sexta-feira, 18 de abril de 2014

Te Contei, não ? - O Dante do Cosme Velho

  • O romance que marca a conhecida virada na obra de Machado de Assis é escrito por um defunto. Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, publicadas em 1880 na Revista Brasileira, o par romântico do narrador Brás Cubas é a mulher de Lobo Neves, Virgília. Estes dois elementos – a perspectiva de morto e o nome Virgília – remetem a uma das obras centrais do cânone da literatura ocidental: a Divina Comédia.
    Escrita no século XIV pelo florentino Dante Alighieri (1265-1321), a Comédia narra a peregrinação de Dante pelo Reino dos Mortos – Inferno, Purgatório e Paraíso. Quem guia o poeta italiano por essas regiões do além é Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), poeta latino, autor de Eneida. Machado de Assis estaria então fazendo de fato uma referência à obra de Dante? Tudo leva a crer que sim, dada a admiração que tinha pelo florentino, como demonstram as dezenas de alusões que faz a ele em seus textos.
    Dante está entre os autores mais citados por Machado de Assis, ao lado de Shakespeare, Camões e Homero. Já em 1863, o brasileiro escreveu um poema, “No limiar”, publicado em Crisálidas, em terza rima ou terceto – forma encadeada de versos consagrada pela Comédia e pouco usada entre os poetas nacionais. Mas é a partir da década de 1870 que as citações e as alusões aparecem com mais frequência. Aos 34 anos, em 1873, Machado de Assis cita parte de um dos versos do canto V do Inferno no conto “Aurora sem dia”: “Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a literatura com uma extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun maggior dolore do poeta florentino”. Daí em diante, as referências à Comédia aparecem continuamente em quase todos os gêneros em que escreveu: crônica, poesia, conto, romance e até no ensaio “A nova geração”, de 1879. Em seu último romance, Memorial de Aires, de 1908, ele alude à obra e a uma personagem do quinto Canto do Purgatório, Pia de Tolomei. Apenas as obras escritas para o teatro não fazem referência a Dante.
    Apesar da grande quantidade de citações, elas só passaram a ser estudadas depois de uma pesquisa feita por um italiano radicado no Brasil. Mais conhecido como tradutor da obra de Guimarães Rosa, Edoardo Bizarri foi o primeiro a fazer este levantamento da presença da obra de Dante Alighieri nos textos do escritor fluminense. O artigo inaugural é “Machado de Assis e a Itália”, de 1961. Mais tarde, em 1965, ele publica “Machado de Assis e Dante”. Bizarri contou 23 citações diretas da Comédia na obra de Machado – sendo 19 do Inferno e 4 do Purgatório – porém deixou escapar uma: a do canto VI do Purgatório, epígrafe do poema “Niâni”, de 1873.
    Bizarri também comenta várias alusões a Dante, sobretudo nas crônicas, mas não faz um levantamento de todas. Este é um trabalho mais sutil, pois trata de remissões que “não se apoiam em uma referência direta e textual”, como notou outro estrangeiro, o francês e biógrafo de Machado de Assis, Jean-Michel Massa, no artigo “La présence de Dante dans l’oeuvre de Machado de Assis”, ensaio escrito em 1965 e disponível na Biblioteca Nacional.
    Se os estrangeiros foram os primeiros a fazer esse levantamento documental, coube a um brasileiro, o escritor Mário de Andrade (1893-1945), fazer uma das primeiras análises das alusões sem referência direta e textual, ou seja, sem que haja uma menção explícita a Dante ou à Comédia. Em “Machado de Assis”, artigo publicado em Aspectos da literatura brasileira, de 1939, o modernista afirma que o escritor fluminense inspirou-se no canto V do Inferno para escrever o poema “Última jornada”, publicado no livro Americanas. Neste poema, composto por dois cantos, lê-se uma funesta história de amor entre dois índios. Ambos aparecem voando para moradas dos mortos no primeiro canto, enquanto no segundo o guerreiro, antes de desaparecer, conta ao leitor o que houve. Ele a mata por ciúmes, e Tupã se vinga e tira-lhe a vida.
    O canto V do Inferno mostra os condenados do segundo círculo, os luxuriosos. Ali estão aqueles que pecaram por não resistir à tentação da carne, como Cleópatra, Helena e Semíramis. Nesta seção do Inferno, a punição dos pecadores consiste em girar eternamente em meio a uma tempestade infernal. No meio do caminho, Dante se detém para conversar com um casal de condenados, Paolo e Francesca. Ela conta por que estão ali. Foram assassinados por seu marido, Gianciotto Malatesta, logo depois de serem flagrados beijando-se.
