Documentos do Arquivo Nacional mostram que entidades de músicos, escritores e cineastas usaram o mesmo aparelho de repressão que perseguiu vários de seus associados durante o regime militar
MARCELO BORTOLOTI
Em 1974, a banda do saxofonista sergipano Eduardo Medeiros foi proibida de se
apresentar numa boate de Aracaju. Os músicos já estavam no palco quando agentes
da Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal (PF) impediram a
realização do show. O espetáculo não trazia nenhuma mensagem que pudesse ser
considerada “subversiva”, como se dizia nos tempos da ditadura
militar. A censura proibiu o show porque alguns instrumentistas estavam com
a mensalidade atrasada na Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). Quem pediu a
proibição foi a própria diretoria da OMB, por meio de um ofício enviado à
Polícia Federal. Na mesma época, os censores também foram acionados para impedir
um evento na casa de espetáculos Canecão, no Rio de Janeiro. Novamente, não
havia músicas com mensagem política. O motivo da proibição era outro: a execução
de canções de Chico Buarque, Pixinguinha e Tom Jobim sem o pagamento de
direitos autorais. Quem solicitou a intervenção da censura foi o Serviço de
Defesa do Direito Autoral (SDDA), que representava os músicos. Noutro caso, este
de 1983, a censura tentou impedir que um grupo de teatro de Sergipe encenasse a
peça 15 anos depois, do dramaturgo Bráulio Tavares. O motivo: falta de
pagamento de direitos autorais. Quem pediu para que a encenação não acontecesse
foi a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat).
Esses três exemplos estão entre dezenas de casos documentados de um fato
pouco conhecido: a aliança nos tempos da ditadura, entre as entidades que
representavam os artistas e a temida Divisão de Censura da Polícia Federal. Em
nome dos direitos autorais ou dos direitos de classe, entidades de músicos,
escritores e cineastas fizeram uso do mesmo aparelho de repressão que perseguiu
vários de seus associados na época. Até hoje pouco conhecida, essa ambígua
relação emerge dos documentos que restaram da extinta Divisão de Censura, hoje
preservados no Arquivo Nacional de Brasília. Ao mesmo tempo que defendiam
publicamente a liberdade de expressão, entidades como Sbat, OMB, Escritório
Central de Arrecadação (Ecad), Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos
de Diversões (Sated) e outras adotavam uma postura intransigente na hora de
lutar por seus interesses particulares.
“Nunca soube que o departamento de censura era usado para pressionar
pagamento de direitos autorais. Detestaria o procedimento. Suponho que a quase
totalidade de meus colegas tampouco sabia”, afirma Caetano Veloso, preso e
exilado no regime militar. Chico Buarque, um dos autores com maior número de músicas
vetadas no período, afirmou, por meio de sua assessoria, que nunca soube desse
tipo de uso da censura. Bráulio Tavares, cuja peça foi censurada, deu a mesma
resposta. “Em hipótese alguma ficaria à vontade de saber que isso estava
acontecendo. Essa invocação da censura foi uma mão pesada desnecessária”,
diz.
Do outro lado, representantes de entidades sindicais ou arrecadadores não se
constrangem com o apoio que receberam da Divisão de Censura. O pianista Adylson
Godoy, um dos fundadores do Ecad, foi durante dez anos presidente da Sociedade
Independente de Compositores e Autores Musicais (Sicam), que representava
Caetano, Gilberto Gil e Djavan. Ele diz que a ajuda da PF foi bem-vinda no
período. “O mal dos músicos é que, concentrados em suas carreiras, não se
interessam em saber como atuam as associações”, diz. Segundo Adylson – ele
chegou a pedir pessoalmente o fechamento de uma boate –, foi graças à ajuda da
censura que os compositores puderam receber corretamente, mesmo quando foram
exilados do país e dependiam desse dinheiro. “É uma coisa ambígua mesmo. Por um
lado a polícia prendia, por outro ajudava os autores a receber”, diz.
