sábado, 5 de abril de 2014

Te Contei, não ? - A mão que afaga é a mesma que corta


Documentos do Arquivo Nacional mostram que entidades de músicos, escritores e cineastas usaram o mesmo aparelho de repressão que perseguiu vários de seus associados durante o regime militar

MARCELO BORTOLOTI



Em 1974, a banda do saxofonista sergipano Eduardo Medeiros foi proibida de se apresentar numa boate de Aracaju. Os músicos já estavam no palco quando agentes da Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal (PF) impediram a realização do show. O espetáculo não trazia nenhuma mensagem que pudesse ser considerada “subversiva”, como se dizia nos tempos da ditadura militar. A censura proibiu o show porque alguns instrumentistas estavam com a mensalidade atrasada na Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). Quem pediu a proibição foi a própria diretoria da OMB, por meio de um ofício enviado à Polícia Federal. Na mesma época, os censores também foram acionados para impedir um evento na casa de espetáculos Canecão, no Rio de Janeiro. Novamente, não havia músicas com mensagem política. O motivo da proibição era outro: a execução de canções de Chico Buarque, Pixinguinha e Tom Jobim sem o pagamento de direitos autorais. Quem solicitou a intervenção da censura foi o Serviço de Defesa do Direito Autoral (SDDA), que representava os músicos. Noutro caso, este de 1983, a censura tentou impedir que um grupo de teatro de Sergipe encenasse a peça 15 anos depois, do dramaturgo Bráulio Tavares. O motivo: falta de pagamento de direitos autorais. Quem pediu para que a encenação não acontecesse foi a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat).



Esses três exemplos estão entre dezenas de casos documentados de um fato pouco conhecido: a aliança nos tempos da ditadura, entre as entidades que representavam os artistas e a temida Divisão de Censura da Polícia Federal. Em nome dos direitos autorais ou dos direitos de classe, entidades de músicos, escritores e cineas­tas fizeram uso do mesmo aparelho de repressão que perseguiu vários de seus associados na época. Até hoje pouco conhecida, essa ambígua relação emerge dos documentos que restaram da extinta Divisão de Censura, hoje preservados no Arquivo Nacional de Brasília. Ao mesmo tempo que defendiam publicamente a liberdade de expressão, entidades como Sbat, OMB, Escritório Central de Arrecadação (Ecad), Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated) e outras adotavam uma postura intransigente na hora de lutar por seus interesses particulares.



“Nunca soube que o departamento de censura era usado para pressionar pagamento de direitos autorais. Detestaria o procedimento. Suponho que a quase totalidade de meus colegas tampouco sabia”, afirma Caetano Veloso, preso e exilado no regime militar. Chico Buarque, um dos autores com maior número de músicas vetadas no período, afirmou, por meio de sua assessoria, que nunca soube desse tipo de uso da censura. Bráulio Tavares, cuja peça foi censurada, deu a mesma resposta. “Em hipótese alguma ficaria à vontade de saber que isso estava acontecendo. Essa invocação da censura foi uma mão pesada desnecessária”, diz.
Do outro lado, representantes de entidades sindicais ou arrecadadores não se constrangem com o apoio que receberam da Divisão de Censura. O pianista Adylson Godoy, um dos fundadores do Ecad, foi durante dez anos presidente da Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais (Sicam), que representava Caetano, Gilberto Gil e Djavan. Ele diz que a ajuda da PF foi bem-vinda no período. “O mal dos músicos é que, concentrados em suas carreiras, não se interessam em saber como atuam as associações”, diz. Segundo Adylson – ele chegou a pedir pessoalmente o fechamento de uma boate –, foi graças à ajuda da censura que os compositores puderam receber corretamente, mesmo quando foram exilados do país e dependiam desse dinheiro. “É uma coisa ambígua mesmo. Por um lado a polícia prendia, por outro ajudava os autores a receber”, diz.
Desde que foi criada, em 1946, uma das funções da Divisão de Censura e Diversões Públicas era fiscalizar a cobrança dos direitos autorais em shows e espetáculos teatrais. Com esse objetivo, em 1961, a censura fiscalizava mais de 2 mil casas de diversão somente na região metropolitana do Rio de Janeiro e tinha poder de fechar os estabelecimentos. Na mesma época, passou a fiscalizar também os cinemas. Em 1973, já durante a ditadura militar, uma nova lei determinou que entidades que representassem os autores poderiam pedir a ajuda da polícia para pressionar exibidores ou produtores de shows inadimplentes. Embora fossem disposições legais, os documentos preservados no Arquivo Nacional surpreendem ao mostrar o rigor com que as entidades agiam, ordenando o fechamento de casas e a proibição de espetáculos.
A Sbat, que representava Millôr Fernandes, Dias Gomes, Chico Buarque, Flávio Rangel e outros autores perseguidos pela ditadura, teve uma atuação severa no período. Numa carta que enviou à chefia da censura em Brasília, em 1984, o superintendente da entidade, Djalma Bittencourt, pedia que unidades estaduais e municipais do departamento apertassem as rédeas da fiscalização. “Não autorizem ou liberem qualquer espetáculo de natureza teatral sem que o programa respectivo esteja revestido da documentação necessária de que trata a lei que protege o direito do autor”, diz o texto. O pedido era dirigido à mesma divisão da polícia que anos antes vetara a apresentação de peças como Roda viva, de Chico Buarque, e O berço do herói, de Dias Gomes, pelo conteúdo político.
Unidades regionais da Sbat nos Estados seguiam a mesma diretriz. Em Sergipe, o representante em 1983 era o ator e dramaturgo José Vieira Neto. Militante de esquerda, ele foi preso e torturado em 1968. Quando estava à frente do escritório da Sbat, pediu para a censura proibir a peça 15 anos depois e o musical Alienígenas, que seriam apresentados em teatros de Aracaju. Também escreveu carta ao delegado local solicitando que não fosse liberada nenhuma peça antes de passar por seu crivo.
Hoje, a Sbat é presidida pelo diretor teatral Aderbal Freire-Filho. Ele diz que não conhecia a documentação. Segundo Aderbal, a entidade sempre lutou para não se submeter ao regime militar, mas naquele período vivia o início de uma crise. “Esse tipo de pedido pode ser visto como uma atitude impensada, desesperada, imprópria, de recorrer à autoridade constituída para preservar os direitos do autor e a própria sobrevivência da Sbat”, diz.

