quinta-feira, 17 de abril de 2014

Te Contei, não ? - Resistência também dentro da escola - Amilcar Araujo Pereira

  • Você já ouviu falar da Frente Negra Brasileira? Os negros compõem mais da metade de nossa população, mas as histórias de suas lutas e de sua participação na formação da sociedade ainda são pouco conhecidas e estudadas nas escolas e universidades. Essa escassez de memórias e histórias nos espaços de aprendizagem dificulta as construções identitárias positivas pelos indivíduos deste grupo.
    O movimento contrário também acontece: a enorme presença de memórias e histórias eurocêntricas pode alimentar um sentimento de superioridade em relação aos grupos sub-representados nos currículos e nas salas de aula. Tanto sentimentos de inferioridade quanto de superioridade atrapalham a consolidação de uma perspectiva democrática ao longo do processo formativo.
    Parece fundamental construir espaços de enunciação das diferenças nos currículos e nas escolas; ações que podem contribuir muito para a construção de um processo educativo efetivamente mais democrático em nossa sociedade.
    Em cada período da história do Brasil houve movimentos negros com características distintas que precisam ser estudados nas suas especificidades. É impossível, por exemplo, falar de qualquer situação social até o final do século XIX sem levar em conta a escravidão e seu papel estruturante na economia, na política e na cultura de nosso país. Tão importante quanto levar para a escola básica a história da escravidão é enfatizar, nesse processo, as lutas contra a escravidão e suas implicações para a formação da sociedade.
    Onde houve escravidão houve resistência contra ela. Se o sistema escravista teve importância para a estruturação do que conhecemos como Brasil, então a resistência contra a escravidão também foi um elemento estruturante. Esta pode ser a força motriz de diferentes aulas do ensino fundamental até a graduação nas áreas das Humanidades: as revoltas, a criação dos quilombos, as ações na Justiça para libertar pessoas escravizadas, levadas a cabo pelo rábula negro Luiz Gama (1830-1882) [Ver RHBN nº 100] e por muitos outros, ou ações no campo da educação, como a criação de escolas ainda no século XIX, como fez a escritora e professora negra Maria Firmina dos Reis (1825-1917) no Maranhão, em 1880.
    No período pós-Abolição, as mobilizações da população negra no Brasil ganharam nova dimensão. A publicação dos jornais da chamada “imprensa negra” – expressão criada por Florestan Fernandes na década de 1950, ao pesquisar os jornais criados por negros no período pós-abolição em São Paulo – foi uma estratégia importante, desde o final do século XIX, para expressar os anseios e as reivindicações de setores da população negra que se organizavam nas grandes cidades, especialmente em São Paulo. Por exemplo, ao comentar sobre a Lei do Ventre Livre (1871), na edição de 28 de setembro de 1930, um dos mais importantes jornais da imprensa negra, O Clarim d'Alvorada, dizia o seguinte: “E por taes princípios a raça negra já começava a sentir os preconceitos sociaes, que não facultavam os direitos dos filhos de escravos serem educados ao lado dos filhos dos escravagistas. E com o confronto nos inicios rudimentares ao ensino da epoca; nem o império e a republica fizeram escolas para educar o elemento vindo de ventres escravos, que ficou embrutecido pelo ambiente que manietava. (...) assim vieram, na indiferença e sonegados até os dias de hoje, sem pressentir o reflexo da evolução e dos conflitos sociaes”.
    Importantes organizações surgiram e se espalharam pelo país, como o Centro Cívico Palmares, criado em 1926, e o Teatro Experimental do Negro, de 1944. Homens e mulheres negros, intelectuais, políticos e artistas lutaram contra a discriminação racial e por melhores condições de vida para essa população.
    A Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em São Paulo em 1931 e com ramificações em vários estados, foi a maior organização do movimento negro na primeira metade do século XX no país. Em 1933 a FNB criou seu próprio jornal, A voz da raça, e em 1936 tornou-se um partido político, que acabou fechado juntamente com todos os outros partidos durante o golpe do Estado Novo, de Getulio Vargas, no ano seguinte.
    Com um evidente caráter nacionalista, a Frente tinha como principal objetivo integrar a população negra ao conjunto da sociedade brasileira no que diz respeito aos direitos civis e sociais. O artigo 1º de seu Estatuto – registrado em cartório no dia 4 de novembro de 1931 – deixava claros a missão e os objetivos da FNB: “Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por todo o Brasil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da Gente Negra Nacional, para a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na Comunhão Brasileira”.
    A Frente Negra Brasileira chegou a ser vista por negros norte-americanos e porto-riquenhos como um exemplo de luta por direitos civis e sociais na década de 1930. No jornal Chicago Defender, um dos mais importantes do gênero, criado em 1905, muitas reportagens abordavam a questão racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940, justamente durante o período que vários historiadores consideram o ápice da imprensa negra nos Estados Unidos. Em 26 de outubro de 1935, noticiou uma manifestação realizada pela Frente Negra Brasileira no Rio de Janeiro, que teria mobilizado, segundo o Chicago Defender, cerca de 10 mil pessoas. “A Frente Negra é hoje a organização mais poderosa em todo o Brasil”, descrevia o jornal. Somente entre 1935 e 1937 a Frente Negra Brasileira esteve presente em nada menos do que 20 reportagens do Chicago Defender. Com a aproximação das eleições de 1937, o jornal norte-americano anunciou que “Políticos brasileiros buscam o apoio da Frente Negra”, afirmando que “os associados à Frente Negra, de acordo com fontes autênticas, vão muito além dos 40 mil, com novos membros se associando diariamente”, e que, “com sua solidez, esta organização representa hoje uma das forças mais poderosas a serem consideradas no Brasil”.
    Embora a FNB não tenha sido de fato a “organização mais poderosa em todo o Brasil” da década de 1930, sua participação política em São Paulo e em outros estados era mesmo considerável. O número de associados e sua atuação política e social chamavam a atenção de brasileiros e de estrangeiros – como os editores do Chicago Defender, que olhavam para o Brasil naquele momento e viam muitos exemplos a serem seguidos. “Grupo Racial Americano segue exemplo do Brasil; Mapeia campanha para livrar-se dos grilhões em 1936”, estamparam no topo da primeira página em letras garrafais, apresentando para seus leitores os planos da “Frente Negra Norte-Americana”. Na mesma edição, outra reportagem informava que os porto-riquenhos também organizavam sua Frente Negra, “inspirada no sucesso alcançado pela Frente Negra no Brasil”.
    Há muitas histórias de lutas nos quilombos e em instituições, como as irmandades negras no século XIX. Há vários personagens – como os citados Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama, entre muitos outros – e movimentos negros organizados na história da República. São memórias disponíveis para a população brasileira, assim como as de outras minorias sociais, como as populações indígenas, em diferentes momentos ao longo do processo de formação de nossa sociedade. Levar esses conteúdos para as escolas, com embasamento teórico e seriedade no trato dos temas, só pode beneficiar a formação de todos os alunos, sejam eles pretos, brancos, indígenas ou amarelos. Um país culturalmente diverso, que se quer democrático, deve lutar arduamente por mais democracia nos currículos e nas escolas.