Desde que foi criada, em 1946, uma das funções da Divisão de Censura e
Diversões Públicas era fiscalizar a cobrança dos direitos autorais em shows e
espetáculos teatrais. Com esse objetivo, em 1961, a censura fiscalizava mais de
2 mil casas de diversão somente na região metropolitana do Rio de Janeiro e
tinha poder de fechar os estabelecimentos. Na mesma época, passou a fiscalizar
também os cinemas. Em 1973, já durante a ditadura militar, uma nova lei
determinou que entidades que representassem os autores poderiam pedir a ajuda da
polícia para pressionar exibidores ou produtores de shows inadimplentes. Embora
fossem disposições legais, os documentos preservados no Arquivo Nacional
surpreendem ao mostrar o rigor com que as entidades agiam, ordenando o
fechamento de casas e a proibição de espetáculos.
A Sbat, que representava Millôr Fernandes, Dias Gomes, Chico Buarque, Flávio
Rangel e outros autores perseguidos pela ditadura, teve uma atuação severa no
período. Numa carta que enviou à chefia da censura em Brasília, em 1984, o
superintendente da entidade, Djalma Bittencourt, pedia que unidades estaduais e
municipais do departamento apertassem as rédeas da fiscalização. “Não autorizem
ou liberem qualquer espetáculo de natureza teatral sem que o programa respectivo
esteja revestido da documentação necessária de que trata a lei que protege o
direito do autor”, diz o texto. O pedido era dirigido à mesma divisão da polícia
que anos antes vetara a apresentação de peças como Roda viva, de Chico
Buarque, e O berço do herói, de Dias Gomes, pelo conteúdo político.
Unidades regionais da Sbat nos Estados seguiam a mesma diretriz. Em Sergipe,
o representante em 1983 era o ator e dramaturgo José Vieira Neto. Militante de
esquerda, ele foi preso e torturado em 1968. Quando estava à frente do
escritório da Sbat, pediu para a censura proibir a peça 15 anos depois
e o musical Alienígenas, que seriam apresentados em teatros de Aracaju.
Também escreveu carta ao delegado local solicitando que não fosse liberada
nenhuma peça antes de passar por seu crivo.
Hoje, a Sbat é presidida pelo diretor teatral Aderbal Freire-Filho. Ele diz
que não conhecia a documentação. Segundo Aderbal, a entidade sempre lutou para
não se submeter ao regime militar, mas naquele período vivia o início de uma
crise. “Esse tipo de pedido pode ser visto como uma atitude impensada,
desesperada, imprópria, de recorrer à autoridade constituída para preservar os
direitos do autor e a própria sobrevivência da Sbat”, diz.
A extinta Sociedade de Defesa do Direito Autoral (SDDA), antecessora do Ecad,
também tem um histórico de parceria com a censura. As entidades tinham direito
de ficar com parte da renda de qualquer show ou casa noturna que tocassem
músicas publicamente. O dinheiro deveria ser repartido entre os compositores. Em
1970, o presidente da SDDA era o músico Humberto Teixeira, parceiro de Luiz
Gonzaga em clássicos como “Asa branca”. Teixeira organizou uma reunião dos
compositores com o então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, em
que pediram a ele empenho pessoal para que a Divisão de Censura cobrasse com
maior rigor os direitos autorais de apresentações públicas. Com o mesmo
propósito, em 1972, ele escreveu ao general Nilo Canepa, chefe da PF conhecido
por sua truculência, pedindo ajuda para pressionar os agentes da censura, seus
subordinados. Teixeira dizia que a censura deixava passar casos notórios de
inadimplência. Um deles era a famosa casa de shows Canecão, que executava sem
pagar diversas músicas de seus autores. “O Departamento de Polícia Federal
precisa reafirmar, perante as Turmas de Censura estaduais, a necessidade da
defesa da propriedade artística e literária”, diz a carta.
