito otimista.
ÉPOCA – Por que o senhor nunca saiu de Moçambique e trocou Maputo por
Lisboa?
Couto – Isso acontece mais com os africanos de língua
inglesa do que os lusófonos. Lisboa é uma capital atraente mas não é Londres nem
Paris. Nunca me ocorreu fazer isso. Não era um opção. Se eu tivesse de sair de
Moçambique, eu carregaria Moçambique comigo. Minha família era muito nuclear.
Fui visitar Lisboa quando adulta. Meus pais e meus irmãos estão lá. É como se
Adão e Eva estivessem nascido em Moçambique. Outro mundo era coisa estranha. O
Brasil sofreu um processo autocêntrico, que agora está sendo repensado.
ÉPOCA – O senhor diz que a literatura brasileira não é conhecida na
África. Como o senhor faz para tomar contato com ela?
Couto –
Quando estou no Brasil faço minha incursões. Gosto de algumas coisas que estão
sendo feitos, como o Milton Hatoun, que é uma referência para mim. Um livro que
me marcou foi O leite derramado. Porque eu queria ter feito esse livro, a
memória de um velho que está no limite do que podemos acreditar, contando sua
história e a de seu país. Era o meu projeto. Eu me reconheci no livro. Estou
tentando encontrar uma maneira que seja minha.
ÉPOCA – O senhor está escrevendo um romance?
Couto – Sim,
ainda não tem título. É a história de um imperador, Gungunyana, um resistente
contra a ocupação colônia, ele reinou de 1870 a 1895. Portugal precisava de
capturá-lo para manter seu território colonial. Eu quero contar a história dele,
mas não como um romance histórico, mas através de uma tradutora, como um elo
entre o poder colonial e a resistência. Ela foi levada a Lisboa com Gungunyana.
Ele morreu nos Açores, enterrado no mar como diz a personagem. É uma tentativa
de reabilitar um personagem de um tempo que foi mistificado.
ÉPOCA – O que o senhor aprendeu com os escritores
brasileiros?
Couto – Eu vim beber no Brasil. Sou mais influenciado
pelos poetas brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. A
minha casa vivia cheia de poesia, porque meu pai, Fernando Couto, era vidrado em
poesia brasileira e francesa. Eu tinha discos da poesia jogral de São Paulo, que
hoje ninguém mais conhece. Mas me marcou escutar poemas como “Essa nega fulô”,
de Jorge de Lima. Poesia era mais som do que leitura para mim. Em minha casa
viviam essas vozes. Eu nem me dava conta de que poesia vinha do livro. Comecei a
ouvir música brasileira na nossa varanda. Meu pai ouvia também as canções
praieiras do Dorival Caymmi e aquele jeito doce de cantar me marcou desde
menino. Depois vieram João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa. Quando
publiquei Vozes amanhecidas, em 1987, eu sofria influência do Guimarães Rosa,
embora nunca o tinha lido. Depois o escritor Luandino Vieira, que transgredia a
norma incorporando os sotaques de Luanda, chamou atenção em um entrevista que
era influenciada por Guimarães Rosa. Eu consegui uma fotocópia do conto “A
terceira margem do Rio” e finalmente li. Quando escrevi o segundo livro de
contos, Cada homem é uma raça, aí já era totalmente influenciado em Guimarães
Rosa. Os contos dele são romances condensados.
ÉPOCA – O senhor se encantou com Rosa pelo fato de ele experimentar e
manipular a linguagem?
Couto – Sim. E era uma coisa que fazíamos
intuitivamente em Moçambique, como deve ser quando incorporamos uma língua.
Precisamos torná-la íntima, namorar com ela no chão e criar um novo ser. O Rosa
faz parte de um contexto histórico em que havia a necessidade de criar o sertão,
uma fronteira pura em que o mundo não chegava para contaminar. É a construção do
território da palavra, contra a lógica do tempo, isso me parecia importante.
ÉPOCA – Qual a sua principal influência literária?
Couto
– Venho da poesia. Li poesia francesa, como os surrealistas Paul Éluard
e Jacques Prévert, os petistas da resistência espanhola como Miguel Hernandez
ou García Lorca. Vivíamos como se a poesia fosse um habitante da casa. Fernando
Pessoa é impossível de contornar. Ele é infinito. Na adolescência ele era o meu
guia. Ele é o maior. Ele me ajudou a me resolver internamente, naquele momento
que temos de nos confrontar com escolhas e criar uma identidade reconhecível,
simples e única. Ele foi mais que uma influência literária. Foi filosófica. Ele
me ensinou a ser múltiplo e plural. Ele é o verdadeiro autor de autoajuda.
ÉPOCA – O quanto de poesia tem a sua obra de ficção? Há diferença
para o senhor entre poesia e prosa?