    Amilcar Araújo Pereiraé professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (Pallas/ Faperj, 2013).

    Do bairro para o mundo

    Uma possibilidade de trabalhar os movimentos sociais em sala de aula é através da realização de pesquisas orientadas pelos professores, com o objetivo de tentar compreender como se constituíram as organizações políticas no próprio bairro da escola. Entrevistas feitas com avós, vizinhos e lideranças locais podem contribuir para o ensino, pois esse processo de construção de conhecimento tem como protagonistas os próprios alunos, com os professores realizando a mediação didática ao orientarem e avaliarem as pesquisas realizadas.
    O trabalho pode se iniciar com a pesquisa sobre a história do bairro. Por meio da troca de ideias entre os professores e consultas com os alunos, surgem possíveis organizações como objeto de estudo. Em seguida, professores podem indicar aos alunos leituras de textos que apresentem informações amplas sobre o objeto pesquisado: o movimento negro, por exemplo. Após as leituras e as discussões, professores e alunos, juntos, elaboram um roteiro de entrevistas, que são gravadas (com telefones celulares, por exemplo) e discutidas em sala de aula. Dessa forma, dá-se início a outras possibilidades de trabalhos sobre a temática pesquisada.
    O professor terá material para fazer articulações entre os resultados da pesquisa e certos aspectos da história do Brasil e do mundo.


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