Criado em 1973 para substituir a SDDA, o Ecad adotou uma postura igualmente
agressiva. Em 1979, o dono de um restaurante em Aracaju foi à PF se queixar da
pressão exercida pelo Ecad, que usava a força policial como rotina de cobrança.
Segundo um relatório interno da PF, o proprietário da casa, que executava apenas
música mecânica, “fora tratado grosseiramente pelo agente do Ecad, que na
ocasião se fazia acompanhar de um senhor moreno e mais outro que se identificara
como Capitão Valadares”. Um documento confidencial de 1983 informa outro caso em
Cuiabá. Segundo o relatório, num show da cantora Ângela Maria, o representante
do Ecad “usou sua posição funcional e o nome da PF para intimidar o proprietário
da casa de diversões Kedadagua, ameaçando assumir a bilheteria para tirar 50% da
renda”.
As entidades contaram com ajuda da censura também para resolver questões
sindicais. Uma das beneficiadas foi a OMB. Em diversas ocasiões, a OMB pediu à
divisão da PF para não autorizar a apresentação pública de músicos que não
estavam com sua anuidade em dia. Em 1974, o escritório da OMB em Sergipe pediu
que a censura vetasse qualquer espetáculo com os grupos Medeiros e seus Big
Boys, Brasa 10, Os Prepotentes, Raio Lazer. Em 1986, o mesmo escritório pediu
que não fossem liberadas apresentações da Orquestra Sinfônica de Sergipe, por
causa dos músicos em situação irregular.
O saxofonista Eduardo Medeiros, de 78 anos, líder do conjunto Medeiros e seus
Big Boys, interditado em 1974, lembra que se apresentava numa boate de Aracaju,
quando a Polícia Federal entrou no local e embargou o espetáculo. Eles só
voltaram a se apresentar quando os 12 integrantes da banda conseguiram
regularizar a situação na OMB. “Mesmo aqueles sanfoneiros humildes do interior,
que se apresentavam meia dúzia de vezes por ano, eram obrigados a pagar a taxa.
Com cachê que recebiam, eles não conseguiam, e a Polícia Federal ia em cima”,
diz.
O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio de
Janeiro (Sated/RJ) também foi parceiro da censura. Em 1986, entrou com um
mandado de segurança para que a Divisão de Censura não liberasse o certificado
de exibição para o filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos, baseado
na obra de Jorge Amado. Motivo: a produção empregara muitos artistas e técnicos
estrangeiros, contrariando a lei que exigia predominância da mão de obra
nacional nos filmes. “Era uma coprodução com o governo francês, que arcou com
metade do orçamento. Pelo contrato, teríamos de empregar técnicos e atores
franceses. Apesar do barulho, o filme foi liberado”, diz o diretor Nelson
Pereira dos Santos. Na época, quem presidia o sindicato era o ator Otávio
Augusto. Ele diz não se lembrar do episódio. “Se alguém fez isso em meu mandato,
foi burrice. Nossa luta era contra a censura”, diz.
Os documentos também mostram uma tentativa de ampliar a atuação da censura
para fiscalizar os direitos autorais de escritores. A solicitação foi feita em
1980 pelo então ministro da Cultura, Eduardo Portella, escritor e hoje membro da
Academia Brasileira de Letras. Em carta dirigida ao ministro da Justiça, Ibrahim
Abi-Ackel, ele elogiava o trabalho do Departamento de Censura e Diversões
Públicas, que vinha “prestando serviços relevantes na tutela dos direitos do
autor”. Pedia que o departamento estendesse a fiscalização para verificar os
direitos de obras não musicais. Hoje, Portella afirma que sempre repudiou
qualquer tipo de censura. “Quanto aos direitos do autor e conexos, recorri a
todos os meios a meu alcance para protegê-los. Mesmo quando discordava da
ambiguidade legislativa”, diz. A palavra “ambiguidade” resume a relação das
entidades artísticas brasileiras com a censura – uma mão que, ao mesmo tempo que
podava a criação, arrecadava dinheiro para ela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário