Em meio às manifestações pelos 50 anos do Golpe de 64, cresce no País um movimento para que agentes de Estado, civis ou militares que cometeram crimes durante a ditadura possam ser punidos. Saiba por que a revisão da norma de 1979 é necessária
Josie Jerônimo (josie@istoe.com.br)
No
dia 1º de abril, parlamentares ergueram cartazes na Câmara com
fotos de
desaparecidos políticos e militantes perseguidos, torturados
e mortos durante
a ditadura. No mesmo dia, a presidenta
Dilma se emocionou ao relembrar a
volta dos exilados
Na terça-feira 1º, a presidenta Dilma Rousseff
convocou investidores e ministros para a cerimônia de assinatura de contrato da
concessão do Aeroporto do Galeão à iniciativa privada. Mas aquele momento de
rotina para qualquer governo produziu uma emoção que os brasileiros não devem
esquecer tão cedo. “Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro... dentro de mais um
minuto estaremos no Galeão”, disse a presidenta, cantarolando o “Samba do
Avião,” para acrescentar, em seguida, com voz embargada e olhos marejados: “É
uma síntese perfeita do que é a saudade do Brasil, a lembrança do Brasil e,
melhor de tudo, voltar ao Brasil chegando ao Galeão.” Obra-prima de Antônio
Carlos Jobim, composta em 1962, o “Samba do Avião” transformou-se, nos anos
seguintes, na avaliação de Dilma, na esperança íntima de milhares de exilados do
regime militar que só puderam retornar ao País depois que, em 1979, o Congresso
aprovou a Lei da Anistia. Dilma costuma sentir emoções fortes em situações que
lembram os 21 anos da ditadura, o que é particularmente compreensível para quem
ingressou numa organização armada e, mais tarde, enfrentou a prisão e a tortura
em dependências militares, “recebendo choques elétricos em tudo quanto é
lugar.”
Registrada dois dias antes da cerimônia no Galeão, a passagem de 50 anos do golpe de 64 foi marcada por uma situação nova, porém. Num movimento capilar, um contingente numeroso de brasileiros tem se mobilizado pela vontade de conhecer a fundo os segredos da ditadura, em particular aquele crime que se tornou sua marca repugnante e vergonhosa – a tortura. Opondo-se à determinação da lei de 1979, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, que tem impedido o julgamento de oficiais e delegados acusados de tortura e execução de adversários políticos, cidadãos e cidadãs querem levar os torturadores e demais responsáveis ao banco dos réus. Na última semana, a discussão sobre a revisão da lei, de 1979, esquentou nos meios políticos e acadêmicos. A organização da sociedade civil Anistia Internacional Brasil lançou na terça-feira 1º, mesmo dia do emocionado depoimento de Dilma, uma campanha para que agentes de Estado, civis ou militares que cometeram crimes durante a ditadura militar possam ser punidos. A iniciativa ganhou o apoio da OAB (leia entrevista ao lado). A população também se mostra a favor. Segundo o DataFolha, hoje 48% dos brasileiros são favoráveis ao julgamento de torturadores e 37% são contra. Em 2010, a situação era invertida: 45% eram contra o julgamento de torturadores e 40% eram a favor.
Na semana passada, enquanto os candidatos melhores colocados nas pesquisas eleitorais se mantiveram em silêncio sobre o que fazer com a Lei da Anistia, Dilma Rousseff disse que reverenciava “os que lutaram pela democracia, enfrentando a truculência ilegal do Estado”, mas também afirmou: “Reconheço e valorizo os pactos políticos que nos levaram à redemocratização.” Pelo menos uma parte do PT não concorda mais com isso. Na mesma semana, o senador Humberto Costa (PT-PE), que é líder do partido, fez um discurso a favor da revisão. Nos próximos dias, quando um projeto de revisão apresentado pelo senador pelo Amapá Randolfe Rodrigues, candidato a presidente pelo PSOL, entrar em debate na Comissão de Direitos Humanos, outros integrantes da base do governo irão se colocar a favor. A petista Ana Rita (PT-ES), que é presidente da Comissão, também já disse que é favorável. Em 2011, quando Luiza Erundina (PSB-SP) apresentou um projeto semelhante na Câmara dos Deputados, a proposta foi enterrada na Comissão de Constituição e Justiça e não saiu do lugar. Hoje, o ambiente político é outro.
ESCRACHOS
Um
grupo fez na tarde do dia 31, em Brasília, uma manifestação em frente à
casa
do coronel reformado Carlos Brilhante Ustra, condenado por envolvimento
em
crimes de tortura durante a ditadura. No dia seguinte, um outro
escracho
expôs o ex-militar e delegado acusado de homicídios Aparecido
Calandra
Em 1979, um combativo parlamentar de oposição,
Alencar Furtado, do Paraná, foi à tribuna dizer que o projeto aprovado “anistia
com antecedência os torturadores e marginaliza os torturados.” O que se
modificou, em 25 anos, foi a visão sobre o que se fez naquele tempo. Se antes a
Lei da Anistia era vista como uma ponte para a transição da ditadura à
democracia, duas décadas e meia depois é enxergada como um obstáculo para a
consolidação de um regime de direitos e liberdades fundamentais, num país onde a
Constituição afirma que a tortura é um crime “imprescritível”. Por trás dessa
mudança, encontra-se a Comissão Nacional da Verdade, criada por decreto
presidencial em 2012. Organismo de caráter oficial, com acesso assegurado a todo
documento público e poder de convocar toda autoridade que possa lhe prestar
esclarecimentos, em menos de dois anos realizou 450 audiências pelo País. Abriu
um debate que ajudou muitos brasileiros a tomar contato com uma realidade que
desconheciam – e outros tinham pavor de encarar. A atividade da Comissão
Nacional fermentou o nascimento, sem que ninguém tivesse planejado, de outros 75
comitês, em 21 Estados, dando origem a uma estrutura descentralizada pelo
funcionamento, mas unida pela ideia de que é preciso saber mais sobre o passado
político do Brasil.