    Mário de Andrade justifica sua hipótese ao ver semelhanças entre a estrutura, as personagens e o narrador dos poemas. “Última jornada” é escrito em tercetos, protagonizado por dois amantes que voam depois de mortos – um para o alto, outro para baixo – e é narrado por um deles, o guerreiro. “A escolha da forma poética do terceto, que a qualquer um evoca irresistivelmente Dante, me parece consequência natural de uma inspiração dantesca”, diz o modernista. Sem contar a semelhança entre os versos iniciais: “Così discesi del cerchio primaio” e “E ela se foi nesse clarão primeiro”.
    Outro aspecto importante ligado a este poema diz respeito à mistura de fontes na composição de seus textos. A epígrafe do poema é pinçada do capítulo “Os canibais” dos Ensaios (1580-1588), de Montaigne. Deste trecho do escritor francês, Machado de Assis tira a cosmologia do poema, que explica o fim que levam os mortos em face de suas ações terrenas: “Acreditam na imortalidade da alma. As que mereceram aprovação dos deuses alojam-se no céu do lado do nascente; as amaldiçoadas, do lado do poente”. Assim, para compor o poema, Machado de Assis mistura Dante, elemento indígena e Montaigne. Por baixo, o episódio é dantesco; por cima, na epígrafe, é montaigniano; no centro, cenário e tema são nacionais. A essa altura, Machado ainda não optou pela paródia nem pelo rebaixamento dos temas elevados, mas já mostra essa inclinação de buscar o estilo e a forma com base na mistura das várias fontes. Quando incorporar a paródia como mecanismo de aproximação entre a sua literatura e o repertório da tradição, ela se tornará um mecanismo central de seu estilo.
    Na década de 1870, Machado de Assis está em busca de um estilo.Então, divide-se entre textos mais convencionais, como nos romances da primeira fase e na poesia, e outros experimentais, como “Antes de missa”, “Tempo de crise” e “Um cão de lata ao rabo”, textos em prosa nos quais sobressaem o cômico, a paródia e a ironia. Sem contar as crônicas, nas quais ele exercita mais livremente estes aspectos.
    Em relação à Comédia, essa dualidade aparece numa excelente tradução do canto XXV do Inferno, publicada no dia de Natal de 1874 no jornal O Globo, e numa paródia do texto de Dante publicada meses antes na Semana ilustrada, intitulada “Inferno – Canto suplementar ao poema de Dante pelo Dr. Semana”. O texto foi escrito muito provavelmente por Machado, sozinho ou com outros autores que assinavam com ele o pseudônimo Dr. Semana. Nesta paródia, Dr. Semana põe no centro do poema uma mulata com nome de heroína camoniana, Inês, que sucumbe por causa de uma relação adúltera, como a Francesca do Canto V do Inferno.
    Tanto na paródia quanto na tradução, encontramos um Machado de Assis bastante familiarizado com a Divina comédia, sobretudo com o Inferno – seja pelo respeito ao estilo e ao tom do escritor italiano, seja pela opção de traduzir um canto pouquíssimo comentado, ou pela ausência de tradução em português à sua época.Machado não teve outras versões à mão para ajudá-lo nessa tarefa, por isso deve ter manuseado bastante sua edição de 1868, em italiano, da Divina comédia.
    À medida que vai afirmando seu estilo, sobretudo na prosa, a obra de Dante aparece rebaixada, parodiada e citada, sempre traduzida por um estilo que trata de “vulgarizar o sublime”, fórmula feliz cunhada por Alcides Villaça em “Machado, tradutor de si mesmo” (1998).
    Se a Virgília de Memórias póstumas de Brás Cubas tem relação com Virgílio, par de Dante na Comédia, e se o defunto autor é um modo de inverter e parodiar a jornada ao mundo dos mortos feita por Dante e outros antes dele, estas duas formas são obra de um autor cujo estilo já se firmou.

    Eugênio Vinci de Moraes é professor do Centro Universitário Uninter, em Curitiba (PR), e autor de “A Tijuca e o pântano: A Divina Comédia na obra de Machado de Assis entre 1870 e 1881”, (USP, 2007).

    Saiba mais - Bibliografia
    Andrade, Mário de. “Machado de Assis”. In: ___. Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, [1939] 1974. p. 97-102.
    Bandeira, M. “O poeta”. In: Machado de Assis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
    Cascudo, L. da C. Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil. Porto Alegre: PUC-RS, 1963.
    Ceschin, O. H. L. “Uma página dantesca de Machado de Assis”. Revista do Instituto Italiano de Cultura, São Paulo, v. 8, 1999.


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