Couto – Eu estou sempre lá na
poesia. Não vejo diferença, faço prosa e poesia. Quando decido contar uma
história, romance ou conto, acontece em poesia, só. É um estorvo. Quero contar
uma história e ter a disciplina de romancista e lá está a poesia. Agora, olhando
para a chuva na janela, a poesia é uma chuva que limpa o céu e torna a alma
limpa. Vou para o romance sem saber como vai ser a história. É como se a poesia
me ajudasse de olhar a história.
ÉPOCA – De onde o senhor tira suas histórias? E como as
compõe?
Couto – Conto uma história a partir da sugestão do real. Mas
tenho um pudor que me faz não reproduzir uma história real. Tiro de conversas de
pessoa. Isso vem da capacidade de escutar os outros, há sempre uma história que
está oculta. É um exercício que faço desde menino. Eu me sentava diante da casa
e os meus pais me chamavam de muito devagar. Eu era muito sossegado. E assim eu
observava. Contar história é uma coisa que parte do não saber. É uma ignorância
intencional. Ela me torna disponível para escutar vozes dos personagens. O que
eu gosto é criar personagens. Eles têm de ser suficientemente sedutores para que
eles possam me escutar também. É um jogo. Eu sei que é romântico o modo como
olho o meu próprio modo de produção. Mas é assim que funciona.
ÉPOCA – O senhor é romântico, não?
Couto – Sou um
romântico que briga com a realidade, mas não lhe dá tanta importância assim como
os românticos do passado. É que é um modo de subverter as coisas que eu aprendi
do [líder revolucionário] vietnamita Ho Chi Minh. Ele escreveu uma poesia
delicadíssima quando estava na cadeia. Perguntaram a ele como era possível ele
ter escrito poesia tão singela numa posição tão dura. A resposta dele é um lema
para mim: “Eu desvalorizei as paredes”. No fundo ele nunca esteve preso. Estamos
presos a esta coisa que chamamos realidade, há uma ditadura que diz que o mundo
tem que ser assim. Mas o mundo não é assim. Há outros mundos possíveis.
ÉPOCA – Qual o seu método de trabalho?
Couto – Estou
sempre anotando. Meus bolsos estão cheios de papéis e isso me atrapalha. É um
caos permanente que depois pede que eu tenha um retiro para eu poder dar uma
ordem a isso. Escrevo com a mão. Anoto em cinco, seis caderno que perco, e
depois escrevo no computador. O caos faz parte de mim.
ÉPOCA – Que conselhos o senhor daria a um escritor jovem ou
iniciante?
Couto – Meu conselho é que ele não fique intimidado pelo
desejo de escrever bem. O escritor não é aquele que escreve bem só. Estiver bem
escrevem muitos. É que ele procure a história, aquilo que é único, que ele deixe
se surpreender com a permanência da infância nele. Não ter medo da infância.
ÉPOCA – Experimentar a linguagem não está fora de moda?
Couto
– Eu mesmo não me contento mais com isso. Estou buscando uma via, quero
me surpreender, quero ousar. Por via da poesia quero manter uma relação de
surpresa com a linguagem. Mas a busca da palavra transgredida estou abandonando.
Há uma diferença em relação a isso com o tempo. Minha literatura ficou mais
contida.
ÉPOCA – O senhor enxerga alguma coisa boa na literatura de
entretenimento?
Couto – Eu não gosto disso. Livros de aeroporto eu
raramente compro. Eles são anunciados como os mais vendidos. Não é um estigma,
mas eu procuro aquilo que é mais experimental e feito com um propósito que não
seja de venda.
ÉPOCA – É difícil ser escritor sem marketing, seja o pessoal, seja os
das agências literárias e editoras. É possível viver sem isso?
Couto –
A negocia ação que você pode fazer com o mercado é no sentido de não
alterar o território impoluto da produção artística. Há um território que tem
que ser preservado. No meu caso, tenho sido capaz de manter isso. Não faço por
cálculo nem administro o que eu sou ou o que eu faço que não seja pelo trabalho
artístico.
ÉPOCA – As mudanças tecnológicas – como internet, e-books e tablets –
estão alterando a forma de fazer literatura – e seu estilo?
Couto – Não sou muito
capaz de entrar nesse mundo. Mas entrei o suficiente para que ele me ajudam. As
tecnologias são escravas, ferramentas que eu uso, mas mantenho o meu universo
interior.
ÉPOCA – Os blogs provocaram uma renovação literária significativa ou
repetem chavões?
Couto – Sim, a literatura se tornou mais acessível,
aberta e imediata. Democratizar os autores é um universo completamente novo.
ÉPOCA – Qual o futuro da ficção num mundo cada vez mais fascinado por
produtos de alta tecnologia? A leitura não está prejudicada? A atenção não se
dispersa?
Couto – A tecnologia não é ameaça. O pior é a incapacidade dos jovens
de produzir histórias. Ele precisam ser capazes de ser autores das próprias
histórias. Meu medo é que os jovens passem a ser grandes consumidores e não
autores de um narrativa das suas próprias fantasias. E isso começa na linguagem
funcional e utilitária. Aquilo que está na língua e é fonte de enorme prazer e
invenção da pessoa, essa parte está muito esquecida.
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