Algumas revelações obtidas pelo Comitê da Verdade
têm caráter particularmente chocante, contribuindo para que o País de fato se
pergunte como deve reagir a elas. Um exemplo: divulgado pela tevê e pela
internet, o depoimento de Paulo Malhães, coronel da reserva do Exército que na
década de 1970 participou de sessões tortura e de macabras operações para o
ocultamento de cadáveres, causou choque e indignação. “Quebrava os dentes. As
mãos (eu cortava) daqui para a cima,” disse, entre risos de escárnio. Quando lhe
perguntaram quantas mortes havia ocorrido no período, o coronel respondeu:
“Tantas quanto foram necessárias.” Se a Lei da Anistia for revista, torturadores
conhecidos como Malhães e até militantes de esquerda alvos de processo ainda em
vigor poderão ser punidos.
Autor do projeto que, em 2001, criou reparações
em dinheiro para os perseguidos pela ditadura e suas famílias, Fernando Henrique
Cardoso declarou-se, na última semana, assustado com o “cinismo” e cobrou uma
mudança de postura por parte das Forças Armadas. “E não vejo agora por que não
as próprias Forças Armadas dizerem: ‘Erramos. Mas foi uma minoria.’ Por que essa
maioria de hoje não diz: ‘Não temos nada com isso?”’ Nos últimos dias, vieram
sinais positivos dos três comandantes militares, sempre uma interrogação nesta
história. Atendendo a uma solicitação da Comissão da Verdade, eles concordaram
em iniciar uma investigação em sete locais, em quatro Estados brasileiros, onde
ficou registrado um maior número de casos de tortura e morte. O pedido envolve
o DOI-Codi paulista, onde o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob tortura, e
também a 1ª Companhia da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, onde o
empresário Rubens Paiva foi visto pela última vez. O objetivo é esclarecer como
era a rotina e o funcionamento desses locais. Para Pedro Dallari, advogado da
Comissão, o fato de o próprio Estado já ter pago indenização a vítimas de
tortura que ficaram detidas nesses locais não permite dúvidas sobre que se
passava ali. “O que precisamos agora é apurar o desvio de função, o delito
administrativo.” E que uma revisão da Lei da Anistia possa punir quem os
cometeu.
“TORTURA NÃO SE ANISTIA”
Michel Alecrim
Presidida pelo advogado Wadih Damous, da OAB-RJ,
a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro obteve a confissão do coronel Paulo
Malhães, da reserva, de participação na tortura, morte e ocultação de cadáveres
durante a ditadura. Damous acredita que as revelações podem levar a uma
mobilização pela revisão da Lei da Anistia.
ISTOÉ – Pesquisa recente mostra que a maior parte dos
brasileiros apoia a punição dos crimes da ditadura militar. A que o sr. atribui
essa mudança?
Wadih Damous – A pesquisa captou uma mudança no sentimento
da população. Atribuo isso ao trabalho das comissões da verdade. Além disso,
este ano, como se completam 50 anos do golpe, as pessoas estão se informando
melhor e ficam indignadas com o fato de esse pessoal estar solto.
ISTOÉ – Muita gente só está tomando conhecimento das
atrocidades agora?
Damous – Muitos jovens começam a se identificar com os
rapazes e moças torturados e mortos. Veem que foi uma violência desmedida e
inaceitável.
ISTOÉ – O sr. defende a revisão da Lei da Anistia ou
acredita ser possível encontrar uma interpretação do texto que possa levar à
punição desses criminosos?
Damous – Acredito que a Lei da Anistia, como foi redigida,
não anistia os torturadores. Foi um malabarismo de interpretação o que o Supremo
Tribunal Federal fez em 2009. O ministro Eros Grau dizer que movimentos sociais
foram às ruas clamar por anistia ampla, geral e irrestrita para beneficiar todo
mundo foi uma distorção. Mas pode haver um novo julgamento e há um dado
promissor que é o novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, antecipar
seu entendimento coincidente com o nosso, de que a lei não beneficia
torturador.
ISTOÉ – Mas, em sua opinião, o que seria melhor, uma nova
interpretação do Supremo ou a alteração do texto da lei?
Damous – O Congresso pode fazer isso antes. Há um ano, não
via qualquer possibilidade de o projeto da (Luiza) Erundina (PSB-SP) passar. Ele
exclui da anistia agentes públicos civis e militares. Hoje, sou um otimista
moderado. Penso que tem de deixar a lei mais clara e não desafiar novas
interpretações. Toda anistia tem o conceito de perdoar crimes políticos. Agora,
tortura, estupro, desaparecimento forçado, não dá para dizer que isso é crime
político. O que esses agentes fizeram são crimes contra os direitos humanos,
imprescritíveis. Tortura não se anistia. É crime de lesa-humanidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário