sábado, 12 de abril de 2014

Entrevista - Rajendra Pachauri


Engenheiro e economista indiano Rajendra Pachauri, de 73 anos, é um sujeito incansável na luta contra o aquecimento global. Presidente do Painel intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONUpremiado em 2007 com o Nobel da Paz, nos últimos anos ele teve de encarar a desconfiança depois de dois escândalos ruidosos: 

- em 2007, foram apontados erros crassos de levantamento de dados no relatório divulgado pelo IPCC a cada seis anos sobre a situação climática do planeta
- em 2009, vazaram e-mails que sugeriam manipulações de dados nos documentos, em um tropeço popularmente conhecido como climagate




Na semana passada, Pachauri divulgou um novo levantamento do IPCC. Ele aponta efeitos reais já visíveis em diversas regiões da terra, como longos períodos de seca,enchentes atípicas e derretimento de glaciares. A novidade do texto: cautela e esforço especial na coleta de dados, de modo a evitar os erros de 2007. Nesta entrevista exclusiva à Veja, feita por telefone de seu escritório em Nova Délhi, Rajendra Pachauri respondeu às perguntas mais duras com um misto de irritação e ironia, mas sem perder a compostura em um só momento. 



Se a ciência do clima é incapaz de prever se vai chover no próximo fim de semana, de onde vem a certeza sobre como será o clima da Terra daqui a 100 anos? 
Um abismo separa esses dois tipos de análise. Diversos fatores atingem fortemente o clima de um dia para o outro (um exemplo são as correntes de ar, que podem se comportar de maneira totalmente imprevisível). No caso das mudanças climáticas, consideramos um conjunto de dados muito maior e menos sujeito a desvios inesperados. 



Levamos em conta principalmente o aumento de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Sabemos que essa concentração é, hoje, 40% maior do que era no início da industrialização, no século XVIII. Quando comparamos, década por década, esses dados históricos com as tendências climáticas registradas, obtemos duas curvas que, quando sobrepostas, revelam muita coisa. Revelam a tendência de aumento da temperatura global na exata medida em que cresce a concentração dos gases de efeito estufa. Não se trata de adivinhação. Fazemos ciência robusta, que se vale de complexos modelos matemáticos processados por supercomputadores. Os resultados passam pelo crivo de centenas de pesquisadores. Por isso é inadequada a comparação com a previsão do tempo para o fim de semana. O conhecimento que produzimos é destinado a fazer projeções para períodos longos. A climatologia pode ser mais bem comparada ao mercado de ações nas bolsas. 



É impossível determinar ao certo o valor exato de uma determinada ação amanhã, mas o exame de tendências abre caminho para previsões bem mais precisas de longo prazo. 



Como o novo relatório do IPCC explica o hiato de aquecimento que ocorreu nos últimos dezesseis anos, quando a média da temperatura global cresceu apenas 0,04 grau por década, contrariando a previsão de 0,21 grau? 



Os críticos têm interpretado esse dado de forma errada. Eles ignoram que o ponto de partida para análise desse período, 1998, foi um ano anormalmente quente. Esse ponto inicial de temperatura muito alta contaminou toda a série, pois a desaceleração que se seguiu foi interpretada como um hiato (ler Não houve pausa no aquecimento global)


Mas pelos seus modelos o aquecimento não tem de ser progressivo? 
A Organização Meteorológica Mundial acaba de lançar seu relatório anual, no qual destaca que o ano de 2013 empatou com 2007 como o sexto mais quente desde o início dos registros, em 1850. Apesar de as temperaturas variarem naturalmente de modo que um ano possa ser seguido de outro menos quente, isso não altera a tendência geral de aquecimento. Treze dos catorze anos mais quentes desde que começaram as medições ocorreram neste começo de século. A década de 2001 a 2010 foi a mais quente já registrada. O hiato, a suposta pausa no aquecimento, só se materializa quando se parte de 1998, aquele ano anormalmente quente. Quando se analisa a curva de aquecimento em um período maior, de décadas, o hiato deixa de ser estatisticamente relevante. 

Muitos pesquisadores dizem que a mudança climática está deixando de ser ciência para virar crença. Uma mostra disso é que aqueles desalinhados com as conclusões do IPCC são chamados de céticos... 
Nosso trabalho é ciência pura, e não crendice. Escrevemos para todos os governos membros da ONU pedindo indicações de cientistas sérios. Para fazer o atual relatório, selecionamos 831 pesquisadores de altíssimo calibre para trabalhar conosco. 

Não diferenciamos entre os que acreditam ou não no aquecimento. Baseamos o relatório no histórico de publicações relacionadas ao tema. Os cientistas, representantes das melhores universidades, não são como ovelhas, que podem ser manipuladas. Não mesmo. É uma besteira essa história de céticos e não céticos. Lidamos somente com dados científicos. 

Os cientistas do IPCC levaram em conta a diminuição no ritmo do aquecimento nas novas projeções?
Claro. Sabemos que há anos em que menores temperaturas são registradas, enquanto há aqueles com maiores temperaturas. Com esses dados, analisamos a tendência global. 

O senhor vê algum mérito nas teorias que tiram a civilização industrial da equação e apontam o aquecimento como resultado do ciclo natural da Terra? 
Os registros climáticos que podemos chamar de científicos começaram a ser feitos em 1850. Antes não havia medições confiáveis. Quando fazemos os modelos de previsões, consideramos também as variantes naturais, como é o caso dos picos de atividade solar. O que se nota, porém, é que o aquecimento medido não pode ser explicado apenas pelas causas naturais

Quando introduzimos os dados referentes às emissões de gases de efeito estufa pela civilização, a equação se fecha. Os cálculos mostram quanto do aquecimento é causado pelo homem



Nossa conclusão mais recente é que há 95% de certeza de que o aquecimento anormal que vem ocorrendo desde meados do século XX é resultante da ação de nossa civilização. 