A extinta Sociedade de Defesa do Direito Autoral (SDDA), antecessora do Ecad, também tem um histórico de parceria com a censura. As entidades tinham direito de ficar com parte da renda de qualquer show ou casa noturna que tocassem músicas publicamente. O dinheiro deveria ser repartido entre os compositores. Em 1970, o presidente da SDDA era o músico Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga em clássicos como “Asa branca”. Teixeira organizou uma reunião dos compositores com o então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, em que pediram a ele empenho pessoal para que a Divisão de Censura cobrasse com maior rigor os direitos autorais de apresentações públicas. Com o mesmo propósito, em 1972, ele escreveu ao general Nilo Canepa, chefe da PF conhecido por sua truculência, pedindo ajuda para pressionar os agentes da censura, seus subordinados. Teixeira dizia que a censura deixava passar casos notórios de inadimplência. Um deles era a famosa casa de shows Canecão, que executava sem pagar diversas músicas de seus autores. “O Departamento de Polícia Federal precisa reafirmar, perante as Turmas de Censura estaduais, a necessidade da defesa da propriedade artística e literária”, diz a carta.
 

Caetano Veloso e Aderbal Freire-Filho (Foto: Patricia Stavis/Folhapres e Paula Giolito/Folhapress)














Criado em 1973 para substituir a SDDA, o Ecad adotou uma postura igualmente agressiva. Em 1979, o dono de um restaurante em Aracaju foi à PF se queixar da pressão exercida pelo Ecad, que usava a força policial como rotina de cobrança. Segundo um relatório interno da PF, o proprietário da casa, que executava apenas música mecânica, “fora tratado grosseiramente pelo agente do Ecad, que na ocasião se fazia acompanhar de um senhor moreno e mais outro que se identificara como Capitão Valadares”. Um documento confidencial de 1983 informa outro caso em Cuiabá. Segundo o relatório, num show da cantora Ângela Maria, o representante do Ecad “usou sua posição funcional e o nome da PF para intimidar o proprietário da casa de diversões Kedadagua, ameaçando assumir a bilheteria para tirar 50% da renda”.
As entidades contaram com ajuda da censura também para resolver questões sindicais. Uma das beneficiadas foi a OMB. Em diversas ocasiões, a OMB pediu à divisão da PF para não autorizar a apresentação pública de músicos que não estavam com sua anuidade em dia. Em 1974, o escritório da OMB em Sergipe pediu que a censura vetasse qualquer espetáculo com os grupos Medeiros e seus Big Boys, Brasa 10, Os Prepotentes, Raio Lazer. Em 1986, o mesmo escritório pediu que não fossem liberadas apresentações da Orquestra Sinfônica de Sergipe, por causa dos músicos em situação irregular.
O saxofonista Eduardo Medeiros, de 78 anos, líder do conjunto Medeiros e seus Big Boys, interditado em 1974, lembra que se apresentava numa boate de Aracaju, quando a Polícia Federal entrou no local e embargou o espetáculo. Eles só voltaram a se apresentar quando os 12 integrantes da banda conseguiram regularizar a situação na OMB. “Mesmo aqueles sanfoneiros humildes do interior, que se apresentavam meia dúzia de vezes por ano, eram obrigados a pagar a taxa. Com cachê que recebiam, eles não conseguiam, e a Polícia Federal ia em cima”, diz.
O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio de Janeiro (Sated/RJ) também foi parceiro da censura. Em 1986, entrou com um mandado de segurança para que a Divisão de Censura não liberasse o certificado de exibição para o filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Jorge Amado. Motivo: a produção empregara muitos artistas e técnicos estrangeiros, contrariando a lei que exigia predominância da mão de obra nacional nos filmes. “Era uma coprodução com o governo francês, que arcou com metade do orçamento. Pelo contrato, teríamos de empregar técnicos e atores franceses. Apesar do barulho, o filme foi liberado”, diz o diretor Nelson Pereira dos Santos. Na época, quem presidia o sindicato era o ator Otávio Augusto. Ele diz não se lembrar do episódio. “Se alguém fez isso em meu mandato, foi burrice. Nossa luta era contra a censura”, diz.
Os documentos também mostram uma tentativa de ampliar a atuação da censura para fiscalizar os direitos autorais de escritores. A solicitação foi feita em 1980 pelo então ministro da Cultura, Eduardo Portella, escritor e hoje membro da Academia Brasileira de Letras. Em carta dirigida ao ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, ele elogiava o trabalho do Departamento de Censura e Diversões Públicas, que vinha “prestando serviços relevantes na tutela dos direitos do autor”. Pedia que o departamento estendesse a fiscalização para verificar os direitos de obras não musicais. Hoje, Portella afirma que sempre repudiou qualquer tipo de censura. “Quanto aos direitos do autor e conexos, recorri a todos os meios a meu alcance para protegê-los. Mesmo quando discordava da ambiguidade legislativa”, diz. A palavra “ambiguidade” resume a relação das entidades artísticas brasileiras com a censura – uma mão que, ao mesmo tempo que podava a criação, arrecadava dinheiro para ela.

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