Como vocês lidam com fatos — como o aumento da extensão de mar congelado na Antártica — que contrariam frontalmente o aquecimento global? 
Eventos extremos de precipitação estão aumentando, o que quer dizer que chuvasnevascas vão acontecer mais frequentemente. Esses extremos justificam o aumento da extensão de mar congelado. Mas é preciso entender que as flutuações anuais não alteram as mudanças climáticas, que apontam a redução do oceano congelado no longo prazo. Abandonemos agora a anomalia da Antártica para verificar a situação no Ártico. A diminuição da quantidade de gelo na calota polar norte é muito relevante e inegável. 



Prever efeitos trágicos desse processo de aquecimento não seria apenas mais uma manifestação da obsessão humana com o apocalipse? 
De forma alguma. As mudanças climáticas impactam todo o planeta. Posso listar as ondas de calor, os eventos de extrema precipitação e o aumento do nível do mar em 19 centímetros no decorrer do último século. Os impactos negativos das secas prolongadas na agricultura e nos estoques de água potável não podem ser minimizados. Não é preciso acreditar, basta ver. Não se pode desviar os olhos da realidade. O apocalipse é uma destruição instantânea. O que vemos é uma ruína gradual. 



O relatório anterior do IPCC, de 2007, foi minado pelo vazamento de troca de e-mails entre cientistas sugerindo a manipulação de dados e também pela descoberta de que era errada a previsão do derretimento dos glaciares do Himalaia. Como a credibilidade do IPCC sobreviveu? 
Primeiro, quero destacar que, apesar de tudo o que se disse em contrário depois da revelação daquelas mensagens, os glaciares estão mesmo derretendo no mundo todo. O que houve foi que, em um relatório de mil páginas, tivemos duas afirmações erradas sobre o ritmo de derretimento no Himalaia. Mas o inegável é que os glaciares estão mesmo sofrendo com o derretimento do gelo



Mas houve manipulação? 
Quanto aos e-mails que foram obtidos ilegalmente, cinco comitês investigaram e concluíram que os estudiosos nada fizeram de errado.Entre amigos, você pode mandar um e-mail dizendo "vou matar fulano" e isso querer dizer apenas que você está muito bravo com alguém. Mas no relatório foi dito que o gelo dos glaciares do Himalaia derreteria completamente até 2035. Por coincidência, logo depois os e-mails vazados ainda revelaram que os cientistas pareciam combinar a manipulação de dados. 



Repito: foi um erro pequeno em um relatório de mil páginas. Nós admitimos aquelas falhas e implementamos medidas que evitarão que se repitam. 



O conteúdo das mensagens trocadas mostrava ou não manipulação de dados? 
Não houve manipulação. Foi apenas uma falha.


A senhora sabe como o IPCC funciona? 


De maneira geral, sim... 
Os estudos são revisados por especialistas, e seus comentários são gravados. Aceito ou não, o comentário deve ser levado em conta. Todos os envolvidos são cientistas de ótima reputação. Tomamos muito cuidado para que não haja erros nos textos, mas é bom lembrar que esse é um trabalho humano. Ninguém é perfeito, ninguém é Deus, podemos falhar. 



O importante é que nossas conclusões são sólidas e estamos preparados para defendê-las. Mesmo no caso dos glaciares, o dado é claro: eles estão derretendo em todos os lugares. 



Quais são as medidas tomadas no novo relatório para evitar falhas? 
Passamos a ser muito mais cuidadosos. Valorizamos as pesquisas feitas por órgãos de respeito, como o Banco Mundial, ou publicadas em revistas de renome. 



Um estudo publicado no ano passado mostra que, de 117 previsões climáticas da década de 90, 114 estavam erradas. Como explicar esse resultado? 
Não sei quais são esses documentos, nem conheço os autores. 



O que é mais eficiente para frear o aquecimento: o desenvolvimento de tecnologias mais limpas ou a mudança de comportamento? 
A combinação das duas coisas. A Holanda teve de aumentar a altura de diques que evitam a invasão do mar, pelo aumento gradual do nível dos oceanos. Em virtude dos impactos na agricultura, teremos de cultivar plantas menos atingidas pelas mudanças climáticas. Ainda temos de usar fontes de energia que liberem menos carbono. Enquanto isso, optar por usar mais transporte público pode ajudar a diminuir a emissão de CO2. 



Que medidas o Brasil pode tomar para mitigar os efeitos do aquecimento? 
É de suma importância proteger a Amazônia e outras florestas. Mas também é necessário diminuir emissões de gases de efeito estufa. O Brasil fez bem em apostar no programa de etanol e em usar muita energia hidrelétrica. Mas pode adotar também outras formas de energia renovável. 



Neste ano, o senhor chega ao fim de seu segundo mandato como presidente do IPCC e poderia ser eleito novamente. Por que decidiu não se candidatar? 
Estou à frente do IPCC desde 2002. Chega. Vou me dedicar à minha instituição de pesquisas climáticas e à função de professor residente em várias universidades, entre elas Yale e Columbia. 



Seu afastamento tem relação com as polêmicas em torno do relatório de 2007? 
Se fosse o caso, teria saído há cinco anos. Quando acredito em algo, defendo. Não fujo.




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